Psiquiatria: reduzida à prescrição de remédios?

Em entrevista, Juliana Belo Diniz aponta como a sociedade e trabalhadores da saúde mental sofrem as consequências de discurso reducionista que reduz sofrimento psíquico a desordem química. Cenário favorece a hipermedicalização, celebrada pela indústria farmacêutica

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É preciso mudar a forma como se abordam os transtornos mentais em nossa sociedade, alertou a psiquiatra Juliana Belo Diniz, em entrevista concedida a Outra Manhã, o programa matinal ao vivo de Outras Palavras, na última segunda-feira (12/5).

É cada vez mais disseminada na sociedade a ideia de que a origem do sofrimento psíquico está em desequilíbrios químicos no cérebro. Na prática, isso tem servido à hegemonia de uma psiquiatria que recorre exclusivamente à medicação como tratamento – para a felicidade e o lucro da indústria farmacêutica. “A indústria explora a ideia de que, se você tiver um discurso palatável, compreensível e simples da doença mental, isso vai favorecer a identificação das pessoas. Elas vão assumir que aquela é a sua forma de sofrimento e vão procurar tratamento médico. Tem todo um discurso de boas intenções, de ampliar o acesso, de que as pessoas possam ter acesso a ferramentas que podem ajudá-las com seu sofrimento, de tirar a doença do âmbito moral”, ela explica.

Também psicanalista e pesquisadora do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC-USP), Diniz avalia que as consequências desse processo são funestas para o bom trabalho na área da saúde mental: “As pessoas passam a usar os critérios diagnósticos do DSM como uma verdade absoluta, um fato cientificamente incontestável. Vejo que muitos colegas concordam que isso é um reducionismo absurdo da psiquiatria. Leva as pessoas a trazerem o seu sofrimento de uma forma completamente despersonalizada e a procurar saídas farmacológicas – ou psicoterapêuticas, mas voltadas para a supressão de sintomas –, com a ideia de que ‘se eu medicar isso aqui que eu sinto, tudo vai ficar ótimo’, o que obviamente é uma visão bastante deturpada da vida.”

Recentemente, Diniz lançou o livro O que os psiquiatras não te contam, que “surge da demanda de responder a essa visão de uma psiquiatria extremamente reduzida e focada na ideia de sintomas que respondem a certos remédios”. Outra Saúde publicou, com exclusividade, um trecho da obra. Na entrevista, a autora frisa que a ascensão desse modelo médico não está desconectada da precarização do trabalho na Saúde: “O indivíduo que medica é pressionado a atender cinco pacientes por hora e marcar retorno só para daqui a seis meses. Nessas condições, mesmo colegas que são ótimos profissionais, não vão conseguir fazer um bom trabalho. A prescrição de remédios vira a ‘solução’ até para os que não concordam.”

Foto: Juliana Veronese/Divulgação

É nessa dinâmica que a hipermedicalização se torna uma consequência quase natural, ela aponta. “Remédio não é ruim, a gente precisa deles e em muitos momentos eles são ferramentas úteis. Mas saber que eles são limitados é extremamente importante, porque você não assume essa limitação, os profissionais correm atrás do próprio rabo e medicam cada vez mais sintomas que claramente não vão responder a remédio. A consequência são aquelas pessoas que a gente vê com prescrições de dez drogas diferentes em doses altíssimas”, avalia a psiquiatra.

A partir desse fenômeno, a psiquiatria é “convocada a resolver problemas sociais” que evidentemente possuem raízes muito mais profundas que apenas transtornos de ordem psíquica. A partir do exemplo dos casos extremos de violência entre menores de idade organizados via redes sociais, que vêm sendo divulgados na imprensa, ela provoca: “A psiquiatria vai pôr todos esses adolescentes em um consultório? Vai medicar todos eles? Responder isoladamente a essas questões não vai dar nenhum resultado”.

Diniz aponta que o mesmo pode ser dito da explosão de diagnósticos no âmbito escolar, que preocupa os profissionais da educação pública devido à impossibilidade prática de oferecer cuidados extremamente específicos a todos os jovens que receberam um laudo – os de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Opositor Desafiante (TOD), oferecidos até mesmo a crianças com sintomas bastante leves, sendo os mais comuns.

No âmago dessas transformações regressivas na psiquiatria brasileira, a autora revela que há um aspecto internacional. “De certa forma, existe uma tentativa de colonização do Brasil por um discurso da psiquiatria norte-americana, que diz que não interessa qual é a história [do paciente] e como ele chegou até aqui, o fato é que hoje ele está assim e que a gente precisa medicar. A gente acaba sendo muito dependente dessas fontes de pesquisa, e acaba não levantando a voz por ter receio de ser reprovado”.

Por isso mesmo, defende Juliana, é cada vez mais importante abordar criticamente, com o público geral e os profissionais da área, o discurso biologizante sobre os transtornos mentais – e construir mudanças políticas, sociais e econômicas com efeitos nas questões mentais, a verdadeira alternativa para começar a construir um caminho positivo em uma área ainda cheia de incertezas.

“O Thomas Insel, que foi diretor por mais de uma década do órgão de distribuição de recursos para pesquisas em saúde mental dos Estados Unidos, recentemente lançou um livro dizendo que a neurociência não revolucionou em nada a doença mental nos últimos 30 anos. Não sou só eu, uma ‘neurocientista radical da periferia’, dizendo isso. É qualquer neurocientista sério que conhece profundamente a área que vai dizer isso. A gente não revolucionou as doenças mentais, porque a gente ainda consegue explicar muito pouco delas”, completou Diniz.

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