Mala de jabutis

A notícia correu o Brasil: 650 répteis amontoados no bagageiro de um ônibus. Com porcentagem de óbitos, talvez, calculada. A Ciência diz que bichos são capazes de sentimentos. Mas isso nunca garantiu serem poupados da dor, como bem sabem os palestinos…

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Não é porque são lentos que precisavam ser amontoados. E parece que toda hora o são, especialmente em malas: uma vez 121 deles e mais um punhado de sapos –é tudo uma raça só, deve ter pensado o contrabandista– foram socados juntos numa bagagem que ia voar do México para o Japão; em outra ocasião, 400 quelônios foram pegos viajando amassados para a Tailândia. Amassados é modo de dizer, se bem que é capaz de uma escuridão assim tão duradoura acabar descalcificando a carapaça mais sólida. E mesmo aquelas patinhas, grossas o suficientemente para sustentá-las, assim espremidas devem ficar o seu tanto bambas. Também não sei se assim empilhados, com o plastrão (como chamam o seu ventre) do de cima em fricção constante com o casco do de baixo em todo o trajeto, nunca retilíneo, não vão ficando… não, sem trocadilho —mas, por mais minerais e “resilientes” que pareçam, eles são também suas partes moles, órgãos internos e músculos.

Mais recentemente, 650 filhotes de jabuti, não sei se mansos como sempre, não sei se não emitindo algum ruído sutil e característico de pavor e sofrimento, foram rolando um sobre os outros, divididos que foram em três malas comuns, por sua vez enfiadas no bagageiro de um ônibus interestadual. Não nos enganemos com esse “interestadual” porque o tempo no caso é o de uma viagem do Brasil até o Japão: iam de Feira de Santana na Bahia à Baixada Fluminense, tendo sido encontrados em Teresópolis, depois de 21 horas e 30 minutos portanto, se não contarmos o tempo das paradas, que não era para elas, na escuridão dura e entufada das caixas de lona, estas por sua vez espremidas entre muitas outras no que é o porão sacolejante do veículo. Então não puderam em nenhum momento durante o percurso se descarregar um pouco, tomar ar, mastigar um pedacinho de fruta ou folha. Muitos tiveram hipóxia, muitos chegaram a óbito, como se diz de humanos e se diz também de tartarugas. Sem ventilação, os fungos prosperam nas partes moles; e mesmo as duras sofrem traumas, podendo com isso vir a desenvolver “piramidismo”, uma mudança que é morfológica e por assim dizer arquitetônica. Não há estrutura tão rígida que não possa ceder ou se deformar depois de muita investida bruta.

Serão seres sencientes, alguém pergunta? Parece que sim. Por exemplo: um estudo acadêmico na Inglaterra com jabutis-piranga, os mesmos da viagem interestadual, teriam mostrado que elas são capazes de “estados de humor duradouros”, como otimismo e ansiedade. Otimistas em relação a quê? Certamente chegarei até aquele vaso de planta, até aquele dedão de pé. Ansiosas em relação a quê? Chegarei até aquele vaso de planta? Aquele dedão ainda estará lá para eu tocar? Quero tanto, meu mecanismo está aquém do meu desejo. Se foram criadas em “ambientes enriquecidos”, explicam os pesquisadores, tornam-se seres mais positivos na vida (me ocorre brandamente as ideias de “mãe suficientemente boa” e “lar comum” de outro inglês, Donald Winnicott, concebidas depois de observação contínua, durante a Segunda Guerra, de bebês refugiados em abrigos e privados dos estímulos necessários ao seu desenvolvimento). Na superlotação da carga, deve ter se criado um terceiro “estado de humor duradouro”, que não consigo imaginar por muito que tente. Mas por que essa preocupação atual com o que é senciente ou não é? Não me parece que, conforme a classificação, uns possam ser subtraídos da tortura, outros não. Ninguém julgará, imagino, não-sencientes os filhotes de palestinos ou mesmo os palestinos adultos, por mais terroristas que sejam todos desde o berço; nem por isso são poupados de alguma coisa. Se fosse cientificamente provado que são insensíveis, talvez fossem deixados de lado, poupados do que não são capazes de sentir, a dor física.

Na verdade não os ajudaria muito nem a ciência nem a astúcia de fábulas imemoriais, como a do sapo que se meteu na viola do urubu para frequentar a festa do céu e, tendo sido descoberto, optou pela forma de morte que não queria, alcançando por pirraça do outro a que queria; sabia que com esta tinha alguma chance de escapar, o que ocorreu, mas preferiu se manifestar não pela opção ligada a seu desejo, mas aquela que permitia expressar o intento do inimigo, e este era o de contrariá-lo (“se queres isso, lhe darei aquiloutro”), contrariar o sapo que bancou o espertinho tentando viajar à sua custa para domínios vedados aos que não têm asas. O fato é que, assim o fazendo, o sapo salvou a si mesmo. Voltando aos jabutizinhos: há uma técnica para melhor socar os bichos em malas que esse senhor não deve ter aprendido. Podia ter sido também uma boa, caso não tenha lhe ocorrido, amarrar as patas para que não se mexessem –coisa que não teria mesmo utilidade onde e como estavam – e com isso dar menos bandeira de estar carregando material orgânico vivo. Dos 650 répteis restaram 600, e cada um destes seria vendido a 700 reais na feira. Não posso dizer que, dada a batida e apreensão policial, o santo do traficante seja forte, mas não fosse isso o negócio teria sido bem-sucedido, pois a porcentagem de óbitos parece razoável para condições tão insalubres. Sempre há, nesse tipo de tráfico, com cargas abarrotadas de seres vivos que mal se mexem, um cálculo ou estimativa de quantas mercadorias podem não resistir. Como rezou um contrabandista de escravos africanos num poema do judeu-alemão Heinrich Heine: “Poupai suas vidas por Cristo,/ que por todos nós padeceu/; pois, senão restarem trezentos,/o meu negócio se perdeu”.

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