Arte no cárcere: a sensibilidade para (re)integrar

Em 2001, um clipe de rap gravado no Carandiru inspira projetos que costuram o passado e o presente. Agora, coletivos difundem a arte entre presidiários e ex-presidiários. Com escritas que libertam, ou trabalhos manuais, dão vazão a angústias e projetam esperanças

Por Mariana Rosetti, no Nonada

São Paulo (SP) — Psicologicamente, saí da prisão muito mal, uma mistura
entre feliz por estar livre e ao mesmo tempo pânico social
do mundão. Lembro de sentir muitos ruídos, perceber
muitas cores, muitas informações no geral. Eu pensava:
esta gente toda está livre e nem imagina o privilégio que é isso

.

(trecho do livro Escritas para Libertar)

As palavras são de Ropi Rocio, artista circense argentina de 25 anos que passou dois meses no sistema prisional pernambucano em 2022. Viajante nômade, sustentava-se fazendo malabarismo nas ruas quando foi presa em Porto de Galinhas após se defender de uma tentativa de estupro.

Para uma mulher acostumada à liberdade dos caminhos incertos, —  Ropi havia percorrido cinco países vivendo da arte de rua, dormindo em praias e praças, sem horários ou regras fixas —  estar em uma cela pequena com outras 14 mulheres, sem falar português direito, era “bem o contrário do meu estilo de vida”, conta. 

Dentro da prisão, uma amiga levava cadernos, livros e lápis de cor durante as visitas e Ropi escrevia diariamente sobre as pessoas que conhecia e as intensidades que atravessavam seu corpo e sua mente. “É uma boa forma de você desabafar e tirar tudo para fora, porque não tem muitas possibilidades de você canalizar tudo o que está acontecendo”, define.

Foi em uma marcha do 8 de março de 2023 que encontrou a Liberta Elas— coletiva nordestina de mulheres feminista, antirracista e abolicionista criada em 2018. “Eu vi um monte de menina com tornozeleira. Eu estava de tornozeleira também. Aí vi as blusas que têm uma frase que diz ‘a prisão é uma questão feminista’”, relembra. “Me senti super identificada. Não me afastei mais”. 

O Nonada Jornalismo conversou com pessoas privadas de liberdade de São Paulo que viram na arte uma possibilidade de se expressar, de fabular sonhos e planejar futuros. As atividades são possíveis com a ajuda de organizações sem fins lucrativos e coletivos que veem na cultura uma possibilidade de transformação. 

Para Ropi Rocio, escrever sobre a experiência no cárcere mexe em “uma ferida que ainda está aberta”, mas considera essencial o diálogo, para que as pessoas tenham “outra visão de quem passa pelo cárcere, porque tem muito julgamento, tem muito preconceito ainda”. 

Da esquerda para a direita, Juliana Trevas, Penha Santos, Ropi Rocio, Clarissa Trevas, Cris Souza, Rhay Santos e Nara, co-autoras do livro Escritas para Libertar. (Foto: arquivo pessoal)

Um policial penal colocou todas nós na quadra da unidade prisional, 
no escuro, com mijo, ratos e baratas. 
Tinha mulher grávida e mulheres mais velhas chorando. 

[…]

Muitas mulheres tiveram que ficar agachadas na quadra e o policial gritando, sabendo que não tinha sido ninguém dali que pegou o celular da professora.  
Ele fez isso por ruindade. 
Quando lembro desses momentos horríveis da minha vida, fico muito triste.

(trecho do livro Escritas para Libertar)

Quem escreve as palavras acima é Penha Santos, hoje com 50 anos. Passou três meses presa em 2019, “uma experiência horrível que não desejo para ninguém”. Decidiu escrever suas memórias durante o processo coletivo de construção do livro Escritas para Libertar

Penha encontrou nas palavras uma forma de processar tudo que viveu no cárcere. “Porque você entra de um jeito e sai de outro. Você sai sem sem lembrar de quase nada. Você esquece, você sai com uma depressão, você sai para alguns sem valor nenhum. Porque quem passa pelo cárcere, tudo fica difícil quando chega aqui fora”, pontua. 

Sua vivência é somada às de Ropi, Cris Souza, Nara, Rhay Santos, Clarissa Trevas e Juliana Trevas – sendo as duas últimas também organizadoras e editoras do livro. Todas são integrantes do Liberta Elas que, desde 2018, busca acolher, escutar e estabelecer diálogos com mulheres privadas de liberdade. 

“Não era fácil relembrar, não era fácil escrever, muitas tinham dificuldade de encarar a escrita por medo, por insegurança. Também não era tão fácil falar de assuntos que haviam acontecido no cárcere”, explica Juliana Trevas, sobre os encontros que viabilizaram a escrita do livro.

Cada texto carrega uma perspectiva única sobre as violações sistemáticas do sistema prisional. Como afirmam no prefácio, “escrever sobre nossas vidas é uma forma de deixar no mundo nossas marcas, versões, perspectivas, fragmentos de experiências que vivemos e de batalhas que travamos”.

Capa do livro Escritas para Libertar (Foto: arquivo pessoal)

Costurando futuros

Fazia muito que Júlia (nome fictício) não contava o tempo. Desde que foi presa, condenada a mais de dez anos de prisão, os dias passavam devagar e os números — única forma de calcular a pena — eram seus inimigos. A relação mudou quando passou a dividir a cela com uma professora aposentada que a ensinou a arte do crochê. 

Com barbantes e agulhas comprados de outras presas — trocando maços de cigarros, a moeda da prisão —, Júlia descobriu uma nova forma de contar: pontos altos, pontos baixos e carreiras que cresciam sob seus dedos. A técnica manual trouxe acalento para os dias que custavam a passar. 

Linhas e agulha de crochê representam os materiais usados por Julia (Foto: Mariana Rosetti/Nonada)

Com a prática, Júlia começou a vender suas criações e se especializou no ‘jogo de cela’, composto por 10 peças: “a cortina da porta, as duas pedras, o tapetinho do chão da porta, o tapete grande que vai até o banheiro, as duas muretinhas [da cela]. Dentro do banheiro: a tampa do vaso, do pé do vaso e o tapetinho da beira da pia”, explica. 

Não raro, passava pelos corredores dos pavilhões e via seus trabalhos expostos nas celas: tapetes com desenhos de uvas, cortinas com formatos de anjo e até painéis com gatos estampados. “Era gratificante, né? Eu tinha um orgulho muito grande de mostrar isso para o meu pai, para o meu irmão. Que eu aprendi, mesmo estando no lugar errado. O que eu aprendi de bom lá dentro”, diz Julia, que define: “Terapia. Para a gente o crochê é uma terapia”. 

Júlia conversa com a reportagem do Nonada em um encontro da Por Nós —  uma rede de mulheres sobreviventes do cárcere, pensada para e por mulheres egressas do sistema prisional —  durante uma saída temporária. A conversa é em tom saudoso, já que há meses foi proibida a entrada de agulhas e barbantes da penitenciária em que cumpre pena. 

Segundo o Relatório de Informações Penais (Relipen) da Secretaria Nacional de Políticas Penais, no segundo semestre de 2024, 670.265 pessoas privadas de liberdade compunham o sistema prisional brasileiro. Sendo a capacidade total de 494.379 , um déficit de 175.886 vagas. 

O número de presos no país encheria mais de 8 estádios do Maracanã completamente lotados — e ainda sobrariam milhares de pessoas sem assento. Para cada 317 brasileiros — o Brasil tem 212,6 milhões de habitantes —  uma pessoa está privada de liberdade.

Em outubro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que “há um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, responsável pela violação massiva de direitos fundamentais dos presos”. Superlotação, demora na garantia de direitos, violência e falta de itens básicos, são comuns no dia a dia prisional. 

É nesse cenário que a arte emerge como uma trincheira coletiva de resistência. Seja pela linguagem manual, a música, a oralidade ou a escrita, cada verso, cada ponto, cada palavra se converte em testemunho de que, por trás das grades e além delas, a arte persiste como ato político de existir.

O antagonismo entre a obra e o criador

Há 11 anos, Anagali Marcon Bertazzo, mestre em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos, escrevia o artigo “Arte no Cárcere: Instrumento de (Re)Integração Social e Humanização da Pena”, ao lado da arteterapeuta Maria Linduina Mendes Maia.

O texto já apontava para a falência do modelo carcerário da época e para a potência da arte como ferramenta de reconstrução prática, mas também subjetiva. As autoras defendem no texto que a pena de prisão não apenas isola fisicamente, mas institui, simbolicamente, um rompimento com o laço social. 

“O Estado, ao decretar, através da sentença do juiz, a pena de prisão, explicita, formaliza e consagra uma relação de antagonismo entre o condenado e a sociedade”. Ou seja, “a pessoa que passou pelo sistema carrega esse estigma por muito tempo. Às vezes para sempre. A sociedade não quer olhar para isso, não quer enxergar. É mais fácil fingir que não tem nada a ver com a gente”, afirma Anagali.

A arte, nesse contexto, se revela como uma linguagem capaz de religar os fragmentos, “na reorganização do tecido social desfeito pela violência, pelo ódio, pela ira”, escrevem as autoras. Por meio da criação artística, pessoas privadas de liberdade encontram espaço para acessar seus sentimentos, simbolizar dores, projetar esperanças e reafirmar sua própria dignidade — esta que o sistema tantas vezes insiste em negar.

Para as autoras, a arte educa o sentir. “A arte não possibilita apenas um meio de acesso ao mundo dos sentimentos, mas também o seu desenvolvimento, a sua educação. Da mesma forma que o pensamento lógico, racional, se aprimora com a utilização constante de símbolos lógicos […], os sentimentos se refinam pela convivência com os símbolos da arte”, pontuam. 

Dentro das prisões, essa convivência é um ato de resistência emocional — e, ao mesmo tempo, um gesto radical de reinvenção subjetiva.

Pavilhão 8

Reportagem veiculada na Folha de São Paulo, em 2001, sobre a gravação do clipe no Carandiru, guardada no arquivo pessoal do grupo (Foto: Mariana Rosetti/Nonada)

Em 2001, Flavio Sousa (FW) e Washington Paz (WO) estamparam as manchetes de vários jornais com um feito inédito: a gravação de um videoclipe do rap ‘8° Pavilhão’, dentro da Casa de Detenção do Carandiru, o maior presídio da América Latina —  desativado em 2002. 

O grupo foi formado em 1996: FW cantava pelos corredores do complexo, enquanto WO era conhecido por escrever muito. Um amigo em comum apresentou os dois e, pouco depois, nasceu o Comunidade Carcerária. “Nós queríamos mudar a rotina, porque nós estávamos cansados de sangue, de droga, de treta, de morte”, explica FW. “A gente queria fazer um bagulho diferente.”

O ingresso dos dois no Carandiru aconteceu quatro anos após a maior chacina em um presídio brasileiro, quando uma intervenção da Polícia Militar causou a morte de 111 detentos número oficialmente divulgado pela polícia —  além de vários feridos. Embora FW e WO não tenham vivenciado o massacre, a atmosfera de abandono, descaso e morte, contam, ainda rondava o local.

O objetivo do Comunidade Carcerária, então, foi natural: “Vamos montar o grupo para resgatar, tirar as molecada do crime? Para mandar mensagem, para resgatar a molecada. O nosso foco vai ser os moleque”, lembra FW. A ideia era impedir que mais pessoas chegassem ali. “A gente fez um pacto de quando sair montar um espaço cultural onde a gente mora”, complementa Washington.

Na imagem, Washington Paz (WO), durante ensaio do Comunidade Carcerária no Instituto Cultural GR2C (Foto: Mariana Rosetti/Nonada)

Enquanto ainda estavam presos, o primeiro ato foi articular com os funcionários da Casa de Detenção e criar o espaço “Talentos Aprisionados”, um centro cultural dentro do presídio que atraía jovens de vários pavilhões. “Quando a gente começava a ensaiar, enchia”, relembra WO.

Pouco tempo depois, a liberdade cantou para Washington que, mesmo no ‘mundão’ — como os presos chamam o lado de fora — lutava para que o Comunidade Carcerária chegasse a mais pessoas. E chegou. Em 2001 foram chamados para gravar um CD. 

Esse mesmo disco, que FW ganhou no dia da gravação, foi destruído tempos depois durante uma blitz do choque na prisão. “Os caras entraram, nós ficamos tudo de joelho lá fora, os funcionários entraram, quebraram o meu CD tudinho”, recorda. Os pedaços do CD foram colados em uma agenda que montou na prisão.

CD que pertence ao FW quebrado durante uma blitz na casa de detenção. (Foto: Mariana Rosetti/Nonada)

O grupo recebe a reportagem do Nonada no espaço cultural que foi sonhado em 1996, e se tornou realidade em 2020: o Instituto Cultural GR2c, encabeçado por Viviane de Oliviera, esposa de WO. O espaço realiza atividades voltadas à cultura, como oficinas de DJ, breaking, grafite, poesia e rima para crianças e adolescentes da comunidade local. Para o público adulto, há cursos de tranças afro, unhas de fel, maquiagem e autocuidado. 

Hoje, o espaço na Vila Missionária, zona sul de São Paulo, é mantido com recursos próprios e rifas virtuais. “A gente não sobrevive do rap, a gente sobrevive do nosso trabalho”, pontua WO. “Se fosse por causa do dinheiro, nós não estava mais no rap.”

Para eles, o espaço é sagrado: “É um lugar onde pessoas entram com problemas, com dificuldades… e quando saem, saem transformadas.” O que o Estado deveria fazer e não fez, eles fazem: “A gente tá querendo devolver para as nossas juventudes de hoje em dia o que a gente não teve oportunidade”, pontua Flávio. É o cumprimento de um código de honra feito há mais de 25 anos, entre as grades da casa de detenção.

O passado e o presente

A conexão entre o antes, o agora e o depois é o que mantém o Memórias Carandiru. O núcleo nasceu em 2018 da união entre sobreviventes do cárcere e familiares que buscavam preservar e difundir a história da Casa de Detenção de São Paulo “pelo direito à memória, verdade, justiça e reparação”, definem.

“Pensar na memória do Carandiru é pensar nas minhas memórias, nas memórias de todos nós presos aqui que estão juntos, que nós somos um coletivo”, explica Maurício Monteiro, educador social do Memórias Carandiru, pesquisador e sobrevivente do massacre da Casa de Detenção de São Paulo.

O grupo utiliza a oralidade como ferramenta de preservação da memória. Através de roteiros de caminhada dialogada pelo território onde funcionava o complexo prisional — hoje transformado em parque — promovem reflexões sobre os atravessamentos do sistema prisional brasileiro. Cada encontro aborda temas específicos, como encarceramento feminino ou rompimento de vínculos familiares.

“A nossa única arma contra tudo isso é a oralidade. Então nós estamos lá no território denunciando todas essas atrocidades, porque é uma forma de proteção. É a única arma que a gente tem, é o que a gente traz conosco, esse conhecimento empírico”, pontua Helen Baum, educadora social no grupo, pesquisadora das maternidades encarceradas e sobrevivente do cárcere.

“Carandiru evoca nas pessoas cada um uma coisa. Tem gente que lembra o massacre, porque não tem como, está marcado na história da nossa sociedade. Mas gerações mais novas já falam: ‘Ah, o metrô, o parque, o filme, o livro’”, observa Nádia Silvia Lima, educadora e pesquisadora em memória e patrimônio prisional.

Para o grupo, lutar contra o apagamento da Casa de Detenção significa lutar contra os massacres atuais que continuam acontecendo no sistema prisional. Walter Santos, por exemplo, é integrante   do núcleo e bastou um mês preso para sofrer os “estigmas de quem ficou 16 anos, de quem ficou 5 anos preso […]. O número da matrícula é para sempre”, avalia.

Os roteiros são realizados com apoio da Coordenadoria Geral de Memória e Verdade do Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas (CGMVT), órgão do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, e é aberto ao público. 

Mais do que preservar o passado, o Memórias do Carandiru atua como ponte entre diferentes temporalidades, mostrando que falar de Carandiru não é apenas falar de história, mas também do presente e futuro do sistema prisional brasileiro. Como resume Helen: “É de conscientização da sociedade mesmo, que a própria sociedade empurra as pessoas que não têm oportunidades para o crime.”

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