Marx compartilharia memes?

Tóxico!, dizem sobre o algoritmo das redes sociais. Ele não mascara o real, mas dissolve o desejo de compreendê-lo. Uma mais-valia cognitiva, talvez avaliasse o filósofo alemão. Poderia a gargalhada viral ser arma política, se munida de crítica e esperança? É algo a se pensar (ou disputar)…

.

Vivemos num tempo em que até o delírio se tornou programável. O nonsense é produto. O absurdo, mercadoria. O brain rot — essa estética viral do vazio — não é uma simples excentricidade da juventude conectada, mas um sintoma gritante de um tempo doente. Um tempo em que o riso já não liberta, apenas lubrifica a engrenagem.

O nome é sugestivo: apodrecimento cerebral. Mas não é o cérebro que apodrece — é a nossa capacidade de viver o mundo com sentido. O brain rot é a estética da alienação digital: o nonsense domesticado, transformado em trilha sonora de uma sociedade que já desistiu de se entender. Aquilo que poderia ser subversivo — o absurdo, o desajuste, a gargalhada — foi capturado. Monetizado. Algoritmizado.

Marx nos ensinou a reconhecer a alienação no trabalho. Mas hoje, alienamo-nos no descanso, no consumo, no riso. Rimos do absurdo sem perceber que o absurdo somos nós. Que rimos do espelho.

A sociedade do espetáculo, descrita por Guy Debord, foi além da imagem que substitui a realidade. Agora, a imagem já não representa nada — e mesmo assim seguimos olhando. O brain rot é o espetáculo do vazio: conteúdo sem conteúdo, que vende nossa atenção como produto bruto. Cada vídeo de seis segundos é uma unidade de tempo vendida ao capital. Não se trata de distração — é projeto.

O espetáculo já não encena a realidade: ele a dissolve. Debord advertia que, no capitalismo avançado, a vida concreta é substituída por representações espetaculares que não apenas ocultam a verdade, mas fabricam uma nova realidade alienada, onde tudo que era vivido diretamente se tornou representação. Mas o brain rot dá um passo além: já não há sequer representação — há somente repetição, saturação, ruído. A imagem não oculta o real, ela anula o próprio desejo de realidade.

Nesse novo estágio do espetáculo, o valor de troca impera sobre qualquer sentido. A mercadoria imagética, desprovida de conteúdo, circula porque captura cliques, dados, rastros. O nonsense viral, aparentemente gratuito, é a forma-mercadoria adaptada ao tempo da fadiga cognitiva. O que se vende não é o vídeo, mas o rastro que ele deixa, o segundo de atenção arrancado da mente entorpecida. A alienação deixa de ser apenas condição do trabalhador na produção e se torna forma cotidiana de percepção — um modo de existir mediado por fluxos incessantes de signos vazios.

O sujeito, nesse contexto, não é apenas espectador, mas também produtor involuntário de valor. A rolagem infinita, os likes, os comentários — tudo é trabalho não remunerado, convertido em lucro para as plataformas. A alienação é completa: não só nos afastamos do produto do nosso trabalho, mas da própria experiência sensível.

O brain rot é, assim, a superação cínica do espetáculo: já não há promessa de verdade, nem desejo de sentido. Só ruído que engaja.

Esse projeto é o de uma nova forma de ideologia: não mais a que mascara a realidade, mas a que dissolve o próprio desejo de compreendê-la. O algoritmo não impõe um conteúdo, ele modela a forma de nossa percepção — e, com isso, captura nossa capacidade de negar. Trata-se de uma alienação de segunda ordem, em que o sujeito já não se reconhece como sujeito, mas como fluxo, dado, reação.

Atenção é campo de batalha. E o cansaço é sua principal arma. O esgotamento cognitivo não é um efeito colateral do digital — é sua política. Uma subjetividade exausta não protesta. Não organiza assembleia. Não escreve panfleto. Somente desliza o dedo em tela fria, rindo de um peixe que dança salsa ou de um padre que dubla funk. O brain rot é a nova censura: aquela que não proíbe, apenas entorpece.

No início de 2025, o Italian Brain Rot emergiu como ápice desse delírio algorítmico. Memes absurdos gerados por inteligência artificial, com criaturas híbridas e nomes pseudo-italianos como Tralalero Tralala, Ballerina Cappuccina ou Chimpanzini Bananini, tomaram as telas com trilhas sonoras caóticas, vozes robotizadas e estética saturada. A lógica: nada precisa fazer sentido, contanto que continue sendo consumido. O absurdo, aqui, não mais provoca — apenas distrai. O nonsense não é rebeldia, é anestesia.

O Italian Brainrot não é uma piada aleatória. É a forma mais recente de uma estética do esgotamento: uma sobrecarga sensorial que não apenas diverte, mas atordoa. A lógica é simples — e perversa: quanto mais fragmentado e insensato o conteúdo, mais fácil capturar a atenção cansada. Trata-se de uma estratégia refinada de distração contínua, onde o nonsense vira ferramenta de alienação.

O que parecia apenas humor nonsense revela, na verdade, a face pós-irônica de uma cultura saturada, onde o nonsense é a norma e o excesso é estilo. Essa estética alimenta o espetáculo do nada: vídeos sem contexto, imagens que não dizem nada, sons que não comunicam, mas que circulam — e vendem. O que está em jogo não é apenas o tempo roubado, mas a destruição da nossa sensibilidade histórica e crítica.

No centro desse processo está a economia da atenção, forma contemporânea de exploração que transforma mais ainda a mente humana em mercadoria. A atenção, que antes mediava o conhecimento e a experiência, torna-se agora força de trabalho capturada, medida e monetizada. O algoritmo extrai lucro da fadiga: quanto mais o sujeito se esgota diante das telas, mais tempo de engajamento é convertido em dados e lucro. Trata-se de uma forma de “mais-valia cognitiva”, em que o tempo de vida psíquica é subsumido ao capital.

O esgotamento não é um subproduto, mas uma condição necessária para o funcionamento do capitalismo digital. O cansaço crônico da subjetividade é o terreno fértil onde prosperam a despolitização, o conformismo e o automatismo do consumo. O brain rot, nesse sentido, é a estética funcional da ideologia dominante: não exige crença nem adesão, apenas passividade.

Sob sua aparência divertida, o brain rot — e sua vertente italiana — representa um novo estágio da alienação: um esvaziamento contínuo da experiência, em que o riso não vem da inteligência, mas do cansaço. E é justamente esse cansaço o que o algoritmo deseja. Não se trata de erro ou excesso. É um refinado regime de produção e dominação. É projeto.

Mas há resistências.

Brecht compreendeu o poder do riso. Para ele, a comédia não era fuga, mas arma. Seu teatro não buscava empatia, mas estranhamento. O público não devia se identificar, mas se desconcertar. O riso, ali, não era alívio: era ruptura. Rir, sim — mas rir com consciência. Rir da miséria social para combatê-la. Rir do opressor para expô-lo. Rir do absurdo, mas com o punho cerrado. Brecht reivindicava o riso que ilumina — o riso que pensa, que incomoda, que desperta.

Hoje, essa lição é urgente. Não se trata de demonizar o meme, mas de disputar sua forma. Mesmo a gargalhada viral pode ser arma, se munida de crítica. Até o delírio pode ser politizado. É preciso resgatar a força do riso dialético, aquele que desestabiliza a ordem sensível, que nos convida a ver — e mudar — o mundo.

O brain rot só existe porque o real se tornou insuportável. Combatê-lo não é renegar a cultura digital, mas enfrentar as formas sociais que a moldam. Não é calar os memes, mas revirá-los, esvaziá-los de alienação e enchê-los de sentido novo. O problema não está nas imagens que circulam, mas nas estruturas que determinam o que pode circular, o que pode ser visto, pensado, sentido.

A crítica do presente exige, portanto, que voltemos a pensar a cultura não como espelho deformado da realidade, mas como campo de disputa sobre o sensível. A alienação contemporânea não opera apenas na fábrica, mas na tela; não somente no trabalho, mas no lazer. Precisamos retomar a arte como arma — não de distração, mas de desalienação.

Precisamos reconstruir o sensível. Precisamos de arte que cure e denuncie. De ironia que fira a mentira. De imagens que não apenas nos distraiam, mas nos devolvam a nós mesmos. Precisamos de silêncio também — e de pensamento lento. De tempo que não seja cronômetro de produção, mas solo fértil de insurgência.

Desligar pode ser um ato político. Reaprender a pensar, um gesto de rebeldia. E rir, sim — mas do jeito que Brecht ensinou: rindo com raiva, com lucidez, com esperança. Rindo para não nos tornarmos cúmplices do espetáculo do nada.

Porque até sonhar, hoje, exige coragem.

Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *