DNA não explica o racismo, mas revela a violência

Ao sequenciar o genoma da população, uma verdade indigesta: Brasil nasceu de mães pretas e indígenas e pais brancos, indício de violência sexual sistemática. Nova pesquisa ajuda a explicar sobre a saúde negra – mas também pode contribuir com luta antirracista

Recorte do quadro "A Redenção de Can", de 1895. À esquerda, uma senhora negra retinta levanta as mãos aos céus, ao lado de sua família: uma mulher negra de pele clara, seu marido de fenótipo europeu e seu filho, um bebê também branco. Um dos famosos retratos do racismo do final do século XIX.
Recorte da pintura “A Redenção de Cam”, de Modesto Brocos, 1895, que exaltava o embranquecimento da população brasileira, um retrato amargo da sociedade racista e colonialista dos primeiros anos da República. Programa Genomas Brasil dá mais provas de que o “cruzamento das raças” não foi fruto de encontros espontâneos ou harmoniosos, mas de uma história atravessada por violência, dominação e estupro.
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O Ministério da Saúde financiou um estudo inédito do Programa Genomas Brasil, que sequenciou o genoma completo de mais de 2,7 mil brasileiras/os, identificando cerca de 8,7 milhões de variantes genéticas inéditas, entre as quais 37 mil estão potencialmente associadas a doenças como problemas cardíacos e obesidade. Realizado em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e publicado na revista Science, sob o título “Admixture’s impact on Brazilian population evolutionand health”, o estudo destaca a enorme diversidade genética da população brasileira, oferecendo bases importantes para o desenvolvimento de políticas públicas mais eficazes na área da saúde.

A análise genômica revelou que a “miscigenação” encontrada influenciou especialmente genes relacionados à fertilidade, à imunidade e ao metabolismo energético. Esses achados ajudam a compreender predisposições da população brasileira a condições como doenças infecciosas, distúrbios metabólicos, como obesidade, e questões ligadas à saúde reprodutiva. O sequenciamento genético é relevante para conhecer as especificidades de cada população.

Ao revelar que a maior parte da população brasileira carrega DNA mitocondrial, ou seja, de linhagem materna proveniente de mulheres indígenas e africanas, enquanto a herança genética paterna é predominantemente europeia, o estudo escancara uma história de violência sexual sistemática durante a colonização, contrária ao mito da convivência pacífica entre os diferentes grupos raciais. O padrão genético apontado pelas/os pesquisadoras/es, e que se repete em diversas regiões do Brasil, é descrito no próprio estudo como resultado de “acasalamento não aleatório”.

A leitura crítica proposta por Lélia Gonzalez sobre o que chama “cruzamento de raças” permite compreender que os dados genéticos que hoje revelam a contribuição majoritária de mulheres indígenas e africanas na formação da população brasileira não são frutos de encontros espontâneos ou harmoniosos, mas de uma história atravessada por violência, dominação e estupro. A própria constituição genética do Brasil carrega as marcas dessa estrutura colonial-racial, na qual os corpos de mulheres racializadas foram alvos preferenciais de exploração sexual.

É importante destacar que o objetivo central desta pesquisa não é discutir a raça como uma construção social, tampouco abordar o racismo como estrutura. O foco está nos impactos da diversidade genética em aspectos como a saúde reprodutiva. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de considerar o quanto essa pesquisa reforça algo que já sabemos há tempos: a violência colonial não foi um acidente da história, mas uma tecnologia social de dominação. Mulheres indígenas, africanas e de ascendência africana, na condição de escravizadas, foram violadas sexualmente em larga escala. Seus corpos não apenas sustentaram a economia colonial, mas também serviram como objeto de exploração e reprodução pelos colonizadores.

A composição genética da população brasileira carrega as marcas da violência sexual ocorrida durante a colonização e que persiste até hoje. Esse dado biológico escancara uma memória que não ficou no passado, mas que segue reverberando nas estruturas de desigualdade atuais. A brutalidade desse legado se reflete, por exemplo, nas estatísticas recentes de violência sexual: segundo estudo realizado pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper, com base em dados do Ministério da Saúde, aproximadamente 40% dos casos de estupro no Brasil vitimam crianças e adolescentes negras, evidenciando como se perpetuam as dinâmicas de vulnerabilização e desproteção que atravessam gerações. Esse número revela que a violência sexual contra mulheres e meninas negras não é um desvio, mas parte estruturante de uma lógica colonial que persiste.

Quando olhamos para os indicadores de saúde no Brasil, é evidente que a população negra — composta por pessoas pretas e pardas — continua enfrentando as consequências do racismo fundado na colônia. A expectativa de vida é menor. O acesso à saúde de qualidade é mais restrito. Os índices de mortalidade materna, especialmente entre mulheres negras, são preocupantes. O racismo institucional, muitas vezes naturalizado, opera desde a recepção nos serviços de saúde até as decisões clínicas. O racismo funciona como necropolítica, no sentido proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, que define necropolítica como o poder de decidir quem deve viver e quem pode morrer. Trata-se de uma lógica em que o Estado, por meio de suas instituições e omissões, escolhe quais vidas são protegidas e quais são descartáveis.

O estudo da USP não é neutro em sua recepção pública. A forma como a imprensa e as redes sociais repercutiram seus achados revela muito sobre as narrativas que ainda sustentam o racismo à brasileira. Enquanto algumas/uns usaram os dados para reafirmar a falsa ideia de que “somos todas/os iguais”, outras/os questionaram se a pesquisa serviria para “dividir ainda mais o Brasil”. É como se a constatação de que somos fruto de um processo violento fosse desconfortável demais para ser reconhecida, especialmente por aquelas/es que herdaram os privilégios dessa herança colonial.

A ciência, ao ser divulgada, carrega consigo disputas de sentido. Por isso, é urgente que a produção científica se comprometa com a ética em pesquisa. Isso não significa instrumentalizar dados para agendas políticas, mas sim reconhecer que nenhuma produção de conhecimento é isenta de contexto. Quando falamos em genômica populacional no Brasil, precisamos falar também de história, de colonialismo, de racismo e de reparação.

Outro ponto importante é reconhecer que, apesar da violência que marca nosso passado, também há uma história de resistência que nos atravessa. Mulheres indígenas e africanas não foram apenas vítimas, seguem sendo protagonistas na luta pela sua existência. São elas que, nos territórios, nas favelas, nas periferias, nos terreiros e nas comunidades indígenas, sustentam redes de cuidado, memória e organização política. A saúde coletiva brasileira deve muito a essas mulheres e às epistemologias que construíram, mesmo quando ignoradas pela academia.

Embora o estudo genômico revele a diversidade genética presente na população brasileira, ele não se propõe a validar ou negar as categorias raciais baseadas em características fenotípicas, como as utilizadas pelo IBGE para fins censitários. Essas categorias, fundamentais para a construção de indicadores desagregados por raça/cor, não têm relação com a genética, mas com os sentidos socialmente atribuídos aos indivíduos, que servem para dimensionar os efeitos do racismo. Essa lógica é expressão do que as ciências sociais brasileiras definem como racismo de marca, cuja operação se dá a partir dos atributos fenotípicos e não da origem biológica.

Essa percepção social está enraizada em um projeto histórico de hierarquização dos corpos, forjado desde o colonialismo, e segue sendo atualizada nas estruturas contemporâneas: no mercado de trabalho, no acesso à educação, nos espaços de decisão, na mídia e também no sistema de justiça. Portanto, não é a genética que determina quem sofre racismo, mas a forma como a sociedade atribui valor, respeito e humanidade às pessoas, a partir de uma leitura visual que é socialmente construída, politicamente sustentada e historicamente denunciada pelos movimentos negros, que há décadas desmascaram o racismo.

Ainda que a pesquisa genômica traga contribuições importantes para compreender a diversidade genética da população brasileira, ela não pode ser usada para apagar ou relativizar as bases sociais, políticas e históricas que estruturam o racismo no país. É fundamental reforçar que recorrer à genética para tentar deslegitimar as narrativas dos movimentos negros é uma armadilha política que serve para desviar o foco das verdadeiras raízes do racismo: a manutenção de um sistema de poder, exploração e privilégios. O racismo, afinal, não é uma questão de genes; é uma tecnologia social de dominação.

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