BRICS+: é possível uma nova Saúde Global

Com crise na OMS, bloco tem o dever de liderar combate a problemas estruturais, como determinantes comerciais da saúde e doenças negligenciadas. Sob presidência do Brasil, há promessa de priorizar o tema – mas ações devem ir além da simples troca de experiências

Homem em Brasília recebe vacina contra a covid-19 desenvolvida na China. Foto: Agência Xinhua
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Nos dias 29 e 30 de maio de 2025, ocorrerá em Brasília o seminário “BRICS em Ascensão“, um encontro internacional que reunirá governos, especialistas e movimentos sociais para debater os desafios enfrentados pelo BRICS no atual cenário geopolítico. O GTPI/Rebrip participará da mesa sobre cooperação global em saúde. No dia 29 de maio, às 18h30, a REBRIP lançará o dossiê “BRICS+ e o futuro soberano do Sul Global”, no Memorial Darcy Ribeiro (Beijódromo/UnB). A publicação traz 10 artigos com propostas e análises sobre o papel do BRICS+ na construção de uma ordem multipolar mais justa. O presente texto traz algumas reflexões e busca contribuir para o debate nos BRICS+ e apresentar o que o BRICS+ poderia fazer pela saúde global diante do atual contexto.

Vivemos hoje uma profunda crise na saúde global. Não por escassez de conhecimento, tecnologias ou recursos, mas por decisões políticas deliberadas que abandonam povos inteiros à morte. Cortes drásticos no financiamento de programas essenciais de prevenção, diagnóstico e tratamento de HIV, tuberculose e outras doenças infecciosas estão provocando um colapso silencioso — e mortal — em diversos países, sobretudo na África e em outras regiões do Sul Global. 

Trata-se de um verdadeiro genocídio. E ele se materializa de múltiplas formas: ora silencioso, pela negligência deliberada; ora explícito, como o massacre em Gaza, transmitido ao mundo em tempo real. Ambos os genocídios — o da omissão e o da violência aberta — estão enraizados no mesmo projeto ideológico: supremacista, colonial e anti-humanitário – contrário a diversidade, equidade e inclusão.

Os EUA eram os principais doadores que sustentavam o aparelho humanitário internacional, financiando programas de atenção ao HIV/AIDS, à tuberculose e à malária e a saúde materno infantil. Os EUA também eram os principais financiadores da OMS. Ainda que o evento torne evidente o problema com a dependência e a caridade, os efeitos desse desmonte são profundos e amplos. 

Apenas no campo do HIV/AIDS, o Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o Alívio da AIDS (PEPFAR), responsável por grande parte da compra e distribuição global de antirretrovirais e profilaxia pré-exposição (PrEP) para atender mais de 20 milhões de pessoas, sofreu cortes severos. Isso gerou rupturas em cadeias de suprimento, suspensão de programas de prevenção, e ameaça direta à vida de milhões. A previsão do UNAIDS é alarmante: caso esses programas não sejam retomados, até 2029 haverá 6,6 milhões de novas infecções por HIV e 4,2 milhões de mortes relacionadas à AIDS — o equivalente a 2.900 mortes evitáveis por dia.

Brasil, BRICS e Sul Global podem ser protagonistas

O cenário catastrófico exige uma resposta firme e coordenada dos países do Sul Global. As estratégias de fortalecer a cooperação entre os países dos BRICS+ é ainda mais importante no atual contexto político internacional. Os países do BRICS+ podem assumir um protagonismo na construção de uma nova governança da saúde global baseada na solidariedade, na justiça social e no direito universal à vida.

Sob a presidência brasileira em 2025, a saúde foi alçada a uma das prioridades da agenda do BRICS+. A proposta apresentada parte da compreensão de que os países do bloco compartilham desafios estruturais profundos, como a pobreza, a desigualdade, o racismo ambiental e o peso desproporcional das doenças socialmente determinadas e tropicais negligenciadas. 

O programa interministerial Brasil Saudável, lançado em 2024, estrutura essa visão, articulando saúde a políticas sociais, ambientais e econômicas com o objetivo de transformar as condições que adoecem a população. Essa abordagem resgata elementos centrais da Reforma Sanitária brasileira e do movimento global por Saúde como Direito, ao defender a justiça social como condição para a saúde coletiva.

Com base nessa experiência, o Brasil propõe ao BRICS+ uma aliança estratégica para enfrentar os fatores estruturais que sustentam as Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) e outras enfermidades ligadas à pobreza. A proposta inclui diretrizes voltadas ao combate à fome, promoção da equidade, valorização dos trabalhadores da saúde, incentivo à ciência e à inovação, e investimentos em infraestrutura, saneamento e proteção ambiental — reconhecendo que a garantia do direito à saúde passa por transformações além da oferta de serviços.

É preciso ir à raiz estrutural dos problemas

No entanto, ao mesmo tempo em que propõe um enfrentamento dos determinantes sociais, a iniciativa brasileira ainda evita abordar de forma direta um conjunto de obstáculos igualmente estruturais: os determinantes comerciais da saúde e o financiamento da saúde global. A ausência dessas dimensões enfraquece o potencial transformador da proposta. 

Barreiras relacionadas ao comércio internacional, como as regras de propriedade intelectual, continuam a limitar drasticamente o acesso a tecnologias essenciais. O sistema global de patentes favorece a concentração de poder nas mãos de poucas corporações, perpetuando monopólios, elevando preços e impedindo a autonomia produtiva de países do Sul Global. Por outro lado, os recursos financeiros destinados a iniciativas de combate ao HIV/AIDS, por exemplo, foram drasticamente reduzidos e estão concentrados em poucos doadores – especialmente os EUA e no setor privado a Gilead Sciences e a Fundação Bill e Melinda Gates (BMGF).

É preciso encarar com seriedade os determinantes comerciais da saúde, reconhecendo que acordos econômicos e regimes de propriedade intelectual impactam diretamente a vida e o bem-estar dos povos.  A persistência de um modelo de inovação farmacêutica alicerçado na propriedade intelectual é excludente. 

O Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), adotado em 1995 no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), representa um dos pilares centrais de uma agenda normativa moldada por interesses das grandes corporações farmacêuticas. Longe de cumprir sua promessa de fomentar inovação e fortalecer a capacidade industrial local, o TRIPS consolidou um modelo de apropriação tecnológica que perpetua a dependência dos países do Sul Global em relação aos centros de poder econômico.

Esse modelo falha sistematicamente ao apostar em mecanismos voluntários de acesso que centralizam o poder de decisão nas mãos das detentoras de patentes, sem obrigatoriedade de atender às necessidades de saúde pública. 

As licenças voluntárias, embora apresentadas como mecanismos de “solidariedade corporativa”, na prática, operam como instrumentos de controle de mercado, mantendo o poder de precificação nas mãos das grandes farmacêuticas e dificultando a construção de alternativas sustentáveis de produção pública ou regional. Elas não apenas falham em garantir acesso universal a medicamentos essenciais, mas também desincentivam o uso de salvaguardas legais como licenças compulsórias, ao criarem uma aparência de suficiência e colaboração que mascara as barreiras impostas pelo regime internacional de propriedade intelectual.

Além disso, este modelo de inovação falha de forma sistemática em responder às principais necessidades das populações dos países do Sul Global, como as doenças tropicais negligenciadas, ignorando o impacto que têm sobre milhões de pessoas por não representarem um mercado lucrativo. Essas doenças são falhas estruturais de um sistema de inovação que não reconhece a saúde como um bem comum.

Oportunidade estratégica

A presidência brasileira no BRICS+ representa uma oportunidade estratégica para reorientar a agenda de cooperação internacional em saúde. Para isso, é preciso que o BRICS+ vá além da troca de experiências e assumam um papel ativo na construção de soluções estruturais. 

Isso inclui iniciativas para fortalecer a Aliança Global pelos Cuidados em Saúde tendo em vista o enfrentamento os determinantes sociais da saúde e as doenças tropicais negligenciadas; a ampliação do papel do Banco de Desenvolvimento do BRICS no apoio a programas voltados à saúde pública e ao acesso a medicamentos; a adoção de medidas não voluntárias, como licenças compulsórias e salvaguardas de saúde pública; o fortalecimento do Centro de Vacinas do BRICS, com sua efetiva operacionalização, como medida estratégica para a soberania sanitária do bloco; e a reestruturação do modelo de inovação em saúde, com fim do subsídio público a lucros privados e adoção de um paradigma baseado nos direitos humanos como princípio das políticas de ciência, tecnologia e inovação.

Por fim, acreditamos que os BRICS+ ainda pode resgatar e reafirmar o multilateralismo como um caminho para encontrar soluções coordenadas e comuns aos problemas de saúde enfrentados em muitos países, especialmente aqueles que o compõem. No entanto, esse protagonismo não deve ficar restrito apenas aos governos e Estados do bloco. 

Para garantir uma resposta verdadeiramente ampla, democrática e justa, é essencial que as sociedades civis sejam apoiadas e incluídas ativamente nesse processo. Somente assim será possível construir políticas de saúde globais que priorizem a solidariedade e o bem comum, em benefício de todos e todas.

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