Cinema: Pai e mãe na selva das cidades
Em A melhor mãe do mundo, a saga de uma mulher que escapa da violência doméstica com seus filhos – e, numa carroça, tenta reinventar a metrópole hostil. Outra estreia: Paterno, que aborda conflitos de um arquiteto entre a arte e o lucro imobiliário
Publicado 07/08/2025 às 17:00 - Atualizado 07/08/2025 às 17:13

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS
Chegam aos cinemas no mesmo dia (quinta, 7 de agosto) dois belos filmes brasileiros que, embora muito diferentes, dialogam subterraneamente de diversas maneiras, a começar pelos títulos: A melhor mãe do mundo e Paterno.
Mãe coragem
Comecemos pelo primeiro, dirigido por Anna Muylaert e ambientado em São Paulo. Trata-se, em linhas gerais, da história de Gal (Shirley Cruz), uma catadora de recicláveis que, depois de apanhar pela enésima vez do marido alcóolatra (Seu Jorge), presta queixa na polícia e foge de casa com os dois filhos pequenos, Rihanna (Rihanna Barbosa) e Benin (Benin Ayo).
Grande parte do filme consiste na saga dessa mãe com seus filhos numa carroça pelas ruas perigosas da metrópole. Desenvolve-se então uma narrativa em duas dimensões que se sobrepõem, se entrelaçam e eventualmente se fundem: de um lado, há a crônica da sobrevivência na cidade hostil, com um forte lastro documental; de outro, a fantasia engendrada pela mãe coragem para edulcorar a realidade e traduzir as agruras em experiências lúdicas para seus filhos.
Neste último viés, é impossível deixar de lembrar de A vida é bela, de Roberto Benigni, exemplo paradigmático da transfiguração do real para e pela imaginação infantil.
Da articulação entre esses dois eixos A melhor mãe do mundo extrai sua força. As imagens (sobretudo as tomadas do alto) da frágil carroça trafegando no caos ameaçador do trânsito são uma representação visual poderosa do drama narrado.
Reinventando a cidade
Para sobreviver àquelas condições, só mesmo o amor de mãe e o poder da fantasia, instada a ressignificar os locais da cidade e suas funções. O exemplo mais expressivo é a cena em que Gal e seus filhos fazem da fonte da praça Ramos, abaixo do Teatro Municipal, uma piscina euforizante. É quase uma apropriação antropofágica, festiva, paulistana e corintiana, da cena antológica de Anita Ekberg e Marcello Mastroianni na Fontana di Trevi, em A doce vida. Essa apropriação, aliás, já é praticada ocasionalmente por meninos de rua nos lagos e fontes das cidades brasileiras.
Do mesmo modo, é significativa a maneira como a pequena família toma posse do “ouro do lixo”: roupas, brinquedos e utensílios descartados pela parte rica da sociedade ganham uma segunda vida trazendo alegria e um esboço de autoestima aos desvalidos.
O Corinthians, quase como símbolo da cultura popular paulistana, é uma presença constante no filme, talvez até de modo exagerado. Faz parte do imaginário das crianças e serve como elo de pertencimento à cidade, à tribo, ao mundo.
Com tudo isso, o tema da violência contra a mulher, estopim do drama, fica em segundo plano até a última terça parte do filme, quando reemerge com vigor.
Conflitos resolvidos
As duas dimensões narrativas citadas – a dura crônica urbana e a transfiguração fabular – fundem-se de certa forma no final um tanto forçado e edulcorado, em que se resolvem de modo demasiado fácil as grandes questões: a liberdade pessoal, a moradia, o trabalho, o bem-estar das crianças.
Mas o que cala mais fundo na inteligência e na sensibilidade do espectador, acredito, são as imagens poderosas daquela mulher que enfrenta o mundo bruto dos homens para defender sua prole – duas crianças, aliás, de encanto irresistível.
A atuação da protagonista Shirley Cruz, premiada em festivais mundo afora, é daquelas que ficam na memória. No recente festival do cinema sul-americano de Bonito (MS), onde o filme ganhou o prêmio do público, Shirley disse que inspirou sua postura e seus gestos na figura do búfalo. A imagem que me veio ao ver o filme foi a de uma lutadora marrenta entrando no ringue. E o ringue é a cidade de São Paulo.
Paterno
Se São Paulo é personagem central em A melhor mãe do mundo, Recife tem o mesmo protagonismo em Paterno. Se o filme de Anna Muylaert exalta a figura da mãe, o de Marcelo Lordello questiona a do pai.
Em Paterno toda a ação gira em torno de um personagem complexo e contraditório, o arquiteto e empresário Sérgio (Marco Ricca, excelente como sempre), que oscila entre seus sonhos de projetos arquitetônicos inovadores e o desejo imediato do lucro imobiliário. Dirige com o irmão mais pragmático (Nelson Baskerville) a incorporadora herdada do pai moribundo, e tenta envolver o filho pré-universitário (Gustavo Patriota) nos negócios da família.
Desfiguração do Recife
Esse drama do arquiteto dividido entre o idealismo, alimentado pela nostalgia do tempo em que ouvia Chico Buarque e Belchior “até furar o disco”, e o cru interesse capitalista é espelhado no destino da cidade do Recife, que expulsa os pobres da orla marítima e desfigura bairros inteiros em favor da verticalização e do lucro imobiliário.
No centro da disputa está um terreno na tradicional comunidade Brasília Teimosa, que a empresa de Sérgio quer converter num grande empreendimento de elite. Entre o pai e o filho, entre a arte e o dinheiro, Sérgio se dilacera quase silenciosamente. No fundo ou nas beiras do quadro, a cidade em transformação, as tramoias políticas, os conflitos familiares.
Com um roteiro enxuto, uma encenação precisa e um elenco afiado que une várias gerações, Paterno é um legítimo representante da melhor linhagem do cinema pernambucano, ao qual o próprio Lordello já havia dado o ótimo Eles voltam (2012).
Nem parece que a trajetória do filme foi tão demorada e conturbada. Concebido em 2013, Paterno foi rodado em 2017 e topou pela frente os desastrosos governos Temer e Bolsonaro, além da pandemia. Teve suas primeiras exibições em festivais em 2022 e só agora chega ao circuito exibidor.
Nesse intervalo de oito anos, alguns dos atores, então pouco conhecidos, ganharam destaque em outros filmes e na televisão. É o caso de Thomás Aquino (Bacurau, Pedágio, Vale tudo, Guerreiros do sol) e Rejane Faria (Marte um, A melhor mãe do mundo). Salvo engano, foi o primeiro filme do jovem talento Gustavo Patriota (Fim de festa, Chão de estrelas, O deserto de Akin). No elenco veterano, merece destaque a presença luminosa de Selma Egrei como matriarca implacável, de cariz shakespeariano. No fim das contas, são sempre as mães que dominam.
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