Geração Z: Como mitigar o mal-estar da Era Digital?
Entender como plataformas modulam circuitos neurais e emoções, e não demonizá-las, é crucial para a saúde mental das novas gerações. Possível caminho: a “alfabetização psíquica digital” para resgatar os vínculos sociais e equilibrar os benefícios práticos das redes
Publicado 07/07/2025 às 17:52

No cotidiano da prática clínica psiquiátrica, tenho observado um fenômeno cada vez mais prevalente: adolescentes cujos quadros psicopatológicos são significativamente amplificados pela imersão digital. A série britânica “Adolescência” (Adolescence) e os recentes casos de fatalidades relacionadas a desafios virais evidenciam o profundo impacto das plataformas digitais no desenvolvimento psíquico dos jovens da Geração Z.
Enquanto 36% dos adolescentes relatam estar continuamente (o dia todo) online – um aumento expressivo na última década – mais preocupante é que 11% apresentam sintomas de uso patológico e características semelhantes à dependência: incapacidade de controlar o uso, sintomas de abstinência quando impedidos de acessar suas redes, negligência de outras atividades e consequências negativas em sua vida diária.
A série “Adolescência” gerou importantes discussões sobre misoginia e a chamada “teoria red pill”, mas pouco se falou sobre a evidente psicopatologia do protagonista. Uma análise clínica do personagem revela características claras de um transtorno de personalidade em desenvolvimento, potencializado pelas dinâmicas de validação imediata das redes sociais.
Na prática clínica contemporânea, identifico adolescentes manifestando padrões semelhantes:
- Pensamento dicotômico e inflexível, “preto ou branco”, “esquerda ou direita”;
- Déficit significativo na capacidade de empatia contextualizada (colocar-se na posição do outro);
- Comportamentos impulsivos reforçados pelos mecanismos de validação instantânea das plataformas digitais;
- Distorções cognitivas amplificadas por comunidades virtuais que funcionam como câmaras de eco dos seus próprios problemas – normalizando comportamentos autodestrutivos e patológicos.
Essas características não são meramente individuais, mas são sistematicamente potencializadas por algoritmos projetados para maximizar o engajamento emocional, frequentemente explorando vulnerabilidades psicológicas preexistentes em personalidades em formação.
Além disso,o trágico falecimento da adolescente após participar do “desafio do desodorante” transcende um mero caso isolado de imprudência juvenil. Este episódio revela vulnerabilidades neuropsiquiátricas específicas do neurodesenvolvimento adolescente.
O cérebro adolescente encontra-se em fase crítica de maturação, especialmente no córtex pré-frontal, responsável pela avaliação de riscos, controle inibitório e tomada de decisões. Esta configuração neurobiológica os torna particularmente vulneráveis a:
- Hipersensibilidade aos mecanismos de recompensa social imediata;
- Capacidade reduzida de avaliação de riscos em contextos de alta carga emocional;
- Necessidade neurobiologicamente vulnerável de aceitação e pertencimento social.
Quando adolescentes participam desses desafios potencialmente letais, ocorre uma desconexão funcional momentânea entre os circuitos neurais relacionados à recompensa social e aqueles vinculados à percepção de perigo, configurando estados semelhantes a episódios dissociativos (em que a pessoa desconecta de sua consciência) transitórios induzidos pelo contexto digital.
Enfrentamos o que pode ser caracterizado como uma pandemia silenciosa de transtornos mentais na Geração Z. As taxas de doenças mentais têm aumentado significativamente nas últimas duas décadas, com prevalência de sintomas depressivos subindo de 16% em 2010 para 21% em 2015 – principalmente entre meninas. Em minha experiência clínica, tenho documentado um aumento alarmante de aumento de quadros depressivos e de autolesão (cortes, queimaduras etc.), com aumento de uso de plataformas digitais, inclusive deixando os pais reféns do vício da criança e adolescente, ou seja, quando tentam arrumar, o quadro piora, gerando medo e desamparo, com muitas vezes a criança ou adolescente ameaçando com falas potencialmente suicidas.
A Geração Z vive o paradoxo da hiperconectividade: permanentemente online, mas experimentando níveis sem precedentes de solidão emocional e desconexão interpessoal significativa. Um estudo recente envolvendo 479 adolescentes revelou que os jovens com depressão relatam sentir-se duas vezes mais inseguros após rolar os feeds, quase duas vezes mais rejeitados durante comunicações online com amigos e significativamente mais preocupados com feedback em suas postagens.
É crucial ressaltar que jovens com vulnerabilidades psíquicas preexistentes frequentemente gravitam para ambientes digitais que funcionam como validadores negativos, encontrando comunidades que podem reforçar comportamentos autodestrutivos em vez de promover resiliência e desenvolvimento psicoemocional saudável.
Evidências experimentais recentes oferecem insights valiosos sobre intervenções potenciais. Um estudo randomizado controlado descobriu que simplesmente bloquear o acesso à internet móvel por duas semanas resultou em melhorias significativas na saúde mental (com efeito maior que alguns tratamentos habituais), no bem-estar subjetivo e na capacidade de manter a atenção sustentada (concentração).
Paralelamente, outro estudo randomizado controlado demonstrou que reduzir o tempo de tela do smartphone para até 2 horas por dia durante três semanas produziu melhorias de pequeno a médio porte em sintomas depressivos, qualidade do sono, bem-estar geral e estresse. Notavelmente, 91% dos participantes do primeiro estudo apresentaram melhora em pelo menos um desses resultados.
Torna-se imperativo adaptar rapidamente as estratégias de intervenção psiquiátrica à realidade digital contemporânea. O objetivo não é demonizar a tecnologia, mas compreender seus mecanismos de ação neuropsíquica e implementar estratégias terapêuticas baseadas em evidências, como psicoterapia cognitivo-comportamental e incentivo a práticas coletivas e presenciais desde cedo, desincentivando o uso das redes não como punição, mas mostrando um lado positivo e acolhedor de viver em comunidade, algo que estamos perdendo ao longo do tempo, inclusive com nossas próprias famílias. Um estudo recente evidenciou que, em adolescentes suscetíveis a pensamento suicida, ver postagens de celebridades em redes sociais incentivando a esperança, cura e recuperação, pode diminuir drasticamente a ideação suicida dos jovens e aumentar a busca por ajuda de quem consome esse conteúdo; levantando a questão protetiva que as redes sociais podem ter quando utilizadas com responsabilidade e empatia.
Precisamos urgentemente desenvolver o que denomino “alfabetização psíquica digital” — um processo educativo direcionado a jovens, famílias e educadores sobre os mecanismos pelos quais as plataformas digitais modulam os circuitos neurais e os processos emocionais dos adolescentes. Pais e educadores devem estar atentos a indicadores como alterações comportamentais associadas ao uso das redes sociais, flutuações de humor após interações online ou envolvimento em comunidades virtuais potencialmente nocivas. Como sociedade, é fundamental a integração transdisciplinar das áreas de psicologia, psiquiatria e educação digital para o desenvolvimento de políticas públicas efetivas, que auxiliem os adolescentes a navegar de forma saudável e construtiva nesse ecossistema digital complexo e em rápida evolução.
A proteção da saúde mental das crianças e adolescentes na era digital constitui uma responsabilidade coletiva urgente. Os desafios inéditos apresentados pela imersão digital precoce e intensiva demandam respostas inovadoras, baseadas em uma compreensão profunda da interação entre neurobiologia adolescente e os ambientes digitais. A questão não é se os adolescentes devem usar as redes sociais – elas são parte integral de seu mundo social –, mas como podemos ajudá-los a desenvolver uma relação mais saudável com essas tecnologias. Equilibrar os benefícios práticos que os smartphones oferecem contra as consequências negativas significativas é uma tarefa crucial. Compreender e intervir adequadamente nessa nova realidade é essencial não apenas para mitigar os danos potenciais das tecnologias digitais, mas também para potencializar seu papel no desenvolvimento saudável e na construção de resiliência nas futuras gerações.
Referências:
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Coelho J, Pécune F, Micoulaud-Franchi JA, Bioulac B, Philip P. Promoting mental health in the age of new digital tools: balancing challenges and opportunities of social media, chatbots, and wearables. Frontiers in Digital Health. 2025;7:1560580.
Arendt F, Till B, Gutsch A, Niederkrotenthaler T. Social media influencers and the Papageno effect: Experimental evidence for the suicide-preventive impact of social media posts on hope, healing, and recovery. Social Science & Medicine. 2025;370:117852.
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