O Brasil sob tutela

Congresso e mercado operam juntos para emparedar Lula. A democracia, neste contexto, sobrevive como aparência. O progressismo hesita entre o medo do confronto e a ilusão da moderação. 2026 se aṕroxima: é hora de construir novo pacto social e de conflito assumido

Arte: Coda Story
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A redemocratização brasileira não foi um reinício. Partiu de uma transição mal feita e de um pacto traiçoeiro. O colégio eleitoral, a posse de Sarney e o acordo que preservou interesses do regime militar mostraram que não haveria ruptura. A pressão popular e a articulação política de alguns segmentos resultaram na Constituição de 1988. Em 1989, a eleição direta trouxe Collor. Conservador no conteúdo, moderno na forma, corrupto na performance. Teve apoio da mídia e do mercado. Seu colapso abriu espaço para Itamar Franco, figura errática, com acenos nacionalistas. Mas sem projeto e método. De toda maneira, foi ele ao nomear FHC que abriu caminho para um novo ciclo.

Com o Plano Real, a política se reorganizou em torno da estabilidade monetária. FHC abandona sua crítica à dependência e adere ao receituário neoliberal. O plano reduz a inflação, mas impõe juros altos, corte de gastos e abertura comercial. O custo social é alto. A elite econômica vê ali a chance de firmar um novo pacto. FHC torna-se o fiador de uma hegemonia que une tecnocratas, empresários, agro, mídia e parte da esquerda que se adaptou ao mercado.

As eleições de 1994 e 1998 consolidam esse bloco. Lula é derrotado com a ideia de que representa risco. A política é tecnificada. A desigualdade, naturalizada. O discurso da estabilidade esvazia a luta de classes no imaginário popular. O PSDB assume a tarefa de operar a agenda do capital. As reformas avançam. A democracia se torna uma grande planilha. A direita abandona o esforço de formar lideranças populares. Passa a confiar na engrenagem institucional.

Lula vence em 2002 em condições restritivas. A Carta ao Povo Brasileiro mostra isso. Henrique Meirelles no Banco Central é a ponte. Compromisso com o tripé macroeconômico. A habilidade de negociador de Lula foi um diferencial. Mas há contraponto: programas sociais, valorização do salário mínimo, crédito popular. O governo tenta equilibrar inclusão e ortodoxia. Sem confrontar os donos do poder. Um pacto tenso. A ascensão social existe, mas o sistema permanece intocado. O mensalão quebra esse equilíbrio. O STF assume protagonismo. O Judiciário passa a operar como instância política com funções de moderação.

Mesmo sob ataque, Lula se reelege. Expande políticas sociais. Impulsiona o consumo. Estimula o crescimento. A base social se alarga. Mas as alianças conservadoras seguem. As reformas estruturais não vêm. O modelo dá sinais de cansaço. Dilma eleita tenta uma inflexão com o Estado mais presente. A resposta é rápida. O mercado reage. O Congresso sabota. O enigmático 2013 se transforma em movimento de desestabilização. A base se desfaz. Em 2016, o impeachment se consuma. Sem crime. Foi golpe. Novamente um pacto entre mercado, mídia, centrão e Judiciário. O programa rejeitado nas urnas assume o comando.

Com Temer, o Estado muda de função. Torna-se instrumento direto do capital. Congelamento de investimentos. Reforma trabalhista. Avanço sobre direitos. O social é desmontado. A democracia perde substância. A Lava Jato entra em cena como peça-chave. Apoiada por mídia e articulada com interesses externos. Atua para deslegitimar o campo popular. Interdita Lula. Reconfigura o Judiciário como poder moderador. A exceção vira método. A legalidade, instrumento de exceção.

Bolsonaro surge desse colapso. Ocupa o vácuo da direita tradicional. É o produto da sabotagem institucional e da radicalização. Um governo tosco, antipovo, mas funcional. Conserva a política econômica. Adula a plutocracia. Militariza o Estado. Naturaliza o autoritarismo. No fim, tenta o golpe. O 8 de janeiro expõe o enraizamento da extrema direita nas instituições. O bolsonarismo sobrevive à derrota. A democracia permanece sob cerco.

Lula volta em 2023 como solução possível. Herda um país esvaziado. Orçamento capturado. Congresso hostil. Forças armadas inquietas. Mercado vigilante. Governa com habilidade. Mas cercado. Reconstrói. Mas negocia em posição fraca. A repetição do pacto cobra seu preço. O STF se estabelece com o fiador da democracia e, como sempre, dos interesses do capital. A direita está na base do governo e vota como oposição.

A direita segue incapaz de gerar lideranças legítimas. Opera por sabotagem. Manipula redes. Alimenta o ressentimento. Tenta fabricar uma candidatura. Mas falta lastro. Tarcísio é o rosto da tentativa: gestor técnico, disciplinado, útil ao capital, distante do povo. Um projeto sem alma. Eficiência sem política.

A crise institucional escancara o impasse. O Pix como arma política. O IOF como batalha fiscal. O orçamento como moeda de chantagem. Congresso e mercado operam juntos. O topo não aceita ser tocado e além de ser defendido por largas frações do poder político, é apoiado nos setores populares sob a falácia do empreendedorismo e do liberalismo de almanaque. O governo tenta governar sob veto. O capital impõe limites. O país vive sob tutela.

2026 se aproxima. O país não escolhe apenas entre candidaturas. Escolhe entre seguir tutelado por pactos de exceção ou refundar o sentido da política como expressão de conflito real. A direita não tem projeto popular. Apenas arranjos. A extrema direita avança onde o centro colapsou. E o progressismo hesita, entre o medo do confronto e a ilusão da moderação. Parte da esquerda propõe ruptura sem calcular a ressaca. No entanto, se não houver ruptura com a lógica da administração do esvaziamento, o país seguirá oscilando entre a violência e a paralisia. A democracia, nesse cenário, sobrevive como aparência. O desafio é outro: construir um novo pacto social, com redistribuição, conflito assumido e protagonismo popular.

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