Enamed: teremos melhores escolas de medicina?

Exame proposto pelo Ministério da Educação é tentativa de regular nível do ensino, após explosão de cursos. Mas há dúvidas a respeito de sua eficácia, além de abrir espaço para soluções mercadológicas. Falta um real enfrentamento à falta de médicos no Brasil

Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Se é verdade que os cursos de medicina no Brasil precisam passar por uma revisão, para que se avalie sua qualidade, é preciso questionar a Portaria 330, editada pelo Ministério da Educação em 23 de abril, que institui o Exame Nacional de Medicina (Enamed), prova que avaliará estudantes egressos dos cursos de medicina no Brasil. Seria essa a melhor forma de garantir ensino de medicina de qualidade e, portanto, médicos melhor formados?

César Eduardo Fernandes, presidente da Associação Médica Brasileira, defende o exame: “O paciente precisa estar em primeiro lugar. E o médico que se prepare melhor para refazer seu exame se necessário”.

“O Enamed é medida paliativa, mas necessária, diante da gravidade do que vimos observando no processo de formação médica com fragilização e superficialização de todo o processo pedagógico”, analisou Elda Bussinguer, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), ao Outra Saúde.

De fato, há um consenso a respeito do nível do ensino da profissão no Brasil, a partir da expansão das faculdades privadas, um fenômeno propiciado pelo boom econômico observado nos primeiros governos Lula. De acordo com outros dois exames aplicados aos formados na área, o Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) e o Enare (Exame Nacional de Residência), 59% dos cursos de medicina do país alcançaram notas regulares ou ruins.

Os números dizem respeito ao Conceito Preliminar de Crédito, que atribui notas aos cursos a partir das notas de seus alunos no Enade. Em 2024, apenas seis cursos tiraram nota 5 e 119 alcançaram nota 4, as duas faixas consideradas satisfatórias pelo MEC. Já outras 156 faculdades de medicina obtiveram conceito 3; outros 22 cursos, 2; por fim, dois cursos receberam a nota 1.

Mas a discussão não é tão simples. “Todo e qualquer exame dessa natureza evidencia a fragilização da formação no Brasil, em todas as áreas e na medicina em especial. Os exames são o demonstrativo do fracasso das instituições que estão mais preocupadas em seus próprios interesses financeiros do que efetivamente em oferecer uma formação de qualidade”, complementa Bussinguer.

Como o mercado atropelou a lei?

Se de um lado há consenso a respeito da má qualidade de muitos cursos de medicina pelo país, por outro deve-se questionar por que, afinal, permitiu-se sua abertura. Uma das razões é a característica da expansão do ensino superior no primeiro ciclo dos governos petistas, com investimento insuficiente na universidade pública e maior ocupação de espaço pelo setor privado — inclusive pela mão do Estado, como se consagrou no Fies e Prouni, mecanismos de financiamento de cursos superiores a partir de empréstimos e incentivos públicos.

A Lei Mais Médicos, instituída com a criação do célebre programa de provimento de profissionais em 2013, é explícita em afirmar que “os Programas de Residência Médica de que trata a Lei nº 6.932, de 7 de julho de 1981, ofertarão anualmente vagas equivalentes ao número de egressos dos cursos de graduação em Medicina do ano anterior”.

Mas, como mostra a Demografia Médica, em seu capítulo Panorama da Residência Médica: Oferta, Evolução e Distribuição de Vagas (2018-2024), enquanto o número de formados aumentou 71%, as vagas em residência, que permitem a conclusão da formação e obtenção do título de especialista, cresceram 26% no período analisado. Dessa forma, ainda de acordo com a pesquisa da Faculdade de Medicina da USP, o país conta com 210 mil médicos que trabalham com o título de generalista.

Além disso, a mesma lei afirma que o Ministério da Educação só “autorizará cursos de Medicina em unidades hospitalares que: I – possuam certificação como hospitais de ensino; II – possuam residência médica em no mínimo 10 (dez) especialidades; ou III – mantenham processo permanente de avaliação e certificação da qualidade de seus serviços”. Dessa forma, fica patente que o poder dos lobbies empresariais atropelou qualquer projeto de Estado.

Por ora, o momento é de elaboração do exame e uma comissão interministerial formada pela Saúde e Educação, com participação de Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), realiza os preparativos do edital que pode lançar o primeiro Enamed ainda neste ano.

“Deveria haver avaliação das escolas e não somente dos discentes: estrutura, corpo docente, conteúdo curricular adequado às diretrizes nacionais etc”, criticou Rosana Onocko, psicanalista e membro do GT de Educação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

“Os Ministérios da Educação e da Saúde precisariam fazer um esforço conjunto e concentrado no sentido de desarticular a indústria de cursos de graduação investindo de forma sólida no controle do processo pedagógico das que já existem, fortalecendo a formação para as necessidades do SUS e a partir de seus princípios”, pontuou Bussinguer.

Alexandre Padilha e Camilo Santana, ministros das duas pastas, são firmes em defender o exame. No entanto, o escrutínio parece recair exclusivamente sobre os estudantes, boa parte deles oriundos de famílias de extração socioeconômica média e baixa, ao contrário do histórico clássico da profissão, sob a ilusão de que o diploma de medicina é um passaporte para ascensão social. Como demonstra a Demografia Médica recém-publicada, o contingente de profissionais da área se expandiu fortemente no país, cujas taxas de médico per capita avançam para se equiparar aos países mais desenvolvidos do mundo. Mas a respeito das faculdades que oferecem cursos sem a devida estrutura, parece ficar um vazio.

Ajudar os residentes ou fortalecer o mercado?

Em suma, há uma crise na qualidade da formação médica e submeter os formandos a provas, por si só, não resolve o problema. Como alertam praticamente todos os especialistas que se debruçam sobre a questão, tal exigência de forma isolada, sem uma fiscalização maior de cursos abertos com motivações mercadológicas, levará a novas “soluções” mercadológicas.

“É mais um espaço para o surgimento de cursinhos preparatórios altamente rentáveis, como já vimos acompanhando nos cursos preparatórios para residência médica”, resume Elda Bussinguer.

Lacônica, Rosana Onocko transparece certa frustração com um governo que cada vez mais se reduz aos limites da “política do possível”. “É melhor do que nada, mas ficam devendo a criação de condições melhores para os residentes, como tudo ultimamente no governo”.

Seu comentário faz referência à crônica falta de vagas para residentes no Brasil. Ao defender o Enamed, o governo afirma olhar para os interesses de uma formação voltada à defesa dos cidadãos e do SUS. No entanto, faltam investimentos na oferta de vagas para residentes, e o mercado de trabalho se torna restrito e competitivo, o que fortalece o mercado de cursinhos.

“A crise das residências médicas no Brasil é uma realidade que vem se agravando sem que haja uma efetiva política de enfrentamento por dentro. Todas essas medidas são, como já disse, um demonstrativo do fracasso da política educacional brasileira na área da saúde, tanto médica quanto de enfermagem”, destacou Bussinguer.

Em sua visão, o controle do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) do processo avaliativo é um ponto favorável, mas o Enamed e a criação de mais um “provão” nacional não ocultam o fato de que, como define a presidente da SBB, “a abertura indiscriminada de cursinhos de graduação médica sem que houvesse qualquer condição para tal nos levou a esse caos em que hoje nos encontramos”.

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