Indígenas: as retomadas de terras também em Santa Catarina

Após décadas sofrendo impactos da Barragem Norte, etnias recuperaram seu território ancestral. Além de reivindicarem seu direito, ocupam uma reserva cobiçada por madeireiros. Contra eles, oligarquias e mídia reproduzem velhas dinâmicas coloniais do “pacto da branquitude”

Foto: Alass Derivas
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Santa Catarina, muito antes da colonização branca europeia, era habitada por diferentes povos indígenas, organizados em territórios diversos, cada um com seus modos de vida e culturas próprias. Os Guarani viviam nas terras baixas, do litoral até a bacia do Paraná-Paraguai, estabelecendo aldeias próximas a rios, praticando agricultura intensiva e criando redes de caminhos que interligavam roças e vilas. Já os Kaingang ocupavam as terras altas – do interior paulista ao norte gaúcho –, associados à Tradição Taquara/Itararé e ao uso do planalto das araucárias. Os Laklãnõ-Xokleng habitavam a região intermediária, entre o planalto e o litoral, com mobilidade constante entre serras, vales e florestas.

Com o etnogenocídio provocado pela expansão colonial, os povos indígenas foram escravizados dentro de seus próprios territórios, e tiveram seus modos de vida e subsistência profundamente alterados. A ideia de um “espaço vazio” a ser explorado, justificou a invasão e a dominação colonial, que, além de classificar os indígenas genericamente como “caboclos” ou “sertanejos”, negou a sua presença histórica para reforçar a ideologia do embranquecimento.

A partir da consolidação da Lei de Terras, em 1850, o Brasil institucionalizou o etnogenocídio indígena como política de Estado. Na região norte de Santa Catarina, indígenas e não indígenas foram expulsos de seus territórios, pois não tinham os documentos que comprovassem a posse de terras. Esta medida ajudou a sustentar uma imagem distorcida sobre Santa Catarina como um estado de “sangue europeu”, por sua forte presença de descendentes de italianos, alemães, poloneses e outros europeus. Apesar de boa parte desses grupos terem deixado seus países em situação de precariedade, buscando melhores condições de vida, terra e trabalho, o seu estabelecimento ocorreu sobre terras já ocupadas tradicionalmente pelos povos da floresta.

A expansão dos empreendimentos econômicos no estado, especialmente pela atuação da madeireira Southern Brazil Lumber & Colonization Company, subsidiária da Brazil Railway Company, ambas controladas pelo empresário Percival Farquhar, aprofundou o cenário de violências contras os povos indígenas. Fundada em 1910, a Lumber instalou uma grande serraria em Três Barras, que na época foi considerada a maior madeireira da América do Sul. A obra intensificou os conflitos locais, especialmente com a contratação de milícias – conhecidas também como bugreiros – que matavam e expulsavam os povos indígenas da região.

A atuação da empresa influenciou diretamente na Guerra do Contestado (1912-1916), e envolveu longas disputas travadas entre os estados do Paraná e Santa Catarina, motivadas por questões políticas, econômicas e religiosas. No centro do conflito estavam os interesses das empresas madeireiras e do governo, que buscavam expandir o controle da região para garantir lucros e promover o processo de embranquecimento da população. Apesar disso, o conflito revelou uma forte resistência dos povos indígenas e das comunidades locais contra a violência estrutural imposta pelo avanço do imperialismo e do capitalismo.

Em um momento marcado pelo avanço da extrema-direita e do neoconservadorismo no Brasil e no mundo, as violências provocadas contra os povos indígenas tem se intensificado. O último relatório da Comissão Pastoral da Terra (2025) registrou que, em 2024, houve 1.768 conflitos por terra no país, o maior número da última década, sendo os povos indígenas 29% das vítimas diretas dessa violência, incluindo o aumento de ameaças e assassinatos, especialmente em áreas de expansão do agronegócio. Esses dados refletem uma guerra entre mundos impulsionada por retrocessos legais, como a aprovação da Lei do Marco Temporal e do PL da Devastação, que fragilizam os direitos territoriais indígenas e intensificam os ataques aos seus territórios ancestrais.

Como um meio de autodefesa, no dia 21 de maio de 2024, os povos Kaingang e Laklãnõ protagonizaram um importante processo de retomada do território tradicional JUG ÓG PÃN TXI – que, na língua Laklãnõ, significa “Rastro dos ancestrais”, na Floresta Nacional (FLONA), em Três Barras/SC. Uma parte do povo Laklãnõ, da Terra Indígena Ibirama, situada no município de José Boiteux, no Alto Vale do Itajaí, foi forçada a se deslocar até a retomada, devido ao descaso do governo com os impactos causados pela instalação da Barragem Norte. O megaempreendimento tem provocado inundações nas terras indígenas, destruído casas e inviabilizado o acesso aos recursos essenciais, como a coleta de plantas da floresta para sua subsistência e práticas tradicionais.

O primeiro contato do povo Kaingang com a FLONA ocorreu no dia 5 de abril de 2024, numa ação que reuniu famílias, lideranças e colegas de luta de diferentes regiões, como Chapecó e Mafra. Guiados pelos espíritos da floresta, os povos Kaingang, originalmente do Oeste catarinense, que migraram para o Planalto Norte, uniram-se aos Laklãnõ na luta pela demarcação do seu território ancestral, produzindo memória e história.

O sistema de justiça catarinense, em articulação com mídias locais, vem reproduzindo velhas dinâmicas coloniais, como a difusão de estereótipos negativos que retratam os povos indígenas como “invasores”, “preguiçosos” ou “violentos”, consolidando pactos da branquitude e inviabilizando seu acesso à justiça. Essa “justiça” ignora que os povos indígenas possuem uma lógica temporal e cultural distinta, enraizada em sistemas próprios de conhecimento, oralidade, relações comunitárias e formas tradicionais de resolução de conflitos, que não se enquadram nos parâmetros da escrita, da burocracia ou nos modelos jurídicos brancos ocidentais.

A utilização de termos estigmatizantes para se referir aos povos indígenas não é uma novidade. Outras expressões como carregadas de racismo como “índios”, “bugres”, “selvagens” e “silvícolas”, são estratégias discursivas, chamadas por Geni Núñez (2021, p. 70) de “inversão colonial”. Nessa inversão, a branquitude atribui valores éticos às violências que historicamente foram perpetradas contra povos indígenas. Quando os brancos chamam os povos indígenas de “invasores”, na realidade estão apagando a sua própria responsabilidade sobre a invasão de terras que aqui praticaram – durante e após – o projeto de colonização. Quando chamam de “perigosos”, estão ocultando a sua própria violência colonial, o seu racismo antinegro e antiindígena; quando chamam de “criminosos” escondem a verdadeira faceta sobre as violências praticadas por seus ascendentes colonizadores, baseada no estupro de mulheres negras e indígenas, no roubo de terras, e nos danos ambientais provocados por seu modo destrutivo de habitar a terra.

O agravante da situação na FLONA é a assinatura de um contrato de concessão florestal, que prevê a extração de madeira no local. A concessão é objeto de um processo licitatório federal ocorrido em 2023-2024, que compromete o território tradicional ao priorizar interesses econômicos do setor madeireiro, colocando em risco a natureza e os povos que ali vivem. A proposta em discussão inclui a expulsão dos indígenas da FLONA, e os leva para um novo caminho de desterritorialização e intensificação de conflitos socioambientais.

Atualmente, residem na retomada 16 famílias, cerca de 60 pessoas, entre crianças e idosos, como Verônica Moconagn Copacã, de 78 anos, mãe do cacique Dili Copacã, e Oralina de Silva Kaingang, de 99 anos, mãe do cacique Gilmar Floriano, que, assim como outras/os mais velhas/os, se comunicam apenas em suas línguas ancestrais. Além da reivindicação pela posse legítima do território, essas comunidades lutam pelo reconhecimento de suas histórias, memórias, rituais, saberes tradicionais e de uma visão coletiva de mundo.

No território Jug Ón Pãn Txi, há indícios da existência de, pelo menos, três cemitérios indígenas, além de vestígios, como pontas de lanças, já identificados pelo IPHAN durante visita técnica ao local. No entanto, o processo de investigação arqueológica na região está paralisado devido à falta de recursos financeiros. Essa justificativa da “escassez” de verbas é recorrente em contextos semelhantes, mas, na verdade, evidencia a ausência de interesse e prioridade institucional nos processos que envolvem demarcação de terras indígenas.

Por isso, visibilizar a histórias do povo Laklãnõ e Kaingang de Três Barras é uma forma potente de “retomar” a história ancestral que constitui o município, e garantir a elaboração de uma memória coletiva capaz de fortalecer a resistência dos povos indígenas e somar aliadas/os nessa guerra de mundos produzida pelas minorias brancas dominantes no capitalismo racial.

A definição de “Retomada” pode ter diferentes sentidos para diferentes povos. Para Rosa Tremembé, retomada é o ato de “pegar de volta aquilo que tomaram de nós, retomando o que quiseram apagar da gente, os nossos valores, os nossos saberes, a nossa cultura e o nosso jeito de ser”. Dinamam Tuxá, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), define retomada como um processo onde os povos indígenas reivindicam e retornam, “retomando aquilo que um dia foi nosso e que, devido a esse processo muito violento de colonização, nos foi roubado”. O professor Tonico Benites, liderança Guarani e Kaiowá, define retomada como “uma reação à violência sofrida, tendo como objetivo frear o processo sistemático de expulsão e dispersão (denominado em guarani de sarambi)”.

A forma de autogestão nos territórios indígenas contraria a lógica assimilacionista do Estado e da sociedade civil baseada no gerenciamento da vida por meio da tutela. As retomadas são temidas porque não se subordinam à política estatal; elas atuam a favor da união, e rejeitam a divisão. A retomada é uma luta anti-hegemônica e não contra-hegemônica, pois ela não pretende produzir outra hegemonia. A luta travada no território JUG ÓG PÃN TXI é uma luta permanente que se estabelece contra a guerra colonial operada contra os povos das florestas.

Babau Tupinambá diz que os povos indígenas vivem em um “estado de guerra”, e no território retomado mostram que “estamos aqui e que não vão nos aniquilar”. No documentário “Guerras do Brasil” (2018), Ailton Krenak também alerta que “o seu mundo e o meu mundo estão em guerra, os nossos mundos estão todos em guerra”. A guerra de mundos que Krenak e Babau Tupinambá pontuam é uma guerra entre mundos distintos: o colonial e o ecológico.

Malcom Ferdinand (2002, p. 24) diz que a crise ecológica que vivemos hoje é fruto das formas de habitar o mundo desde uma perspectiva colonial, eurocêntrica e moderna. A dupla fratura da modernidade é compreendida por ele desde a “oposição dualista que separa natureza e cultura, meio ambiente e sociedade, estabelecendo uma escala vertical de valores que coloca ‘o Homem’ acima da natureza. Ela se revela por meio das modernizações técnicas, científicas e econômicas”.

A retomada JUG ÓG PÃN TXI é um mundo onde cabem vários mundos. O povo Laklãnõ e Kaingang não deseja que todo indígena e não-indígena se torne como eles, mas que sejam respeitadas todas as singularidades e modos de existir. A retomada JUG ÓG PÃN TXI é Laklãnõ e Kaingang, mas também é uma luta de todos. É a luta por uma sociedade diversa, que busca impedir o processo de assujeitamento capitalista que afeta o modo de se relacionar com a Terra. Uma luta que impede o colapso climático.

Sem floresta não há vida humana capaz de existir, e sem povos indígenas não há floresta!

Os povos Kaingang e Xokleng da retomada JUG ÓG PÃN TXI precisam da sua ajuda! Para fortalecer a comunidade e garantir a continuidade de sua luta e práticas tradicionais, qualquer valor faz uma grande diferença!

PIX:97211761920
Nome: Rosenay Pedroso Kaingang

Referências


BOLOGNESI, L. As Guerras da Conquista. In: Guerras do Brasil.doc. Participações de Ailton Krenak e Babau Tupinambá. Netflix, 26 min. São Paulo, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VeMlSgnVDZ4.

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno. Conflitos no Campo Brasil 2024. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2025. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br.

ERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. p. 24.

NÚÑEZ, Geni Daniela Longhini. Nhande ayvu é da cor da terra: perspectivas indígenas guarani sobre etnogenocídio, raça, etnia e branquitude. 2021. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/241036.

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