Como Lula 3 trata a agricultura familiar

O grande avanço: aumento de créditos para camponeses. Mas faltam orçamento e articulação. Política de assentamentos é pífia e feita sem diálogo com movimentos do campo. Governo precisa superar a apatia – e de coragem para enfrentar o agro

Foto: goias.gov.br
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De forma breve nesse artigo, a proposta é iniciar a análise ou uma conversa sobre a política agrária e agrícola do governo Lula 3 (2023-2026) a partir da reativação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), da ampliação do crédito rural via PRONAF e da relação com os movimentos sociais do campo. A partir de dados atualizados, documentos oficiais e críticas de movimentos e organizações sociais é que essa análise estará embasada.

Passados mais de dez anos, volto a escrever em formato para blog/site sobre o tema da questão agrária e das políticas para a agricultura familiar e camponesa. Claro, recentemente há outros trabalhos na área, mas sob uma perspectiva acadêmica. Muito tempo passou, já estou de cabelos brancos e muitas questões, injustiças e desigualdades no campo permanecem e uma espécie de modus operandi e status quo dos governos do PT em relação a agricultura familiar e camponesa.

A expectativa de retomada de uma política agrária consistente acompanhou a reeleição de Lula em 2022 e um governo de frente ampla. Com a recriação do MDA (extinto no governo Temer) e a retomada do discurso da reforma agrária, setores da sociedade civil organizada, como o MST e a CPT, viram na gestão Lula 3 uma possível inflexão diante da hegemonia do agronegócio. Recentemente foram divulgados dois documentos que trazem uma série de informações e a grave situação sobre a situação estrutural e política da questão agrária no Brasil, são eles:

1 – Política Territorial, Fundiária e ambiental: balanço parcial do governo Lula 3 (2023/2024);

2 – AGROGOLPISTAS: Quem são os 142 fazendeiros e empresários do agronegócio que financiaram tentativa de golpe no Brasil.

Nessa semana foi lançado o Plano Safra com cerca de R$ 89 bilhões para a agricultura familiar e R$ 516,2 bilhões para o agronegócio. Ou seja, o fato é que são valores muito assimétricos e são uma demonstração em si de qual é o projeto agrícola para o país, bem como agrário.

Estamos no terceiro ano de governo à dentro, o cenário revela tensões não resolvidas, políticas devagar (quase parando), um modelo agrário concentrador e uma agricultura ainda essencialmente orientada à exportação. Além disso, a percepção sobre Tarcísio de Freitas (governador de São Paulo) como sucessor político de Bolsonaro e provável candidato a presidente ganha força no meio do “Agro”, em especial, durante eventos do agronegócio.

O MDA no governo Lula 3?

O MDA retomou a sua atribuição ministerial no governo Lula 3, com atribuições ampliadas para a governança fundiária, agroecologia e agricultura familiar. Contudo, há fragilidades institucionais e orçamentárias que limitam sua capacidade de implementação. Apesar de compromissos assumidos com movimentos sociais, como na reunião de abril de 2025 em Mato Grosso, os avanços concretos são reduzidos.

A própria estrutura política do governo Lula 3 tem colocado o MDA em segundo plano. A agenda agrária e fundiária não figura entre as prioridades do Executivo, o que se reflete na destinação orçamentária e na influência limitada do Ministério em decisões centrais. A condução da política agrícola está fortemente voltada às demandas do agronegócio, com apoio do sistema financeiro e de outros ministérios mais influentes, como a Casa Civil e a Agricultura.

O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) alcançou em 2023-2024 o maior volume de sua história: R$ 71,6 bilhões, com 1,68 milhão de contratos. O Banco do Nordeste aplicou R$ 9,4 bilhões apenas na região, mais que o dobro do ciclo anterior. Essa expansão do crédito revela a centralidade da agricultura familiar na pauta governamental, mas não se traduz automaticamente em reforma agrária ou em transformação estrutural do modelo produtivo. Apesar do crescimento expressivo das linhas de PRONAF Agroecologia (210% em número de contratos), os valores absolutos ainda são baixos. A falta de investimento estruturado em assistência técnica e extensão rural limita a transição agroecológica, rumo a uma produção agrícola sustentável, que gere renda substantiva e produção de alimentos saudáveis e sem veneno.

O “Terra da Gente” foi anunciado como símbolo da retomada da reforma agrária. No entanto, críticos apontam que o programa não apresentou rupturas reais com o modelo de regularização fundiária que já vinha sendo executado desde governos anteriores. Em vez de acelerar novos assentamentos com infraestrutura e apoio produtivo, o programa priorizou regularizações de áreas já ocupadas há anos, o que gerou a percepção de que o governo está “maquiando” números para inflar o desempenho. Movimentos como o MST e a CPT alertaram que o programa foi lançado sem diálogo estruturado com as organizações que historicamente constroem a luta pela terra no Brasil. O nome do programa, apesar de simbólico, não foi acompanhado por diretrizes participativas, e o ritmo de implementação segue lento. Há ausência de metas claras, falta de cronogramas públicos e baixa transparência sobre os critérios de seleção das famílias beneficiadas.

O governo afirma ter assentado 71 mil famílias em 2024. Entretanto, segundo o MST, apenas 5.800 lotes foram efetivamente disponibilizados, a maioria resultante da regularização de famílias já em ocupação, procedimento já adotado nos governos Lula e Dilma anteriormente. A ausência de desapropriações por interesse social é indicativo da permanência do pacto fundiário com o agronegócio.

No relatório supracitado sobre a questão territorial menciona-se a noção de “caos fundiário” como instrumento – leia-se política – de manutenção da grilagem e da desigualdade territorial. A integração indevida entre registros públicos, cadastros e sistemas de informação permite a legalização de terras ilegalmente apropriadas, dificultando o mapeamento e a destinação de terras públicas. A falta de articulação entre os entes federados agrava esse quadro, especialmente em estados como Maranhão, Bahia e Tocantins que são considerados a última grande fronteira agrícola.

Isto é, a permanência da grilagem, da violência contra comunidades tradicionais e povos originários e da ausência de regularização fundiária denunciam a continuidade de uma estrutura excludente. E essa omissão do governo Lula 3 diante dos conflitos fundiários está corroendo sua legitimidade entre os sujeitos do campo.

MDA e sua “gestão” político-administrativa

A gestão de Paulo Teixeira no MDA, um dos líderes da corrente “Resistência Socialista” no PT – que se diga de passagem não se sabe ao que resiste (só se for ao cargo) – talvez saia do Ministério após a eleição do partido, pois desacomodá-lo nesse momento poderia gerar algum atrito na composição com a CNB para a eleição de Edinho. Isso é só a ponta do iceberg que reflete os limites de um governo que, apesar do discurso de suposto compromisso com a agricultura familiar e camponesa, tem dificuldade de romper com a hegemonia do latifúndio, da agroexportação e da política agrícola convencional.

O ministro e o seu grupo político não têm trânsito político significativo nas principais arenas de disputa política do governo, bem como engajamento histórico nos bastidores dos movimentos e organizações sociais da agricultura familiar e camponesa. É sabido que Paulo queria o Ministério das Comunicações, não o MDA. Em tese seria um Ministério que exigiria enfrentamento direto com o poder do agronegócio e capacidade de articulação com o Congresso e a sociedade civil. No entanto, sua atuação tem sido percebida como acanhada e, muitas vezes, entreguista ao agronegócio. A ausência de uma presença pública mais forte e de falta de aptidão com o tema comprometeu a construção de uma narrativa e ação política consistente em prol da agricultura familiar e camponesa.

Ao mesmo tempo o MDA, principalmente via CONAB, tem um papel crucial no enfrentamento de possíveis crises alimentares, como a recente alta dos preços dos alimentos no início de 2025. Suas responsabilidades incluem a promoção da agricultura familiar e o desenvolvimento de políticas de abastecimento alimentar. E nesse sentido os quadros do MDA e da CONAB deveriam assessorar e alertar a Presidência da República de qualquer risco nesse sentido. Mas, na recente crise não foi o que aconteceu. Só após a crise e o impacto negativo disso na popularidade do presidente Lula é que ocorreu, ou pelo menos se anunciou, a reconstituição dos estoques.

Além disso, a lentidão na titulação de territórios quilombolas, a baixa execução do Programa Nacional de Reforma Agrária e a fragilidade do INCRA como órgão executor agravam esse cenário. Atualmente há cerca de 145 mil famílias vivendo em acampamentos no país. Destas, 100 mil estão ligadas ao MST. O movimento reivindica o assentamento imediato de ao menos 65 mil que aguardam a regularização há mais de 15 anos. A promessa no MDA é assentar 30 mil famílias até o final de 2025.

Embora o nome “Terra da Gente” dialogue com o imaginário popular, sua execução tem sido tratada como um projeto técnico-administrativo, sem embasamento em um plano nacional de reforma agrária robusto. Segundo análises publicadas no site Outras Palavras e por pesquisadores críticos, o programa reflete mais uma tentativa de “gestão da crise agrária” do que de enfrentamento da desigualdade fundiária. Ou seja, ao invés de tensionar a estrutura concentradora de terras no Brasil, o governo optou por uma política de conciliação, governabilidade e evitação do conflito a qualquer custo com setores que representam o poder do atraso/modernização conservadora no Brasil.

O Relatório com foco nas políticas territoriais é contundente ao afirmar que o governo Lula 3 não rompeu com o modelo fundiário herdado do bolsonarismo, mantendo o Titula Brasil e não recompondo o orçamento dos órgãos fundiários. Já o relatório dos Agrogolpistas mostra como a FPA domesticou a articulação política do governo, impondo limites ao avanço da demarcação de territórios e à reforma agrária.

Apesar de reuniões pontuais com movimentos da Via Campesina, CPT e outras entidades, a relação do MDA com os movimentos sociais tem sido marcada por desconfiança e distanciamento. A escuta não se traduziu em medidas concretas de larga escala. A falta de interlocução efetiva tem contribuído para o enfraquecimento da base de apoio popular do governo no campo.

Boa parte das decisões estratégicas do governo estão centralizadas na Casa Civil, comandada por Rui Costa, que não tem mostrado afinidade com a pauta da reforma agrária. O MDA, assim, se tornou um órgão de gestão com baixo poder de decisão. A articulação interministerial é frágil, e a tática e estratégia (se há), é a partir de ações imediatistas e dispersas, a exemplo de outros ministérios.

Em um contexto de ofensiva ideológica da extrema-direita, seria urgente disputar os sentidos da luta pela terra, da comida, da soberania alimentar e da agricultura familiar e camponesa. O MDA não promoveu campanhas efetivas, nem ocupou o debate público com visões alternativas ao modelo do agronegócio, mesmo com lançamento de políticas de baixo lastro e pouco orçamento. Isso permitiu que o discurso da “eficiência” do agronegócio se consolidasse sem maiores resistências, inclusive no próprio governo que se denomina, ora de centro-direita, ora centro “esquerda”, ora “progressista”.

A pauta agrária está indo para onde?

A política agrária do governo Lula 3 apresenta avanços simbólicos, como a recriação do MDA e a sua vinculação ao INCRA, bem como o aumento do crédito para a agricultura familiar. No entanto, é marcada por limites estruturais, pela ausência de uma reforma agrária efetiva, pela manutenção hegemônica do modelo agroexportador e excessiva burocracia nos bancos (inclusive os públicos) para acesso ao crédito.

A dependência ao agronegócio e a subordinação da agricultura familiar ao mercado revelam a fragilidade da transição prometida. Evidencia-se que o modelo agrícola e agrário hegemônico em constituição no Brasil, que é o praticável dentro das regras do atual estágio do capitalismo, é retroalimentado pela crescente concentração da terra, exploração de mão de obra e da renda, o qual provoca o enfrentamento permanente entre o modelo do agronegócio e outras formas de vida e relação socioambiental na produção agrícola e extrativista.

Para romper e transformar a estrutura histórica de desigualdade no campo para um projeto popular e de justiça social, será necessário mais do que discurso: será preciso ações concretas, políticas públicas efetivas, decisão e mobilização política para enfrentar os interesses do latifúndio e construir outro projeto de Brasil rural.

Ou seja, sabe-se da questão de correlação de forças desfavorável com a oposição, do teto de gastos deste governo tocado por Haddad por demanda do mercado financeiro, da força do agro etc. No entanto, o MDA padece, pelo menos, por três razões:

1 – Ministério marginalizado politica e orçamentariamente em relação a outros ministérios e o próprio Congresso com as emendas;

2 – O básico muitas vezes não é feito em relação as atribuições institucionais do Ministério por falta quantitativa e qualitativa de recursos humanos com capacidade técnica e política de gestão em relação aos temas de atribuição do ministério;

3 – Relação política submissa e pautada por setores do agronegócio do governo, sobretudo com deputados(as) do centrão que tem interesses nas terras devolutas da União. Ou seja, o “caos fundiário” mantido pelo MDA-INCRA é funcional à grilagem de terras públicas e à consolidação de grandes empreendimentos, sendo o pano de fundo do avanço do agronegócio.

Além disso, o grupo político que foi indicado ao MDA, seja pelas questões conjunturais de governo, seja pela inaptidão com o tema, teve uma reação política muito tardia, uma letargia em que o ministério estava tomado até o final de 2024. Somente apenas após sucessivas ameaças de demissão do ministro, que seu grupo passou a se organizar um pouco melhor e conseguiram “embalar” algumas entregas, como o anúncio de 400 milhões de reais para o Fundo de aquisições de terras, o Edital agroecologia “Da Terra à Mesa” com aporte de 100 milhões, com priorização de 50 % para mulheres agricultoras e 20 % para jovens rurais; e a parceria com o Brics para a mecanização, inovação e tecnificação para a agricultura familiar até 2033.

Cabe também questionar qual tem sido a ação do governo e de sua base no Congresso, diante das diversas proposições legislativas defendidas pela bancada ruralista no Congresso Nacional que expressam o projeto político de aprofundamento da expropriação territorial e da devastação ambiental no país.

Entre elas, destaca-se o PL 490/2007, que institui o chamado “Marco Temporal” e limita drasticamente o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras, subordinando-o à sua ocupação em 5 de outubro de 1988. O PL 2633/2020, conhecido como “PL da Grilagem”, legaliza a ocupação irregular de terras públicas ao flexibilizar regras de regularização fundiária, favorecendo grileiros e grandes proprietários. Já o PL 191/2020 abre as terras indígenas à exploração mineral e à construção de grandes obras de infraestrutura, mesmo sem consentimento das comunidades afetadas, violando tratados internacionais como a Convenção 169 da OIT.

Somam-se a essas propostas uma série de medidas que visam restringir a fiscalização ambiental, reduzir a autonomia de órgãos como o Ibama e o ICMBio e enfraquecer os instrumentos de reconhecimento e proteção de territórios indígenas, quilombolas e tradicionais, configurando um verdadeiro pacote de desmonte da política socioambiental brasileira.

Se parte da bancada ruralista é base do governo, qual seria a ação do governo em relação a essas proposições? A resposta é que a base governista no Congresso Nacional é composta por representantes de interesses que se opõem à reforma agrária, à demarcação de territórios e à defesa dos bens ambientais comuns, o que compromete o avanço de políticas redistributivas e protetoras dos territórios.

Ou seja, para que a reforma agrária e a agricultura camponesa voltem ao centro do projeto de país, seria preciso muito mais do que ocupar um Ministério em um tema no qual não se tem experiência. Seria necessário enfrentar interesses, redistribuir poder e reconstituir alianças com os setores populares do campo para tentar, pelo menos tentar, um processo de mobilização social. Até aqui, isso não aconteceu. Tomará que mude ou pelo menos se tente, seja pelo povo do campo, seja que para o próprio governo Lula 3 ajeite o seu prumo.

E ficam as perguntas: o governo, no que depende apenas dele, está disposto em construir e executar um projeto de desenvolvimento socioambiental rural no Brasil que remeta a coletividade e a participação popular? O governo age em prol da sustentabilidade e agroecologia para a sociedade brasileira? E o que foi prometido no Plano de governo eleito em 2022 para a agricultura familiar e camponesa?

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