O México levanta a bandeira da soberania sanitária

Governo de Claudia Sheinbaum anuncia medidas históricas para reduzir a dependência da Big Pharma na compra de insumos de saúde. Plano prevê investimentos de bilhões na criação de novas fábricas e estímulo à produção de genéricos

Foto: Presidência do México
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A primeira semana de julho pode representar um marco histórico na luta do México por sua soberania sanitária. Em conferência realizada na última sexta-feira (4), a presidente Claudia Sheinbaum e seus auxiliares David Kershenobich (secretário de Saúde) e Alejandro Svarch (presidente do IMSS-Bienestar, órgão previdenciário que presta serviços médicos) revelaram um grande plano para ampliar a produção nacional de medicamentos e insumos de saúde, reduzindo a dependência das importações.

O grave cenário que mobiliza a nova proposta governamental foi apresentado na mañanera – como são conhecidas as coletivas de imprensa diárias de Sheinbaum e sua equipe – daquele dia, cuja gravação está disponível aqui. Hoje, mais de 65% dos medicamentos e insumos de saúde consumidos no México são importados do exterior. O país gasta anualmente 300 bilhões de pesos mexicanos (cerca de 87 bilhões de reais) com essas compras, afirmou a presidenta. Desde uma medida de 2008 que pôs fim à preferência de compra para os insumos produzidos em plantas nacionais, o déficit da balança comercial da saúde só se agravou no México. 

“Para nós, é fundamental que se produza mais no México, particularmente na indústria farmacêutica, também por uma razão de soberania. Em uma situação de vulnerabilidade como uma nova pandemia, não queremos estar dependendo de fabricantes que todo o mundo estará competindo por suas exportações”, disse Sheinbaum.

Como explicou Svarch na coletiva, o projeto prevê o incentivo à criação de novas fábricas de medicamentos no México – em um primeiro momento, ligadas ao setor privado – e a ampliação das existentes. Serão implementadas medidas para garantir demanda a esse parque farmacêutico: um decreto já publicado pelo governo orienta que as compras públicas de insumos de saúde devem passar a priorizar fornecedores instalados em solo nacional. O investimento inicial está previsto em 10,5 bilhões de pesos mexicanos (R$3,1 bilhões), mas será fornecido pelo empresariado nacional e não pelo poder público.

O chamado “Plano México” para a industrialização da saúde também envolverá transformações na política de propriedade intelectual do país. Além de mudanças no órgão responsável pela concessão de patentes, haverá um foco na produção de medicamentos genéricos. Os objetivos não se restringem ao fortalecimento da soberania sanitária: a administração Sheinbaum afirma que a autonomia na produção de medicamentos e outros insumos acelerará o crescimento econômico e será uma das bases para a futura criação de um sistema público, gratuito e universal de saúde no país.

Ações para recuperar a soberania

Até 2008, o México exigia que as empresas farmacêuticas possuíssem fábricas no país para receberem o registro sanitário, obrigatório para a comercialização de medicamentos e o fornecimento de insumos ao poder público. Conhecida como “requisito de planta”, a diretriz foi revogada naquele ano pelo ex-presidente neoliberal Felipe Calderón, sob o argumento de que reduziria os preços dos remédios. Além de não baixar o custo dos fármacos, o fim da exigência desencadeou o aumento da penetração da Big Pharma no mercado mexicano: hoje, 14 das 15 maiores corporações farmacêuticas do mundo estão presentes no país. Já a participação de empresas nacionais neste setor da economia “caiu muito”, demonstrou Alejandro Svarch na coletiva.

O decreto presidencial do último dia 2 de junho promove a retomada da priorização de empresas instaladas no México nas compras públicas da área da Saúde. Diz o texto da medida assinada por Sheinbaum: “Nos procedimentos de aquisição de medicamentos, insumos de saúde e dispositivos médicos, a Secretaria de Saúde deverá promover a participação de pessoas físicas ou jurídicas que demonstrem possuir, em território nacional, investimentos na cadeia de produção de medicamentos, insumos e equipamentos ou fábricas, laboratórios e armazéns que formem parte da dita cadeia.” Estas empresas receberão “pontos extra” que garantirão uma vantagem na disputa.

Além disso, o ato criou um Comitê de Promoção dos Investimentos Farmacêuticos, que contará com a participação das secretarias de Saúde, Economia e Anticorrupção (as secretarias do México são equivalentes aos ministérios na estrutura do Estado brasileiro). O representante da secretaria de Saúde deverá presidir o novo órgão. Sua missão será estimular a criação de mais infraestrutura produtiva em solo mexicano.

Em seus anúncios, os membros do governo informaram que a prioridade deverá ser a fabricação de medicamentos genéricos nas futuras plantas. Destacando que “um remédio genérico pode ser várias vezes mais barato que o patenteado”, Alejandro Svarch indicou 385 produtos cujas patentes estão próximas de expirar e que, se forem produzidos localmente, poderiam significar uma importante economia aos cofres públicos e à população. A apresentação deixa implícito que a estratégia não apostará no uso da licença compulsória (a popular “quebra de patente”) ou da suspensão das patentes, mas em aguardar o fim da vigência dos direitos de propriedade intelectual das empresas.

Em uma entrevista coletiva anterior, realizada em 29 de maio, a presidente Sheinbaum sugeriu que o laboratório estatal Birmex será orientado a promover parcerias com farmacêuticas privadas para ampliar o parque industrial nacional.

Alertando que, em muitos casos, a participação da indústria mexicana na produção de medicamentos se restringe “à fabricação da embalagem de papelão”, Alejandro Svarch expôs que o plano governamental buscará reverter essa tendência. Por isso, a negociação com empresas transnacionais para a aquisição de medicamentos de alto custo também será vinculada ao compromisso de investir em capacidades técnico-científicas, e não apenas produtivas. “Queremos uma estratégia mais agressiva para que a indústria inicie imediatamente a relocalização de processos”, disse Eduardo Clark, subsecretário de Integração e Desenvolvimento do Setor Saúde, na mesma coletiva.

Dois outros aspectos anunciados do plano estão menos claros. Ainda não foram indicadas quais serão as mudanças promovidas no Instituto Mexicano da Propriedade Industrial (IMPI), órgão responsável pela concessão de patentes. Também não foram apresentados os detalhes sobre a proposta de criação de centros de formação de quadros especializados para a indústria.

Os 10,5 bilhões de pesos previstos como investimento inicial estão divididos entre quatro grupos empresariais mexicanos do setor farmacêutico. Os Laboratorios Kener aportarão 5,1 bilhões de pesos (R$1,5 bi) para triplicar a capacidade de sua fábrica de medicamentos injetáveis até 2027, iniciando a produção de células CAR-T para o tratamento de câncer. Por sua vez, a empresa Genbio destinará 4 bilhões de pesos (R$1,1 bi) para a criação de uma planta de fracionamento de plasma. Já o grupo Alphasma BioGenTec direcionará 800 milhões de pesos (R$238 mi) para uma infraestrutura de desenvolvimento de biofármacos e biotecnologia em parceria com universidades. Por fim, a Neolsym investirá 500 milhões de pesos (R$148 mi) na produção de Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFAs) e outras matérias-primas para medicamentos.

A estratégia brasileira do Complexo Econômico-Industrial da Saúde foi considerada um exemplo para a formulação do projeto mexicano, explica Alejandro Svarch. (Vale destacar que o CEIS brasileiro, apesar de também se basear em parcerias com o setor privado, conta com um maior protagonismo dos laboratórios públicos). O objetivo, completou o secretário de Saúde David Kershenobich, é a criação de um “ecossistema biofarmacêutico” no país.

Poderá o México criar um SUS?

Em contraste com o Brasil, que conta com o Sistema Único de Saúde (SUS) há mais de três décadas, o México não possui um sistema público, gratuito e universal de saúde. No país norte-americano, para além da medicina privada, os serviços de saúde se dividem entre três órgãos: o ISSSTE (que atende servidores públicos), o IMSS (voltado aos trabalhadores do setor privado) e o recém-criado IMSS Bienestar (orientado à população mais pobre, especialmente desempregados e informais, que não possuem nenhuma outra assistência). 

O modelo em vigor lembra aquele existente no Brasil pré-SUS, por ser ligado à estrutura da Previdência Social e estar fatiado entre instituições que não se coordenam. Além disso, a gratuidade não está garantida, visto que a assistência é fornecida através do pagamento da contribuição previdenciária.

O ex-presidente Andrés Manuel López Obrador, que governou de 2018 a 2024 e prometeu a criação de um “SUS mexicano”, deu passos significativos para universalizar o direito à saúde garantido pela Constituição. Uma de suas primeiras ações foi extinguir o Seguro Popular, programa instituído na era neoliberal que cobrava para oferecer cobertura aos cidadãos que não contribuem com a Previdência e estava associado a grandes casos de corrupção. 

Para substituí-lo, foi introduzido em 2023 o IMSS-Bienestar, presidido por Alejandro Svarch, que pretende ser o embrião do futuro sistema universal. Assim como o SUS, o novo programa é gratuito, não exige afiliação e abarca atenção primária e especializada. Segundo a prestação de contas final do mandato de Obrador, o IMSS-Bienestar já foi implementado em 23 dos 32 estados do país e cobre 53 milhões de mexicanos, no universo de uma população de 129 milhões.

Para promover o acesso gratuito a medicamentos, Obrador também criou a Megafarmacia del Bienestar, ligada à estatal farmacêutica Birmex. Munido de uma receita fornecida por qualquer um dos três institutos oficiais de assistência à saúde, todo mexicano pode receber os remédios de que precisa, sem cobranças, caso eles estejam disponíveis – assim como ocorre no SUS.

No mandato da presidente Claudia Sheinbaum, as ações para “construir um sistema universal, gratuito, de qualidade e equitativo” vêm se baseando no “fortalecimento da atenção primária”, afirmou recentemente o subsecretário de Políticas de Saúde e Bem-Estar Populacional, Ramiro López Elizalde. O governo ainda pretende atuar para promover a “participação comunitária” e acelerar o processo de integração de hospitais, universidades e indústrias ao futuro sistema único. Os anúncios relativos à infraestrutura farmoquímica se enquadram nesse último caso.

As contradições do plano

Em editorial do sábado (5/7), o jornal mexicano La Jornada, de orientação progressista, avaliou como “positivo” o projeto do governo Sheinbaum para estimular a produção nacional de medicamentos mas também chamou atenção para suas debilidades. A principal delas é a dependência do capital privado mexicano, que fornecerá o grosso dos investimentos para a execução dos planos.

“A experiência das últimas décadas comprova a necessidade de supervisionar estreitamente a atividade da iniciativa privada, pois é um fato comprovado que ela sempre atuará em busca dos maiores lucros possíveis no curto prazo, mesmo que isso signifique perdas ao conjunto da sociedade”, aponta-se.

O periódico completa: “A soberania farmacêutica do país só poderá recuperada plenamente com a participação decisiva do Estado na formação de profissionais, a orientação dos investimentos para os setores estratégicos para a saúde pública – que nem sempre são os mais lucrativos –, a criação de uma indústria comprometida com as necessidades nacionais e o estabelecimento de uma cadeia de fornecimento resiliente para enfrentar as emergências globais e as veleidades de Washington, que nega o acesso a insumos vitais como arma de guerra contra as nações que desafiam sua hegemonia”.

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