WikiFavelas: Para ir além do arroz com feijão
Dicionário Marielle Franco provoca: Brasil saiu do Mapa da Fome, mas como erradicá-la permanentemente e garantir bem-estar pleno? O que as visões de Maria Carolina de Jesus, Josué de Castro e Betinho ensinam? Por que a favela é um laboratório de resistência e soberania alimentar?
Publicado 20/08/2025 às 18:11

Nas últimas semanas, celebramos a notícia de que o Brasil saiu novamente do Mapa da Fome. O anúncio feito pelo Governo Federal é um dos símbolos da restauração democrática em um país que passou (e ainda passa) por intensas turbulências. Mas, entre as celebrações, há que se lembrar do trabalho que temos pela frente e dos compromissos para construir um país efetivamente sem fome.
Para refletir sobre os desafios, no presente texto, o Dicionário de Favelas Marielle Franco convida você a pensar em três tempos. O primeiro, a partir de um breve histórico da questão da fome no Brasil, com notas sobre a conjuntura atual. No segundo momento, trazendo uma discussão sobre perfil: afinal, não falamos de fome como abstração, ela é experimentada por pessoas. Acreditamos que é importante dar concretude e pensar em como a gestão da fome se faz em territórios pobres, pretos, favelados e compreender melhor o perfil que é mais afetado pela fome no Brasil. E, para concluir, propomos um último momento para discutir melhor sobre alguns ecos da fome – seja nas políticas públicas, privadas ou ações do associativismo de base comunitária.
Uma conjuntura contada pela fome
A fome é uma realidade marcante na história de nosso país, em diferentes expressões. Há pessoas que passam o dia sem comer por não ter nenhum tipo de recursos para prover alimentação; há pessoas que podem comer um dia, sem a segurança de ter o que comer no dia seguinte; há pessoas que comem alimentos que não estão em quantidade ou qualidade adequada dentro do que é necessário para se manter saudável… entre todos os marcadores, uma infinidade de realidades.
Há mais ou menos dez anos atrás, em 2014, o Brasil comemorou a saída do Mapa da Fome, gerenciado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), pela primeira vez. A celebração veio em um contexto de consagração de um ciclo de políticas públicas que incluíam o Bolsa Família, o Fome Zero, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, a valorização real do salário mínimo e o fortalecimento de mecanismos do controle social como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).
A comemoração foi manchete em jornais do mundo inteiro. A promessa era de um país que, finalmente, virava a página de um dos capítulos mais tristes de sua história. Também coroava um certo ciclo do Partido dos Trabalhadores, liderado por um operário que viveu a fome, à frente do poder. Em “Quartos de Despejo”, Carolina de Jesus fala que o Brasil precisa ser governado por alguém que já passou fome. Lula, com todas as suas contradições, ajuda a elaborar a indicação de Carolina de Jesus ao constituir um cinturão de políticas para lidar com o problema, com intersetorialidade, com diversidade e complementaridade de iniciativas. Mas… com muitos limites também. O Brasil saiu do Mapa da Fome, mas a fome não saiu do Brasil.
O Mapa da Fome da FAO considera que um país está fora dele quando menos de 2,5% da população consome menos calorias do que o necessário para uma vida saudável. É um indicador importante, mas insuficiente para medir a desigualdade no prato, porque sair do mapa da fome não quer dizer, necessariamente, viver uma situação de segurança alimentar e nutricional, porque ela envolve acesso de forma contínua, adequada e suficiente a alimentos nutritivos, variados e culturalmente apropriados. Muitas vezes, mesmo sem fome absoluta, há insegurança alimentar leve ou moderada, restrição de qualidade alimentar e instabilidade no acesso aos alimentos, que comprometem a saúde e o bem-estar, evidenciando que a superação da fome é apenas um passo dentro de um processo maior de garantia plena de segurança alimentar.
Ao olharmos para as favelas e periferias, por exemplo, a história é diferente. O problema não é só de acesso à comida (como se fosse pouca coisa), mas também uma reflexão sobre o que se come e como se come. Há variedade no prato? Há comida de verdade ou apenas processados? Há quantas refeições em um dia? Há refeições todos os dias?
Na Maré, no Alemão, em Paraisópolis, no Curió, no Ibura… Em todos esses territórios, a presença do Estado é mais intensa pelas violentas políticas de segurança do que pelas políticas de assistência social. Territórios em que a ausência do Estado faz com que até mesmo a alimentação oferecida pela iniciativa privada seja composta majoritariamente por ultraprocessados baratos, carregados de sódio, gordura e açúcar, na antítese de uma alimentação saudável, já que o acesso à comida de verdade ainda é caro e o salário não dá conta de garantir algumas coisas. É assim que o arroz e o feijão, antes símbolos de segurança alimentar, viram luxo.
Essa inflexão, notada de forma mais consistente após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016, fez com que o Brasil saísse dos trilhos de enfrentamento à fome. Tanto Michel Temer como Jair Bolsonaro construíram em suas gestões medidas de destruição da proteção social no Brasil. Não por acaso, nosso retorno ao Mapa da Fome ocorre neste período de desarranjo democrático. A partir do golpe, diversas medidas e retrocessos aprofundaram uma crise social em nosso país. O congelamento dos gastos sociais com a Emenda Constitucional 95, o enfraquecimento do Bolsa Família, o desmonte do CONSEA, o ataque às políticas de alimentação escolar e a precarização das relações de trabalho corroeram as conquistas anteriores de forma muito rápida. As políticas de austeridade fiscal deste período restringiram o acesso da população a direitos básicos, como saúde, educação e assistência social.
Durante a pandemia, em 2022, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de COVID-19 feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Pessan) mostrou que mais de 33 milhões de brasileiros estavam em situação de fome. Nos lares chefiados por mulheres negras, a insegurança alimentar grave é quase o dobro da média nacional. No mesmo documento, a Rede Pessan revelou que lares chefiados por mulheres negras apresentavam, no contexto pandêmico, uma taxa de insegurança alimentar grave quase duas vezes maior que a média observada nos lares chefiados por mulheres brancas. Enquanto, no conjunto do país, cerca de 12% das famílias viviam nessa condição, entre as mulheres negras o percentual ultrapassava 22%. A centralidade da mulher nas estratégias de cuidado e na organização familiar faz com que a fome tenha um impacto desproporcional sobre elas. Carolina de Jesus, em seu livro ficcional “Pedaços da fome” qualifica sobre a questão da fome enquanto uma realidade marcada pelas relações de gênero e raça. São as mulheres negras das favelas que acumulam jornadas de trabalho informais, cuidado doméstico e, ao mesmo tempo, são as principais responsáveis por garantir a alimentação da casa. São elas que enfrentam a angústia de decidir entre comprar o remédio ou o alimento, entre pagar a conta de luz ou garantir o almoço das crianças. Um olhar sobre essa questão revela como se performa o racismo e o machismo, enquanto motivadores e agravantes da situação de desproteção social a que muitas pessoas estão submetidas.
Essa desigualdade não é fruto do acaso: expressa barreiras estruturais persistentes no acesso a emprego e renda, assim como a serviços públicos e equipamentos essenciais. Há uma necessária observação sobre como os efeitos da desigualdade não são distribuídos de forma igualitária entre a população, e conhecer a fundo as realidades que existem hoje nesse campo da insegurança alimentar nos ajuda a formular políticas mais sólidas para enfrentar os cenários que estão colocados no Brasil.
Ainda durante a pandemia, quase 70% dos moradores de favelas não possuíam recursos para compra de alimentos de forma regular (o que levou à organização de centenas de ações de combate à fome, como divulgado pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco à época). Nesse período, quando o desemprego explodiu e a renda média caiu, as favelas assistiram ao renascimento de uma forma antiga de fome, parecida com aquela narrada nos diários de Carolina de Jesus. Filas quilométricas para cesta básica, mães abrindo panelas vazias diante das câmeras para denunciar a ausência de políticas públicas, cozinhas comunitárias se organizando com doações de vizinhos e campanhas de solidariedade. Mas mesmo nesse cenário, o protagonismo foi das próprias comunidades, que se organizaram para não deixar ninguém sem comer. A favela inventou respostas. Essa desigualdade territorial e racial revela um fato incômodo: a fome no Brasil não é um acidente, é um projeto, como elabora Josué de Castro na sua obra Geografia da Fome, um clássico para entender a fome no Brasil.
E é aqui que entra o ponto central deste texto: ainda que os dados oficiais sejam fundamentais, é preciso radicalizar o que nos contam os mapas. É preciso dobrar os números oficiais e colocá-los na mesa com a realidade do dia a dia do Brasil. Ou seja: ao mesmo tempo que celebramos as metas numéricas de organismos internacionais e os pactos e leis, precisamos construir práticas cotidianas e contínuas de reconstrução de um país justo, democrático, sem pobreza e sem fome para todas as pessoas, políticas que sejam contínuas e tão enraizadas na sociedade que nenhum governo autocrático seja capaz de desmobilizá-las.
Da geografia ao mapa
Para falar sobre o fenômeno da fome no Brasil, um importante marco analítico é justamente a obra de Josué de Castro. Médico, geógrafo, diplomata e militante, ele desmontou, já nos anos 1940 e 1950, a farsa das interpretações moralistas que culpavam os pobres por sua própria desnutrição. Em obras como Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951), ele mostrou que a fome não é fruto da escassez natural de alimentos, mas sim uma construção social e política, produzida pela concentração fundiária, pelo modelo agroexportador e pela negação histórica de direitos básicos à população trabalhadora.
Ele dividiu o território brasileiro em regiões alimentares, revelando que cada uma tinha não só suas culturas e hábitos alimentares, mas também diferentes formas de subnutrição. Ou seja: pensar o território é importante não apenas para compreender como a segurança alimentar e nutricional se aplicaria neste contexto, mas sobretudo para compreender de que forma se dão as violações de direitos – e, assim, construir elementos para enfrentá-las. As análises de Castro indicavam, por exemplo, que no Sertão, a fome crônica se manifestava pela escassez de proteínas; na Amazônia, pelo déficit de sais minerais; no litoral açucareiro, pela monocultura que forçava trabalhadores a viverem dietas incompletas, já que não tinham seus espaços de roças para subsistência. Essa análise foi pioneira em enxergar o território como determinante do que se come e do que não se come. E arrisco dizer que, se na análise do século XX o latifúndio produziu tipos de fome rural, nas favelas do século XXI, a segregação urbana e o racismo também produzem tipos particulares de fome. Mais uma vez, o território como componente para compreensão da fome.
Tal temática comparece em importantes centros de pesquisa, a partir dos olhares sobre as interseções entre fome, território e políticas públicas. Algumas pesquisas da professora Rosana Salles Costa, da UFRJ, nos ajudam a compreender que a insegurança alimentar também é agravada pela desigualdade no acesso aos alimentos e ambientes alimentares degradados, em um fenômeno que aproxima má alimentação e injustiça alimentar das discussões sobre fome em nosso país.
Essa visão, que articula fome e desigualdades sociais, desmonta a ideia de que basta distribuir renda para resolver a fome. É verdade que o Bolsa Família e o Fome Zero foram marcos históricos e precisam ser defendidos. No início dos anos 2000, em um cenário de estagnação salarial e desemprego alto, o Bolsa Família organizou um histórico programa de transferência de renda diretamente para milhões de famílias pobres, muitas delas em favelas e áreas rurais afastadas. O programa elevou o poder de compra e, de fato, reduziu a fome em poucos anos. Já o Fome Zero articulou iniciativas como restaurantes populares, programas de cisternas no semiárido, apoio à agricultura familiar e fortalecimento de equipamentos de SAN.
Mas as políticas de combate à fome precisam ir além de “matar a fome hoje” e as ações de Estado devem mexer nas estruturas que a reproduzem. E é aqui que se revelam os limites das políticas atuais: apesar dos avanços, não houve ruptura com a lógica do agronegócio enquanto organizador da produção (sem considerar, por exemplo, o papel e potência da agricultura familiar), nem um enfrentamento frontal à especulação imobiliária urbana que empurra os mais pobres para periferias e favelas. No campo, o latifúndio dita as regras; nas cidades, o direito à alimentação saudável foi tratado como um apêndice de políticas assistenciais, e não como parte do direito à cidade.
Para as favelas, isso significou que a melhora de renda via Bolsa Família e valorização do salário-mínimo era, muitas vezes, corroída por preços de alimentos que subiam acima da inflação, pelo transporte caro para acessar mercados melhores e pela expansão do varejo de ultraprocessados como solução rápida e barata. O Estado colocou comida no prato, mas não mudou quem decide o que chega até ele, já que a indústria alimentícia e o agronegócio não têm compromisso com soberania alimentar, e, sim, com lucro. As pessoas passam a ter renda para comprar comida – mas a comida de verdade fica tão cara, que muitas pessoas sobrevivem de miojo, nuggets, biscoitos etc. Assim, deixa-se de passar fome, não se proporciona uma vida com segurança alimentar para as pessoas, pois não se criam as condições para acesso a uma alimentação adequada.
Nesse novo momento, para enfrentar a fome, talvez não seja suficiente retomar políticas dos anos 2000. Sair do Mapa da Fome foi uma grande vitória e um resultado de importante trabalho dirigido pelo Governo Federal, mas há ainda um longo caminho para que a fome e a insegurança alimentar não sejam realidade na casa de nenhuma família brasileira.
Favela: laboratório de resistência e soberania alimentar
Se a fome nas favelas é fruto de uma histórica e articulada violação de direitos da população, a resposta para essa realidade também nasce dos próprios territórios, como temos observado a partir das redes de solidariedade, da organização comunitária e da criatividade política. É nas cozinhas comunitárias, nas hortas urbanas, nas ações de distribuição de alimentos e nos mutirões que as favelas vem mostrando caminhos para a construção de um mundo possível para se viver, marcado pela ontologia do coletivo e do comum, em detrimento do modo indivíduo tão marcado em tempos de hegemonia neoliberal.
Desde o início da pandemia de Covid-19, iniciativas autônomas multiplicaram-se pelo Brasil afora, com a urgência da defesa da vida. Organizações como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o Fala Akari na Zona Norte do Rio, o Gabinete de Crise do Alemão e dezenas de outras redes locais de apoio criaram sistemas de mapeamento para identificar famílias em situação crítica e organizar a distribuição de alimentos.
As cozinhas solidárias passaram a ser espaços não apenas de alimentação, mas de encontro, de fortalecimento de redes e de resistência, conforme relatado pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco,
“As cozinhas solidárias no Brasil são uma forma de tecnologia social voltada para o combate à fome e à insegurança alimentar. Durante a pandemia de COVID-19, essas iniciativas se expandiram rapidamente, impulsionadas por movimentos sociais e organizações da sociedade civil, com o objetivo de fornecer refeições gratuitas e saudáveis para pessoas em situação de vulnerabilidade. Em 2023, o governo federal consolidou essas iniciativas ao regulamentar o Programa Cozinha Solidária, estabelecendo uma política pública de combate à fome e de promoção da segurança alimentar” (Wikifavelas, 2025).
Elas funcionam a partir de doações, trabalho voluntário e parcerias locais, alimentando milhares de pessoas diariamente. Em 2024, o presidente Lula (PT) regulamentou a lei proposta pelo deputado Federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) que institucionaliza e prevê estrutura para o funcionamento das cozinhas solidárias. Com a legislação, a ideia é promover a integração de outras ações de segurança alimentar e nutricional promovidas pelo Estado, entre elas, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana. Com isso, une-se Estado, movimentos sociais e outros atores da sociedade civil para combater a fome. A experiência da Maré, por exemplo, mobilizou jovens, mulheres e pessoas idosas em torno da produção e distribuição de refeições que respeitam os saberes e as tradições locais.
Na cidade do Rio de Janeiro, as iniciativas proliferam ao longo dos anos. Em mapeamento da Prefeitura da Cidade, há ao menos 40 espaços de distribuição de refeições com funcionamento entre segunda e sexta-feira (cada espaço com capacidade de distribuição de 280 refeições), a partir do programa Prato Feito Carioca. Tal programa é uma importante estratégia de enfrentamento, mas em 2024 a Câmara dos Vereadores divulgou o I Inquérito sobre Insegurança Alimentar no Município do Rio de Janeiro, que indicou que há dois milhões de pessoas vivendo com algum tipo de insegurança alimentar (e quase meio milhão vivendo com fome). O Inquérito foi coordenado por pesquisadoras do Instituto de Nutrição Josué de Castro da UFRJ e mostrou um dado alarmante da fome na cidade, o que correspondia às tendências nacionais à época, dada conjuntura de desmonte das políticas sociais em curso desde o golpe, agravada com a pandemia.
Além das cozinhas, as hortas comunitárias têm se consolidado como alternativa para fortalecer a autonomia alimentar. Elas promovem o cultivo coletivo de alimentos frescos, estimulam a troca de conhecimento agroecológico e ajudam a reduzir a dependência do mercado formal, especialmente dos alimentos ultraprocessados. É um movimento que articula saúde, cuidado ambiental e economia solidária. Um exemplo potente é organizado pelo Coletivo “Horta em Casa Maricá”, na cidade de Maricá, no Rio de Janeiro.
É importante também reconhecer o papel de outras organizações além dos movimentos sociais de favela. O padre Júlio Lancellotti, figura emblemática da luta contra a desigualdade em São Paulo, distribui diariamente marmitas para pessoas em situação de rua e comunidades vulneráveis – ato que incomoda grupos mais abastados e políticos vinculados à extrema direita, que comungam de uma agenda higienista. Sua atuação fortalece o papel das igrejas como espaços de acolhimento e mobilização social.
Além dos exemplos citados acima, há centenas de outros esforços – seja dos movimentos sociais, das instituições religiosas, de organizações do terceiro setor e até mesmo de algumas instituições do Estado – que nos ajudam a refletir sobre a diversidade de atores em cena para pensar a construção de segurança alimentar em nosso país.
Com fome, com pressa: entre safras e pactos
Betinho foi um dos maiores lutadores sociais da história recente de nosso país. Conhecido mundialmente pelas lutas de enfrentamento à fome e à miséria, sempre dizia que “quem tem fome, tem pressa”, como forma de conclamar ações urgentes de enfrentamento à fome em nosso país.
Em 2025, quase 30 anos depois de sua morte, ainda há urgências a serem enfrentadas. Vivemos um cenário global marcado pela crise econômica, pela emergência climática e por conflitos que ampliam a insegurança alimentar em escala global. Em 2024, a comunidade internacional lançou o Pacto Global contra a Fome e a Pobreza. O objetivo é mobilizar governos, organizações sociais e setor privado para acelerar o combate à fome até 2030, alinhado ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2 (ODS 2) da ONU, que visa “acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”.
O pacto simboliza um esforço coletivo e uma promessa de união em torno da erradicação da fome. No entanto, como alertam especialistas e movimentos sociais, o sucesso dessas iniciativas depende da efetiva implementação de políticas públicas intersetoriais, do combate às desigualdades estruturais e da regulação dos interesses das grandes corporações alimentares. A controvérsia reside no que veio depois do Pacto. Se o Governo Federal defende tal pacto em colegiados como o BRICS e a ONU, causa espanto que o mesmo governo lance um Plano Safra que destina a maior parte do recurso bilionário ao financiamento do agronegócio, voltado para commodities como soja, milho e carne, enquanto a agricultura familiar (responsável pela maior parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros) recebe uma fatia proporcionalmente muito menor. Essa opção reforça um modelo de produção concentrador de terra e renda, dependente de agrotóxicos e monoculturas, que prioriza mercados externos em detrimento do abastecimento interno. A contradição é flagrante: como liderar um pacto contra a fome se, dentro de casa, se financia justamente a lógica econômica e ambiental que está na raiz da fome no Brasil e no mundo?
Esse desafio é particularmente complexo. O país possui legislação avançada, como a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que reconhece a alimentação adequada como um direito humano, e instituições importantes como o CONSEA, que fomenta a participação social na formulação de políticas. No entanto, o histórico recente de desmonte dessas estruturas, aliado à persistência do colonialismo alimentar e do neoliberalismo, fragiliza a capacidade do Estado de cumprir esses compromissos.
É necessário que a saída do Mapa da Fome consiga dar corpo à uma agenda pública de transição estrutural na sociedade, com medidas e compromissos que incluam: 1) o fortalecimento da agricultura familiar e agroecológica; 2) a garantia da merenda escolar saudável e local; 3) políticas de incentivo à produção sustentável e ao comércio justo; 4) combate ao racismo estrutural e à desigualdade de gênero na alimentação; 5) articulação de ações que integrem saúde, educação e assistência social e outras medidas reivindicadas pelos movimentos sociais, por grupos de pesquisa e por toda a população.
Até que esse dia chegue, as cozinhas solidárias das favelas, as marmitas das igrejas, o trabalho dos coletivos e até as redes de sobrevivência em territórios dominados por grupos criminosos continuarão a ser uma grande trincheira contra a fome e pela vida.
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