Por uma nova economia da água
Crise hídrica alastra-se e ameaça agricultura, saúde e economias. Mas pode ser chance para desmercantilizar a água e fazer dela um Comum global. Isso exige alianças, infraestruturas e investimentos robustos, antes que a última fonte seque
Publicado 12/08/2025 às 19:21 - Atualizado 13/08/2025 às 12:59

Por Mariana Mazzucato, no Projeto Syndicate | Tradução: Rôney Rodrigues
Enquanto líderes africanos se reúnem na Cidade do Cabo para a Cúpula de Investimentos em Água da África, não há espaço para ambiguidades: o mundo enfrenta uma crise hídrica sem precedentes que exige uma mudança de paradigma em como valorizamos e gerenciamos nosso recurso mais precioso.
A dimensão do desafio é impressionante. Mais da metade da produção global de alimentos vem de áreas com suprimentos de água doce em declínio. Dois terços da população mundial enfrentam escassez hídrica pelo menos um mês por ano. Mais de 1.000 crianças menores de cinco anos morrem diariamente, em média, por doenças relacionadas à água. E, se as tendências atuais continuarem, países de alta renda podem ver seu PIB encolher 8% até 2050, enquanto nações de baixa renda (muitas na África) enfrentarão perdas de 10 a 15%.
No entanto, essa crise também apresenta uma oportunidade extraordinária. Com a África do Sul assumindo a presidência do G20 (para a qual fui nomeada conselheiro especial do presidente Cyril Ramaphosa), o país pode liderar uma nova economia da água que trate o ciclo hidrológico como um bem comum global, e não como fonte de um commodity a ser acumulado ou comercializado.
O argumento econômico para a ação é irrefutável. O Painel Internacional de Alto Nível sobre Investimentos em Água para a África mostra que cada US$ 1 investido em água e saneamento resilientes ao clima gera um retorno de US$ 7. Com a África precisando de US$ 30 bilhões adicionais por ano para cumprir o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) sobre segurança hídrica e saneamento sustentável, a lacuna de financiamento é significativa – mas superável com a estratégia certa.
A Comissão Global sobre a Economia da Água (que co-presidi com Ngozi Okonjo-Iweala, diretora-geral da Organização Mundial do Comércio, Johan Rockström, diretor do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático, e o presidente de Cingapura, Tharman Shanmugaratnam) recentemente defendeu essa estratégia.
Tratar a água como um bem comum global e adotar abordagens orientadas por missões para transformar a crise em oportunidade exige que reconheçamos três fatos críticos.
Primeiro, a água nos conecta a todos – não apenas por rios e lagos visíveis, mas por fluxos de umidade atmosférica que atravessam continentes. Segundo, a crise hídrica é indissociável das mudanças climáticas e da perda de biodiversidade, que se aceleram mutuamente em um ciclo vicioso. E, terceiro, a água perpassa todos os ODS, desde segurança alimentar e saúde até crescimento econômico.
No entanto, com frequência, os investimentos em água seguem o roteiro fracassado do financiamento climático e de desenvolvimento. Há uma tendência a reduzir riscos para o capital privado sem garantir retornos públicos; a financiar projetos sem direcionamento estratégico; e a tratar a água como um problema técnico, e não como um desafio sistêmico.
Tais abordagens correm o risco de criar infraestruturas hídricas que servem mais aos investidores do que às comunidades, exacerbam desigualdades existentes e falham em abordar a natureza interconectada das crises da água, do clima e da biodiversidade.
Essa interconexão exige um novo marco econômico que vise moldar os mercados proativamente, em vez de apenas corrigir falhas após o fato. Precisamos migrar de uma mentalidade de custo-benefício de curto prazo para a criação de valor de longo prazo, o que requer investimentos orientados por missões que moldem mercados para o bem comum. Missões exigem metas claras – como garantir que nenhuma criança morra por água contaminada até 2030.
Uma vez estabelecidas as metas, todo o financiamento pode ser alinhado a elas por meio de abordagens intersetoriais que abranjam agricultura, energia, manufatura e infraestrutura digital. Em vez de selecionar setores ou tecnologias, o objetivo é encontrar parceiros dispostos em todos os setores para enfrentar desafios compartilhados. Esses investimentos orientados por missões também podem levar à diversificação econômica, criando novas oportunidades de exportação e caminhos de desenvolvimento.
Considere a abordagem da Bolívia na extração de lítio. Em vez de apenas exportar matérias-primas, o país está desenvolvendo estratégias para evitar a tradicional “maldição dos recursos naturais”, construindo capacidades domésticas de produção de baterias e participando diretamente da transição energética. Ao fazer isso, está convertendo sua riqueza de recursos em capacidade de inovação, fortalecendo cadeias de valor e criando novos mercados de exportação para atividades de maior valor agregado.
Atualmente, mais de US$ 700 bilhões por ano são destinados a subsídios para água e agricultura que frequentemente incentivam o uso excessivo e a poluição. Ao redirecionar esses recursos para agricultura eficiente no uso da água e restauração de ecossistemas, com condições claras vinculadas, poderíamos transformar a economia da água da noite para o dia. Para isso, bancos públicos de desenvolvimento podem fornecer capital de longo-prazo para infraestrutura hídrica, exigindo que parceiros privados reinvestam lucros na proteção de bacias hidrográficas.
A África está em posição única para liderar essa transformação. Seu vasto suprimento de águas subterrâneas permanece em grande parte não explorado, com 255 milhões de habitantes urbanos vivendo sobre reservas conhecidas. Combinadas com energia solar acessível, essas reservas representam uma oportunidade para revolucionar a agricultura.
Ao focar em eficiência e reúso, além de capacitação, compartilhamento de dados e monitoramento e avaliação, esse recurso hídrico subterrâneo relativamente estável, acessado por bombas movidas a energia solar, pode ser uma alternativa descentralizada que minimiza as emissões, resíduos e outros custos ambientais implícitos em grandes projetos de infraestrutura que perturbam fluxos naturais de água.
Por meio de Parcerias Justas pela Água – estruturas colaborativas que agrupam projetos solares-subterrâneos para aumentar sua atratividade financeira, garantindo propriedade comunitária – o financiamento internacional pode ser direcionado para infraestruturas hídricas que atendam tanto a objetivos nacionais de desenvolvimento quanto ao bem comum global.
A presidência do G20 pela África do Sul – a primeira de um país africano – oferece uma plataforma histórica para avançar essa agenda globalmente. Assim como o Brasil usou sua liderança no G20 e seu papel como anfitrião da próxima Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) para impulsionar ações climáticas, a África do Sul pode colocar a segurança hídrica no centro da agenda econômica global.
Com a Conferência da ONU sobre Água de 2026 no horizonte, e com a comunidade internacional reconhecendo que as mudanças climáticas não podem ser enfrentadas sem abordar a crise hídrica, é o momento para lideranças ousadas.
A Cúpula de Investimentos em Água da África não é apenas mais uma reunião, mas deve ser um marco decisivo. Este é o momento de deixar de tratar a água como um recurso local para governá-la como um bem comum global, passando da gestão de crises para a moldagem proativa de mercados e de enxergar investimentos orientados por missões como custo para reconhecê-los como base do crescimento sustentável.
A segurança hídrica sustenta as aspirações da África por saúde, resiliência climática, prosperidade e paz. Com os jovens africanos representando 42% da juventude global até 2030, investir em água equivale a investir no futuro do mundo. A questão não é se podemos agir, mas se podemos nos dar ao luxo de não agir.
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