Fundada a Rede de Pesquisa Marxista na Saúde
Leia a carta política do I Colóquio Grupos de Pesquisas Marxistas na Saúde. Evento levou à criação da Rede de Pesquisa Marxista na Saúde, um novo “espaço permanente de produção científica coletiva e resistência teórico-política” em defesa do SUS
Publicado 06/08/2025 às 19:22 - Atualizado 06/08/2025 às 19:30
Uma carta da Rede de Pesquisa Marxista na Saúde
No mês de junho, o I Colóquio de Grupos de Pesquisas Marxistas na Saúde foi realizado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), com o tema “Diálogos críticos sobre o Estado Capitalista no campo da Economia Política da Saúde”. O evento se concluiu com a criação da Rede de Pesquisa Marxista na Saúde, uma notável articulação na academia brasileira que se apresenta com com o objetivo de “assegurar um espaço permanente de produção científica coletiva e resistência teórico-política frente às contradições e violências da relação Estado e capital que atingem nossos modos de viver, com fortes ataques à saúde pública universal”, como se lê no material a seguir.
Comprometido com um jornalismo em defesa do SUS e a difusão de pontos de vista críticos no campo da saúde coletiva, Outra Saúde acompanhou parte das atividades do colóquio e agora publica a Carta de São Paulo, documento final da atividade enviado a este boletim por seus participantes. Boa leitura! (G. A.)
Carta de São Paulo: I Colóquio de Grupos de Pesquisas Marxistas na Saúde
Na política, o erro acontece por uma inexata compreensão do que é o Estado. (Antonio Gramsci) [1]
No momento em que o I Colóquio de Grupos de Pesquisas Marxistas na Saúde (GPMS) é realizado, em junho de 2025, na Faculdade de Saúde Pública (FSP) e na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), a expansão do capital privado segue firme no processo de destituição do caráter público e universal do Sistema Único de Saúde (SUS) – há que se dizer, para que nunca esqueçamos, com a conivência e papel ativo inclusive de governos oriundos da esquerda. Isto porque, o programa “Agora Tem Especialista” [2] acabava de ser lançado pelo Ministério da Saúde (MS), especificamente em 30 de maio de 2025, constituindo-se mais uma ação em prol da aceleração do processo de privatização do SUS em total dissonância com a proposta inicial da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) [3]. Intensifica-se o caminho de transferência de recursos públicos ao setor privado, juntamente com o estabelecimento do “perdão” das dívidas deste setor, com a justificativa de que a rede de assistência própria do SUS (administração direta) não vem respondendo a contento aos atendimentos especializados, em setores como a cardiologia e oncologia, por exemplo, sem possibilidade de redução das “filas”. Novamente, assistimos à adoção de uma política, dentro de um governo federal dito “progressista”, que assegura a apropriação do fundo público pelo capital no ambiente da crise contemporânea do capitalismo.
Na realidade, há tempos percebe-se o aumento da lógica privatista no SUS, resultando em vários riscos para o seu caráter estatal, universal e de qualidade, com destaque para:
a) o processo de subfinanciamento e desfinanciamento desse sistema;
b) a maior presença, em todo o país, das modalidades privadas de gestão, por meio das Organizações Sociais de Saúde, especialmente na Atenção Primária à Saúde;
c) a consolidação de formas de alocação de recursos federais para os municípios à revelia dos critérios de necessidades em saúde – o que provoca o aumento das desigualdades e incorpora, cada vez mais, as lógicas gerenciais de desempenho; e
d) o aumento dos atributos de “modernização” e racionalização da atuação estatal no SUS, associados aos interesses de mercado, tornandoexclusiva a atenção à saúde para a população mais vulnerável (novas focalizações), distante do que o SUS preconiza, qual seja, o direito à saúde como social e universal.
A realização do I Colóquio de GPMS, nesse cenário, foi motivado a discutir os problemas da saúde pública brasileira, a partir de uma perspectiva muito mais profunda, buscando compreender os problemas do Estado capitalista em sua relação orgânica com o movimento do capital, justamente para entender as essencialidades dos obstáculos impostos à implementação do SUS, sobretudo nos tempos atuais de crise. Assim, foi promovido um caminho científico para a compreensão dos problemas do SUS, desde de uma perspectiva crítica e radical, levando a que os Grupos de Pesquisa Marxistas no setor saúde apresentassem e discutissem seus estudos sobre a natureza do Estado capitalista, com destaque para os limites estruturais de suas políticas públicas, especialmente as da área da saúde.
O esforço teórico e político empreendido pelo I Colóquio foi o de não se restringir ao que se tornou o lugar comum das análises do campo da saúde coletiva: abordagens superficiais que habitualmente se encerram nas análises meramente institucionais acerca dos aspectos operacionais do SUS. Constatou-se nas discussões do I Colóquio que a referência mais frequente ao Estado capitalista no campo da saúde coletiva tem sido aquela que dissimula sua natureza capitalista, que o assimila à luz de uma suposta neutralidade e, ainda, o vê apenas com uma instância administrativa de organização coletiva da vida social. Não à toa, as frações majoritárias da esquerda brasileira neste campo, fortemente representadas, costumam defender, especialmente nos momentos de crise, a “reforma” do Estado, no sentido da criação de mais políticas públicas para o enfrentamento da crise capitalista contemporânea, mas sem levar em conta o quanto este mesmo Estado é e tem sido a salvaguarda dessa crise para o capital. Insistindo no erro, estas mesmas forças elegem o chamado capital financeiro como a metade podre da maçã (cuja metade saudável seria o capital produtivo) e apostam – como sociais-democratas utópicos – na construção de um Estado de Bem-Estar Social tardio.
Dessa forma, estamos convencidos de que, quando não demonstrada a natureza capitalista do Estado, com todo o rigor científico que isso envolve, o que resta é apenas o reforço do apelo por uma luta circunscrita à defesa dos direitos, pela via institucional do Estado, como única saída factível, pondo de lado desse modo (ou quando muito relegando a segundo plano) a luta anticapitalista e a defesa da real emancipação da classe trabalhadora.
Assim, o I Colóquio inaugura um novo ciclo de resistência articulada, ao lado do importante papel que vem sendo desempenhado pela Frente Nacional Contra a Privatização do SUS (FNCPS), bem como de produção científica coletiva e de afirmação de projetos societários orientados pela crítica radical da ordem vigente e pela construção de alternativas contra hegemônicas no campo da saúde. Como fruto dessa forte articulação, o I Colóquio fundou a Rede de Pesquisa Marxista na Saúde, de forma a assegurar um espaço permanente de produção científica coletiva e resistência teórico-política frente às contradições e violências da relação Estado e capital que atingem nossos modos de viver, com fortes ataques à saúde pública universal.
I Colóquio de Grupos de Pesquisas Marxistas na Saúde, 24 de junho de 2025
REFERÊNCIAS
[1] Gramsci A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2000. (vol. 3).
[2] Ministério da Saúde (BR). Portaria GM/MS n. 7.266, de 18 de junho de 2025. Dispõe sobre o Programa Agora Tem Especialistas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: MS; 2025 [citado 18 jul. 2025]. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-7.266-de-18-de-junho-de-2025-637187199.
[3] Dantas AV. Do socialismo à democracia: tática e estratégia na Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017.
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