Proibido recuar

Como a cena política mudou, em quatro semanas. O esforço dos EUA para manter, por meios violentos, uma hegemonia em crise. Ilusão e isolamento da ultradireita. Por que Lula não pode recuar. O que aprendemos sobre “correlação de forças”

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Título original:
A correlação de forças políticas está mudando!

O governo Lula, até há algumas semanas, vinha pautando a sua ação política exclusivamente no processo de negociação com o Parlamento, em uma estratégia de “redução de danos” – preso à crença da existência de uma “correlação de forças” desfavorável irremovível, expressa essencialmente na composição do Congresso Nacional com folgada maioria de parlamentares de direita e extrema direita. Os resultados obtidos com essa estratégia foram repetidas derrotas acachapantes, inclusive com o apoio de parte de suas base (Partidos de direita e centro-direita fisiológicos), apesar de todas as concessões feitas a deputados e senadores, em particular ao “Centrão” com suas emendas parlamentares secretas (com sujeitos, objetos e destinos clandestinos).

Como se sabe, a “correlação de forças” é, de fato, uma variável essencial na análise da conjuntura e um ponto de partida para decisões que serão tomadas pelos sujeitos políticos. No entanto, ela não pode ser vista e interpretada como uma fotografia; ela tem que ser observada e compreendida como um filme, um processo dinâmico que pode reafirmá-la e sancioná-la tal como se apresenta em um determinado momento ou, em sentido contrário, modificá-la – inaugurando-se uma outra situação política.

Portanto, se a “correlação de forças políticas” é desfavorável, os sujeitos fragilizados por essa situação têm que atuar ativamente para modificá-la e não simplesmente aceitá-la e, o que é pior ainda, transformá-la em um mantra para justificar suas derrotas e inação política. No entanto, esse foi o comportamento do governo Lula e das forças hegemônicas no interior do Partido dos Trabalhadores, embasados em um equívoco que vai além de considerá-la como uma fotografia, qual seja: para suas análises e ações políticas, a “correlação de forças” foi observada e analisada apenas a partir da realidade institucional, restrita às relações entre os três poderes. Mas nessa instância, fechada em si mesma, a composição do Congresso Nacional e o comportamento de seus integrantes só se alteram, quando se alteram, de quatro em quatro anos.

O resultado desse equívoco não poderia ser outro: a quase inviabilidade de Lula governar, tendo em vista o empoderamento institucional do Parlamento ocorrido a partir do Golpe Neoliberal-Neofascista de 2016 e o início do governo Temer. O antigo “Presidencialismo de Coalizão”, pautado em negociações entre o executivo e o legislativo, mas com forte iniciativa do primeiro, foi substituído pelas ações e força do segundo (com destaques para a criação do Fundo Eleitoral em 2017 e a Emenda de Relator, leia-se “orçamento secreto”, em 2019). Com isso, O orçamento público, já desidratado pelo pagamento da dívida pública (juros) ao capital financeiro (viabilizado pelo ajuste fiscal permanente instituído pelo “Teto de Gastos” e, depois, pelo chamado “Novo Arcabouço Fiscal”), passou a ser abocanhado em fatias crescentes pelo Parlamento, leia-se o Centrão e suas adjacências. Isso ocorreu de tal forma que a ocupação de cargos no executivo, sempre utilizada no processo de negociação para garantir a governabilidade, perdeu importância para deputados e senadores. O que os deixou ainda mais ousados nas suas relações com o governo.

De derrota em derrota o governo Lula, até três semanas atrás, estava emparedado, nas cordas, inclusive com a campanha para Presidente da República de 2026 já antecipada, para alegria e satisfação da direita neoliberal e a extrema direita neofascista. Situação expressa nas redes sociais e na grande mídia corporativa. Entretanto, eis que, inesperadamente e para surpresa da grande maioria, a conjuntura (a correlação de forças) rapidamente começou a mudar. No mundo dominado pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs), o tempo em geral, e o tempo político em particular, acelerou-se; com isso, os eventos, as mudanças e reviravoltas ocorrem muito rapidamente.

A partir da derrota do decreto do governo que aumentava a alíquota do IOF, e da dificuldade em encaminhar a aprovação da taxação dos ricos e da isenção do Imposto de Renda para os que ganham até cinco mil reais por mês, o governo Lula e seus apoiadores (dentro e fora do PT) mudaram de atitude: deslocaram suas ações para fora do Parlamento, passando a atuar agressivamente nas redes sociais e na sociedade, levantando bandeiras históricas das esquerdas: o combate à desigualdade (taxação dos ricos) e a favor da redução da jornada de trabalho (fim da escala 6/1). Isso colocou na defensiva um Congresso majoritariamente neoliberal-neofascista, defensor da concessão de benefícios crescentes e sistemáticos para os “ricos” e contrário a toda e qualquer iniciativa favorável aos “pobres”. Com essa mudança de comportamento, a luta de classes, como há tempos não se via, explicitou-se, para o desespero da “Faria Lima”, de seus prepostos-economistas e da mídia corporativa.

Esse novo comportamento político incomodou profundamente deputados e senadores do Centrão, o mercado financeiro e a mídia corporativa; com esta última tentando, sem sucesso, igualar as ações de denúncia política das esquerdas nas redes sociais à forma de atuar da extrema direita neofascista (baseada em fake news, baixarias de todo tipo e desconstrução de indivíduos e biografias). O Jornal Nacional da Globo gastou quase sete minutos tentando criminalizar a militância digital das esquerdas. Adicionalmente, quando mal tinham assimilado essa nova situação, a direita neoliberal e a extrema direita neofascista se viram às voltas com os ataques de Trump à economia brasileira e à soberania do país. A primeira tem vínculos históricos com o imperialismo, não pôde defender e justificar esses ataques; a segunda, enrolada até o pescoço com as agressões do governo dos EUA (inclusive fomentando-os e apoiando-os abertamente), foi nocauteada, esfacelando-se internamente com disputas acerca da proposta de anistia e o seu vínculo com o tarifaço de 50% decretado por Trump contra os produtos brasileiros(a vigorar a partir do mês de agosto).

A reação do governo Lula, em sentido contrário, foi imediata, saindo em defesa da soberania nacional e da produção e dos empregos no Brasil. E o mais importante, as ações contra o imperialismo e a truculência de Trump (“taxei o Brasil porque posso”) difundiram-se imediatamente pelas redes sociais e em alguns atos públicos. O Congresso, por sua vez, veio a reboque, com os presidentes da Câmara e do Senado, inicialmente mudos, tendo que apoiar o discurso político do governo Lula e das esquerdas. O governador de São Paulo, supostamente um “bolsonarista moderado” e a principal aposta da direita neoliberal e seus prepostos para a eleição presidencial de 2026, se desmoralizou, sendo rejeitado pelo bolsonarismo, chamado às falas pelos capitalistas (com destaque para o agronegócio e os industriais de São Paulo) e pela mídia corporativa (vide os diversos editoriais publicados pelos grandes jornais). A família Bolsonaro, o bolsonarismo e, em particular, Tarcísio de Freitas foram, até aqui, os maiores derrotados.

Mas, não se pode perder de vista a necessidade de se responder a pergunta fundamental da conjuntura: quais são os objetivos de Trump com a ameaça de implementar o tarifaço e condicionar a sua retirada à suspenção da ação do STF contra Bolsonaro? Na verdade, os seus objetivos são, ao mesmo tempo, econômicos e políticos, conjunturais mas também estratégicos, que rementem a dimensões estruturais e à geopolítica mundial.

Antes de tudo, deve-se reconhecer que os EUA são uma potência em descenso, como aconteceu com a Inglaterra na primeira metade do século passado. A sua antiga hegemonia reduziu-se, fundamentalmente, à dimensão militar. Do ponto de vista econômico e tecnológico a China caminha a passos largos para superá-lo e essa é uma situação distinta da ocorrida nos anos 1970, quando Alemanha e Japão o desafiaram mas acabaram sendo enquadrados – coisa que não poderá acontecer na relação China-EUA. Na esfera política e moral o país está cada vez mais desmoralizado com tudo o que Trump vem fazendo contra a “maior democracia do mundo”, além da desconsideração de todo e qualquer tipo de fórum e instância internacional. O apoio e financiamento do genocídio praticado por Israel em Gaza, o comportamento errático com relação à guerra da Ucrânia com a Rússia e o negacionismo climático são exemplos de seu isolamento político internacional. Os EUA, hoje, são um país em guerra com o mundo, até mesmo contra seus antigos e serviçais aliados, europeus e asiáticos. O trumpismo e sua política expressam a decadência e, ao mesmo tempo, contribuem decisivamente para acelerá-la.

Dito isso, a questão central para os EUA é, por um lado, a sua disputa com a China pela hegemonia mundial, nas suas mais variadas dimensões. Isso se expressa na rejeição e ataque aos BRICS e à crescente possibilidade de substituição do dólar como moeda nas transações internacionais; na defesa das big techs dos EUA e de sua total liberdade de atuação (sem regulação); nas disputas comerciais, tecnológicas e ambientais generalizadas, e na tentativa de chantagear países que têm negociação comercial com a Rússia – tudo isso a partir do exercício de um unilateralismo explícito, na base da ameaça, da truculência e da violência. É o imperialismo aberto, sem máscara, ao contrário de outros tempos, quando o soft power desempenhava um papel importante,.

Por outro lado, do ponto de vista político, as ações de Trump têm por objetivo aglutinar e empoderar a extrema direita neofascista mundial em torno da liderança dos EUA e, no caso imediato do Brasil, fragilizar as instituições democráticas e interferir na eleição presidencial do ano que vem.

Em suma a conjuntura política está mudando, externa e internamente. A disputa com o Brasil deve ser observada e entendida como parte desse contexto mais geral, que não envolve apenas o Brasil. O país, diga-se de passagem, tem déficit comercial com os EUA há mais de uma década. Portanto, não há qualquer justificativa no âmbito do comércio internacional que explique a tarifa de 50% que, na verdade, é uma sanção política contra a soberania nacional. No entanto, a possibilidade de que o governo ceda a Trump, jogando a soberania do Brasil no lixo, é zero. As respostas imediatas do governo Lula e do STF não deixam margem a dúvidas. E Trump e os EUA sabem disso. Aí surge a insistência do imperialismo em vulnerabilizar a democracia brasileira, em particular o seu poder judiciário na figura do STF, enfraquecer o governo Lula e alavancar alguma candidatura da direita/extrema direita (Bolsonaro, Tarcísio ou qualquer outro) na disputa que ocorrerá em 2026.

A disputa com Trump, muito provavelmente, ainda vai longe e tende a escalar por novas iniciativas e sanções do governo dos EUA contra o Brasil, como foi o caso da anulação dos vistos para entrada nos EUA de oito integrantes do STF. Este, por sua vez, vem se comportando corretamente, não se desviando um milímetro de suas obrigações constitucionais e respondendo à altura às ameaças. O pedido da condenação de Bolsonaro e seus asseclas pela Procuradoria Geral da República (PGR), assim como a recente operação da Polícia Federal que culminou com a decisão de colocar-lhe tornozeleira eletrônica, evidenciaram que as ameaças não surtirão efeito. Ao contrário, acabaram por piorar a situação de Bolsonaro e de sua família, além de colocarem o bolsonarismo no seu pior momento desde o surgimento desse movimento neofascista. Adicionalmente, impulsionaram a unificação da maioria do povo brasileiro em defesa da soberania do país.

No que concerne ao governo Lula e às esquerdas, não pode haver vacilo: cabe manter a nova linha política, privilegiando as ações nas redes sociais e na sociedade, insistindo no confronto com o Congresso Nacional quando necessário, como foi o caso do veto ao aumento do número de deputados aprovado pela Câmara de Deputados (amplamente desaprovado pela população). Qualquer passo atrás, no sentido de voltar à negociação viciada anterior, fragilizará de novo o governo e colocará em risco a possibilidade de sua reeleição. As bandeiras tradicionais das esquerdas (contra a desigualdade e a favor da redução da jornada de trabalho) e, agora, a defesa da soberania brasileira, devem ser a bússola orientadora e o carro-chefe de todo esse processo.

A atual posição defensiva do Congresso evidenciou-se na aprovação, na comissão especial criada pela Câmara de Deputados, do Projeto de Lei do governo que isenta de Imposto de Renda quem ganha até cinco mil reais por mês. Assim como na desistência da Câmara de derrubar o veto de Lula ao aumento do número de deputados. Por outro lado, a aprovação pelo Senado, na calada da noite, de uma nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental desastrosa (para “passar a boiada”), com forte repercussão negativa internacional, assim como a aprovação do Projeto de Lei pela Câmara que destina à renegociação das dívidas do agronegócio parte dos royalties do Pré-Sal (até então, direcionados exclusivamente para educação, saúde e desenvolvimento regional e social), devem ser sumariamente vetados com ampla divulgação popular e, se necessário, levando a questão ao STF.

A decisão de manter abertos os canais de negociação comercial com os EUA (sem nenhuma concessão a Bolsonaro e ao bolsonarismo), na qual teremos todos os argumentos técnicos contra o tarifaço; e, ao mesmo tempo, ameaçar com a possibilidade de retaliação, na mesma proporção, é a linha de conduta acertada anunciada pelo governo Lula. Mas o eventual efeito favorável dessa conduta tem como condição não aceitar qualquer tipo de chantagem do imperialismo e seus aliados internos. Uma observação: a forma de retaliar os EUA não deve, necessariamente, copiar a forma deles, isto é, taxar, de forma generalizada e indiscriminada, as suas exportações para o Brasil. Há de se ter por caminho mais inteligente, identificando caso a caso os produtos com maior ou menor importância nas cadeias produtivas brasileiras, além de focar (e isso é fundamental) também no setor de serviços (Big Techs, Direitos de Propriedade Intelectual e patentes).

Como observou Maquiavel há mais de 500 anos, a “fortuna” (as circunstâncias que não são criadas pelos sujeitos) é um cavalo que pode se mostrar passageiro, cabendo ao Príncipe ter a virtude de entendê-la e cavalgá-la, não deixando passar a oportunidade de direcioná-la a seu favor. Nunca é demais lembrar que, em 2006, na virada do primeiro para o segundo governo, Lula e seus apoiadores mais próximos tiveram a virtude de aproveitar a fortuna que então se configurou, com a forte entrada da China no comércio internacional e o seu impacto favorável nas contas externas brasileiras, atuando no sentido de flexibilizar o tripé macroeconômico herdado do segundo governo FHC (metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuante). Essa decisão, juntamente com outras políticas (sociais e trabalhistas), tirou o governo das cordas (do mensalão) e encaminhou a reeleição de Lula.

Enfim, negociação e luta, concerto e confronto, fazem parte do processo político, cabendo aos sujeitos analisar a pertinência de um ou outro comportamento em cada conjuntura – e isso não pode ser decidido apenas nas instâncias institucionais, isolando-as das pressões populares. Essa é a armadilha proposta, sobretudo, pela direita neoliberal e os seus prepostos, com o objetivo de aprisionar as esquerdas na esfera da “pequena política”. Em sentido contrário, as esquerdas, se querem se manter enquanto tal, devem trazer para o debate nacional e a ação política os grandes temas – que se relacionam às necessárias mudanças estruturais da sociedade e da economia.

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