Quatro PLs em busca da soberania digital brasileira

Projetos buscam taxar captura de dados privados e lucros das big techs com anúncios. Além de corrigir o “vazio fiscal” no setor, arrecadação retornaria em políticas de inclusão digital. A proposta mais ambiciosa, de Boulos, propõe repasse direto ao usuário das redes

.

A ofensiva de Donald Trump contra o Brasil no comércio exterior acendeu uma luz amarela em parlamentares de esquerda na Câmara dos Deputados. O anúncio do tarifaço de 50% sobre os produtos exportados para os Estados Unidos, além da abertura de um investigação sobre práticas comerciais no âmbito da Seção 301, o que pode resultar em medidas não-tarifárias, revelou que a regulação das big techs estadunidenses é uma preocupação daquele governo em relação ao estado brasileiro.

Este movimento causou uma reação dentro do Congresso e do Governo Lula que pode resultar na aceleração e tentativa de aprovação de projetos de leis que tratam, principalmente, da regulamentação de tributos que incidam sobre a receita das empresas de tecnologia dos EUA. Destaco neste texto quatro projetos de lei apresentados por deputados do PT e do PSOL, ou que já tramitavam na câmara baixa, que buscam garantir soberania digital e justiça tributária sobre a geração de riqueza por empresas que pagam poucos impostos no Brasil. Alguns deles vão além do estabelecimento de tributos e propõem a monetização de dados e a redistribuição desta riqueza para os usuários de internet que a geram diariamente.

· PLP 157/2025 — Contribuição Social Digital e “PIX das Big Techs” — Gulherme Boulos (PSOL-SP)

O PLP 157/2025 propõe a criação de uma Contribuição Social Digital (CSD)de 7% sobre a receita bruta obtida pelas plataformas digitais cuja receita global com a coleta de dados e veiculação de anúncios publicitários tenha sido superior a R$ 500 milhões no ano anterior. Seu diferencial está em transformar essa tributação em um instrumento redistributivo direto, com metade da arrecadação sendo devolvida à população brasileira por meio de um mecanismo apelidado de “PIX das Big Techs”.

O projeto prevê que esse retorno financeiro seja feito diretamente a usuários maiores de 18 anos cadastrados nas plataformas, funcionando como uma espécie de dividendo digital. A outra metade da arrecadação será aplicada em políticas de inclusão digital, conectividade em escolas públicas, infraestrutura pública de armazenamento e processamento de dados e incentivo a tecnologias abertas. O projeto também proíbe que as empresas repassem esse custo aos usuários, ou que retirem a gratuidade de serviços e acesso.

A governança da contribuição será feita por um comitê interinstitucional com participação da sociedade civil, universidades e órgãos reguladores. O PLP 157/2025 se destaca por introduzir inovação normativa e social, buscando garantir que os lucros gerados por plataformas com base em dados de usuários brasileiros retornem à própria sociedade, promovendo soberania digital, equidade econômica e justiça social.

· PLP 153/2025 — Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE-Digital) — Paulo Guedes (PT-MG)

O PLP 153/2025 institui uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) incidente sobre receitas obtidas por grandes empresas de tecnologia digital no Brasil, especialmente em atividades de publicidade online e monetização de dados. O objetivo central é criar um mecanismo de tributação voltado a plataformas digitais com atuação relevante no país, mas que atualmente operam com baixa carga tributária proporcional, apesar de lucros expressivos.

O projeto define critérios de “presença econômica significativa”, como número de usuários e volume de receita, para estabelecer quem deve pagar o tributo. A alíquota proposta varia entre 2% e 5%, de acordo com faixas de faturamento bruto, e incide sobre receitas oriundas de publicidade e comercialização de dados, com exceções previstas para serviços gratuitos e organizações sem fins lucrativos.

Parte da arrecadação será destinada a fundos como o FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e à infraestrutura digital pública, fortalecendo o ecossistema nacional de inovação. O projeto não prevê repasse dos custos aos usuários, e reforça a necessidade de a regulação da economia digital estar alinhada com os princípios da justiça fiscal e soberania nacional por meio da gestão de recursos críticos da Internet por intermédio do Governo.

· PL 4976/2024 — Lei das Plataformas Digitais — Pedro Uczai (PT-SC)

O PL 4976/2024 trata da regulação das plataformas digitais, com foco em responsabilidade civil, moderação de conteúdo, transparência algorítmica e prevenção de danos sistêmicos. O projeto abrange redes sociais, mecanismos de busca e marketplaces, e define critérios para identificar plataformas de grande porte, com obrigações específicas em relação à segurança, privacidade e combate à desinformação.

A proposta obriga plataformas a adotarem medidas de moderação de conteúdo nocivo, com regras claras para remoção, notificação e recursos de contestação. Além disso, trata do uso de inteligência artificial generativa, especialmente em períodos eleitorais, estabelecendo medidas de transparência e prevenção de manipulação por meio de deepfakes, robôs e contas inautênticas.

Outro eixo do projeto é a criação de obrigações de transparência, como a publicação de relatórios periódicos, e regras sobre publicidade digital, inclusive impulsionamento político. O PL também introduz sanções e a possibilidade de responsabilização por omissão diante de conteúdos ilícitos e violações de direitos, representando um esforço de modernização regulatória em consonância com padrões internacionais como o Digital Services Act europeu.

· PLP 234/2023 — COFINS e Monetização de Dados — Arlindo Chinaglia (PT-SP)

O PLP 234/2023 propõe uma alíquota de 10% de Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) incidente sobre a receita bruta auferida por pessoa jurídica que explore serviços de comunicação por meio de plataformas eletrônicas online, aplicações de internet, marketplaces, portais ou sítios na rede mundial de computadores — Internet, qualquer que seja o local de seu estabelecimento, que, sozinha ou em combinação com outra pessoa jurídica, coleta, processa, compra, vende ou compartilha anualmente a informação pessoal de 50 mil ou mais titulares de dados ou agregados familiares, e aufira receita mensal acima de US$ 25 milhões, ou o equivalente em outra moeda, por serviços prestados em todo o mundo, ou R$ 10 milhões por serviços prestados no Brasil.

A proposta busca preencher lacunas da tributação tradicional, que não consegue capturar adequadamente a atividade econômica de empresas digitais transnacionais. Com estrutura mais simplificada, o PLP 234/2023 visa garantir isonomia tributária e permitir maior arrecadação de empresas que lucram com usuários e dados brasileiros, mesmo sem estarem fisicamente estabelecidas no país.A receita decorrente seria destinada ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, para ser aplicado em ações direcionadas a famílias cuja renda per capita seja inferior à linha de pobreza, assim como indivíduos em igual situação de renda, e populações de municípios e localidades urbanas ou rurais, isoladas ou integrantes de regiões metropolitanas, que apresentem condições de vida desfavoráveis.

Perspectivas comuns e diferenciais

Como se vê, embora com estratégias distintas, todos os projetos convergem em torno da ideia de que as big techs devem ser reguladas e contribuir financeiramente com o país. A diferença está no grau de ambição social e nos instrumentos regulatórios propostos. Os projetos mais voltados à tributação (PLP 153, 157 se distinguem do PL 4976/2024, que foca mais em responsabilidade e transparência regulatória, com o endereçamento da questão da monetização de dados. Já o PLP 234/2023 aborda o tema em perspectiva mais ampla, dispondo sobre o Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados, a ampliação da proteção aos dados pessoais e garantia de sua propriedade pelo titular, a remuneração do titular pelo uso de dados por ele autorizados e a destinação, também, a programas de transferência de rendas, das multas aplicadas em caso de descumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Na tabela seguinte, apresento uma síntese dos pontos em comum e os diferenciais entre as matérias.

Hipóteses prováveis

Analisando todo o conteúdo dos PLs, fica claro que o PLP 157/2025, de autoria de Guilherme Boulos, é o único que cobre o tema da justiça social, combinando tributação com transferência direta de renda à população usuária de plataformas (modelo de redistribuição digital), além de prever: governança participativa (comitês com sociedade civil e universidades); foco em infraestrutura pública e proteção de dados; proibição de repasse do custo ao usuário (mantendo gratuidade); e alíquota significativa (7%) com destinação clara e socialmente orientada. Contudo, o PL prevê a transferência de 50% da arrecadação aos que sejam usuários cadastrados, devendo o regulamento levar em consideração “métrica que não estimule a criação de novos usuários nas plataformas, principalmente crianças e adolescentes”, mas não menciona como será feita a distribuição aos usuários, ou seja, se será proporcional à frequência ou intensidade de uso, ou igualitária. Os demais projetos, com exceção do PLP 234 que também trata de monetização de dados e destinação dos recursos arrecadados pela alíquota de COFINS ao Fundo de Combate à Pobreza, têm méritos técnicos e fiscais, mas não incorporam mecanismos redistributivos diretos nem aprofundam tanto os aspectos de soberania tecnológica ou de inclusão digital.

Pelo que se tem dito, o Governo Lula pode vir a apoiar um dos PLs mais distributivos (157/2025 ou 153/2025) para não assumir o ônus de encaminhar uma nova proposição, além das duas que já cogita enviar ao Parlamento, e as críticas sobre aumento de carga tributária que, inevitavelmente, surgirão. É importante destacar que o Ministério da Fazenda possui uma minuta pronta de projeto de lei que prevê um maior ambiente de concorrência na economia digital, mas que pode não ser enviado ao Legislativo neste momento. Com outros Ministérios, a pasta também está formulando um pacote de ações para incluir uma contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE) que recaia sobre as plataformas digitais. Como informado pela imprensa, o tributo seria uma alíquota de 3% que incidiria sobre a publicidade de empresas de serviços digitais com alto faturamento. O modelo se baseia em regulamentações da Espanha e do Canadá. Pelos cálculos da Receita Federal, a contribuição arrecadaria menos de R$ 1 bilhão por ano, o que representa apenas 0,07% de acréscimo à receita arrecadada no primeiro semestre de 2025.

Ainda segundo os jornais, a Fazenda também se interessou pelo projeto de Boulos, que cria a contribuição social, e poderia apoiá-lo. Além disso, o governo possui outra minuta na gaveta: um texto do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, com apoio da Advocacia-Geral da União, que cobriria o tema da responsabilização civil e de proteção do consumidor de serviços digitais. Mais avançado em termos de aprovação interna, esta proposição também estaria na escolha do melhor momento político para ser encaminhada.

Outra tese é a possibilidade de tudo isso permanecer no campo do “bode na sala” com as possibilidades de tributação sendo apenas uma ferramenta de negociação como tradiocionalmente se faz no campo da diplomacia com os temas tecnológicos. No final da semana passada, o noticiário dava conta que o tema da tributação teria sido descartado pelos Ministérios da área econômica. Ou seja, coloca-se a pauta na mesa com a mesma facilidade com que se pode retirar para substituir por algum ganho mais concreto. Este é um tiro que pode sair pela culatra. Trump conseguiu a não entrada em vigor de tributos sobre as big techs na União Europeia e no Canadá e as negociações tarifárias não foram substancialmente abrandadas.

Investigação e blefes

Some-se a isso o fato de que a investigação da Seção 301, prevista para encerrar em setembro, pode resultar em barreiras não-tarifárias que atinjam o setor de software e o consumo de serviços de nuvem e inteligência artificial pelo Brasil. O País importa US$ 8,9 bilhões em serviços de informática e telecom (3,6 bi) e propriedade intelectual (5,3 bi) dos EUA, sendo que dentro desta última categoria US$ 3,2 bilhões são de licenças para reproduzir e/ou distribuir software. Ou seja, cerca de um terço das importações do Brasil com os EUA vai para o setor de serviços digitais e PI, o que inclui nuvem e IA de forma crescente.

Dado o papel geopolítico estratégico que o setor de economia digital assumiu globalmente, não parece ser aconselhável blefar nesta seara. Um pacote soberano, com emendas a alguns dos PLs apresentados aqui, entre outras medidas, seria a melhor forma de abrir uma negociação com intenção de obter resultados concretos para o País, garantindo recursos para estruturar nossos mercados digitais.

Assim como ocorre com outros setores econômicos, as empresas estrangeiras de economia digital devem contribuir com a manutenção de riquezas em solo brasileiro. Mas cabe ao Estado direcionar esta contribuição para assegurar que o Brasil possa decidir soberanamente a melhor forma de financiar seu projeto nacional de autonomia tecnológica baseado em pesquisa, inovação e política industrial.

Ou seja, não se trata apenas de uma questão de tributos ou uma ferramenta na mesa. Está na hora de o Governo Lula usar a tempestade perfeita provocada por Trump para colher bons frutos para o ecossistema digital brasileiro, indo além das commodities e complexificando nossa indústria em busca da afirmação da soberania.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *