Redistribuição de renda: política para saúde mental
Ampliação do Bolsa Família no Brasil e aumento do salário mínimo na Inglaterra reduziram taxas de suicídio e depressão, mostram estudos. Para que a luta contra a explosão do sofrimento psíquico dê resultado, é indispensável enfrentar a desigualdade
Publicado 17/07/2025 às 08:47 - Atualizado 17/07/2025 às 14:54

Por Cláudia Braga, para sua coluna no Outra Saúde
Leia todos os textos da coluna Cuidar das Pessoas. Cuidar das cidades
Em 2017, um estudo publicado no periódico Health Economics investigou: os aumentos salariais melhoram a saúde mental? O contexto é o seguinte. Em 1999, um salário mínimo havia sido estabelecido na Inglaterra, o que acabou criando três cenários: (a) pessoas que efetivamente tiveram o salário aumentado para atingir o novo salário-mínimo; (b) pessoas que não tiveram um aumento efetivo porque já ganhavam entre 101% e 110% do novo salário-mínimo; (c) pessoas que não se beneficiaram desta política de aumento salarial, por viverem condições informais de trabalho.
Considerando esses três segmentos, o estudo analisou se o aumento efetivo de salário do primeiro grupo impactou sua saúde mental, em comparação com os demais. Mais especificamente, verificou-se, por meio de entrevistas e questionários padronizados aplicados uma vez por ano entre 1999 e 2009, se as pessoas desses três grupos apresentaram sintomas de depressão.
A diferença nos resultados se mostrou estatisticamente significativa, e as pessoas do primeiro grupo – as que efetivamente passaram a receber um salário-mínimo e, assim, tiveram seu salário aumentado – apresentaram melhores resultados de saúde mental em comparação com os outros dois. E mais: os pesquisadores afirmam que, em um cálculo estatístico, essa melhora representou aproximadamente 0,37 desvio padrão, valor comparável em magnitude ao efeito estimado para uso de antidepressivos, que é de 0,39 de desvio padrão.
Os autores reconhecem que mais estudos são necessários, mas a pesquisa concluiu que a introdução do salário-mínimo, ao representar uma melhora nas condições econômicas de um dos grupos, teve impacto estatisticamente e clinicamente significativo na saúde mental de trabalhadores beneficiados. O mesmo pode ser dito dos programas de transferência de renda do Brasil, sugere um estudo nacional – o que nos convida a refletir sobre a importância de lutar contra a desigualdade de renda para garantir o êxito das políticas de saúde mental.
Leia todos os textos da coluna Cuidar das pessoas, cuidar das cidades, de Cláudia Braga.
Políticas para prevenir mortes por suicídio
Publicado em 2019, o estudo teve o Brasil como cenário de investigação e, como foco, um tema sensível em políticas públicas em saúde mental: prevenção de mortes por suicídio.
Quanto desenho do estudo, a pesquisa envolveu 5.507 municípios brasileiros e analisou estatisticamente a tendência das taxas de suicídio entre 2004 e 2012, em correlação com a implementação de um determinado programa que envolveu cerca de 14 milhões de famílias. Em resumo, os resultados mostraram uma acentuada redução das mortes por suicídio associada ao acesso a esse programa e revelaram que os efeitos na redução da taxa foram ainda mais fortes nos municípios que contam com maior cobertura e com maior tempo de implementação (três anos ou mais) desse modo de cuidar das pessoas. Como era de se esperar, o estudo também mostrou uma correlação entre o acesso ao programa e a redução das hospitalizações por tentativas de suicídio na população beneficiária.
E de qual programa estamos falando, afinal?
Do Bolsa Família.
O que a pesquisa analisou foram os impactos deste programa de transferência de renda, instituído no governo Lula. O estudo verificou que há uma relação significativa entre os municípios com maior cobertura do Bolsa Família e as menores taxas de morte por suicídio. E a correlação é tão forte que se observou que as menores taxas ocorreram entre as mulheres – que, vale lembrar, são preferencialmente as beneficiárias do Bolsa Família.
O Bolsa Família sabidamente impacta a vida das pessoas, tendo promovido redução da pobreza, da mortalidade infantil, aumento dos níveis de escolaridade e de rendimento entre os beneficiários. O programa também tem impactos nas relações sociais, sendo conhecido o efeito de ampliação do poder de decisão de mulheres beneficiárias. E o Bolsa Família contribui para reduzir a enorme desigualdade de renda do país.
Assim, o que a pesquisa indica é que este complexo conjunto de impactos possíveis, gerado por um programa de transferência de renda, pode também influenciar positivamente a saúde mental das pessoas.
Aliás, o reconhecimento de que programas de transferência de renda tem efeitos também como políticas de prevenção ao suicídio não é algo só visto no Brasil. Na Indonésia, estudos indicam que as taxas de morte por suicídio caíram 18% após a implementação de um programa do tipo. Essa relação entre a implementação de políticas de enfrentamento de desigualdade de renda e melhora da experiência de saúde mental da população é um campo vasto para pesquisas e a ser explorado – mas não exatamente uma novidade.
Pobreza e saúde mental
Basta recordar que há quase 30 anos já é bem estabelecido e reconhecido que a pobreza tem relação com a saúde mental em um ciclo negativo. E o relatório publicado em 2024, de autoria do Relator Especial para Pobreza e Direitos Humanos da ONU, reafirma essa conexão. O documento parte da premissa de que a saúde mental deve ser compreendida como uma questão de justiça social, e não meramente como um problema individual que precisa ser tratado.
Entre as conclusões apresentadas, o relatório afirma que pobreza e experiência de sofrimento estão interligadas em um ciclo de retroalimentação: a pobreza aumenta as chances de uma pessoa experimentar um problema de saúde mental; e uma pessoa com problema de saúde mental que não encontra resposta apropriada de cuidado, enfrenta mais dificuldades para acessar educação, trabalho, renda e outros direitos, perpetuando uma situação de não pertencimento social. O relatório ainda assinala que a diferença de renda também agrava a experiência de sofrimento psíquico. Portanto, não apenas a pobreza material, mas também a desigualdade de renda é um problema que precisa ser enfrentado adequadamente como parte da agenda de saúde mental.
Se é assim, devemos investir em políticas que deem respostas reais a esses problemas, retirando pessoas da situação de pobreza e diminuindo a desigualdade de renda. Resta perguntar: hoje, no Brasil, a quem cabe cobrar para que políticas desse tipo sejam implementadas?
O papel do Congresso Nacional
De alguns anos para cá, a saúde mental se tornou um assunto cada vez mais familiar. Ainda mais quando a notícia é que o SUS registrou um aumento do número de internações por tentativas de suicídio e por autolesão, é realmente preciso falar disso. Sob quais termos e a partir de quais perspectivas fazê-lo, é assunto longo e a se debater.
Fato é que, acompanhado deste protagonismo que o tema da saúde mental vem ganhando, observa-se uma expansão na proposição de ideias para ampliar o cuidado em saúde mental no âmbito das políticas públicas. Tais propostas, muito frequentemente, estão circunscritas à duas ideias: a criação de serviços ou políticas específicas para determinado problema ou grupo populacional e, articulada à primeira ideia, a determinação de prestação de serviços por alguma categoria profissional em certo cenário de vida.
Seguramente, é relevante e necessário o fortalecimento e expansão de serviços de saúde mental – de base territorial e articulados aos princípios e à lógica da Rede de Atenção Psicossocial, para não incorrer na fragmentação da política pública, da rede e do cuidado. Mas o que esses exemplos de políticas de redistribuição de renda e seus impactos na saúde mental indicam é que defender e aprovar políticas que focam na diminuição da desigualdade de renda é, também, batalhar pela saúde mental da população.
A pauta atual é de justiça tributária pela redução da desigualdade social e de renda. Se tomarmos como referência os resultados dos estudos mencionados, é preciso assumir e levar à sério a hipótese de que apoiar e aprovar projetos de lei que almejam à justiça tributária – tendo como impacto a diminuição da desigualdade de renda – é atuar em favor da saúde mental. Por isso a importância de que aqueles que se colocam na linha de frente da saúde mental levem a sério o debate sobre taxar mais os super-ricos e assegurar isenção tributária para quem ganha até R$5 mil. Esse debate, inclusive, precisaria ir além: se precisamos de mais programas e serviços para ampliar o cuidado em saúde mental, é preciso que o ajuste fiscal não atinja os programas sociais – é uma questão de responsabilidade e coerência.
Agora, para ficar no tema central discutido aqui, o que as pesquisas indicam é que defender o enfrentamento da desigualdade de renda é voto de compromisso com a saúde mental da população. Temos, hoje, uma oportunidade única de avançar na diminuição da desigualdade de renda – e, de quebra, uma conquista do tipo pode ser também uma vitória para a saúde mental.
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