Crônicas de uma derrota anunciada

Em livro lançado pelo selo Manjuba, pesquisador francês revela bastidores da “honrosa” retirada francesa no Vietnã, em 1954 – e toda sua farsa. Entrelinhas de documentos oficiais revelam autoengano imperialista que custou milhões de vidas. Leia um trecho. Sorteamos um exemplar

Hồ Chí Minh cumprimenta Georges Bidault, membro da Resistência Francesa e Primeiro-ministro francês; França [2 de julho de 1946] | Fonte: Centro de conservação Thang Long
.

Quem apoia o jornalismo de Outras Palavras garante 20% de desconto em em todo os site da Editora Mundaréu. Faça parte da rede Outros Quinhentos em nosso Apoia.se e acesse as recompensas!

A retirada da França da Indochina, após décadas de domínio colonial, não foi apenas uma derrota militar, na verdade, foi o colapso de um projeto imperial sustentado por prepotência, autoengano, exploração e violência.

Entre 1946 e 1954, o conflito opôs as forças francesas ao Việt Minh (Liga pela Independência do Vietnã), uma organização revolucionária liderada por Hồ Chí Minh e vinculada ao movimento comunista internacional.

Enquanto a França tentava manter seu controle sobre o que hoje são Vietnã, Laos e Camboja, alegando uma suposta “missão civilizatória”, a resistência local via a luta como uma guerra de libertação nacional.

O desfecho, marcado pela humilhante derrota francesa em Diên Biên Phu (1954), não só acelerou a independência desses territórios como expôs as contradições do colonialismo – um sistema que, mesmo em declínio, deixaria feridas abertas por gerações.

O aclamado escritor Éric Vuillard – vencedor do Prêmio Goncourt em 2017, o mais prestigioso da literatura francesa, por A Ordem do Dia – traz em Uma Saída Honrosa uma investigação afiada sobre os bastidores dessa guerra, abrindo as entrelinhas dos discursos e dos documentos oficiais.

Longe de se limitar a datas e batalhas, a obra, lançada pelo Selo Manjuba, selo de não ficção da editora Mundaréu, revela como a ganância de empresas como a Michelin (que explorava trabalhadores vietnamitas em plantações de borracha) e a arrogância de generais franceses – como Henri Navarre e Jean de Lattre de Tassigny – alimentaram o desastre.

Outras Palavras e Selo Manjuba irão sortear um exemplar de Uma Saída Honrosa, de Éric Vuillard, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 19/5, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

O escrito desmonta peça por peça o processo que levou à humilhante retirada francesa da Indochina, revelando como o colonialismo francês se sustentava tanto sobre violência explícita quanto sobre uma intrincada teia de autoenganos, interesses econômicos e racismo institucionalizado.

O título do livro é uma ironia precisa: a tal “saída honrosa” foi, na verdade, uma fuga disfarçada de dignidade, enquanto milhões morriam em nome do lucro e do orgulho imperial.

Com sua maestria narrativa, Vuillard mistura rigor factual com prosa cinematográfica. Utilizando-se de documentos burocráticos e outras fontes, aliadas ao seu estilo narrativo cortante, o francês expõe o absurdo do poder através de cenas vívidas: deputados franceses debatendo a guerra como se fosse um negócio distante, generais desdenhando dos vietnamitas (um chefe militar chega a compará-los a “macacos” em seus diários), e empresários lucrando enquanto o sangue corria.

Os livros do autor vasculham a hipocrisia por trás dos discursos oficiais. Em Uma Saída Honrosa essa abordagem mostra como a desumanização do inimigo e a ilusão de superioridade levaram a França ao fracasso – um roteiro que, como o próprio Vuillard sugere, se repete em conflitos atuais, como no caso do Afeganistão.

Vuillard nos lembra que as “saídas honrosas” são sempre, em última análise, tentativas de preservar aparências quando a realidade já se tornou insustentável.

Leia, logo abaixo, um trecho da obra. Boa leitura!


TELEGRAMAS

Até 21 de abril, o general Navarre, ainda que sem saber o que fazer, mantinha a mais franca determinação. Opunha-se com firmeza, e repetiu isso sem parar, a todo cessar-fogo! E nas dezenas de cartas ou de telegramas que trocou com o alto-comando e os membros do governo, não parou de dizer e repetir, em seu tom marcial, que a suspensão dos combates seria uma vergonha e um erro enorme. Essa atitude impressionava.

De repente, algumas horas antes da visita de Dulles a Paris, em 21 de abril, Navarre acorda amarrotado. As notícias do acampamento entrincheirado são absolutamente execráveis, a previsão do tempo é ruim, seu horóscopo, miserável. Que faço, então?, ele se perguntou, triste e desencorajado, depois de uma noite ruim. Foi então que escreveu sua carta histórica para o general Ély. Quase uma semana antes da queda de Điên Biên Phu, apenas alguns dias antes que a guerra esteja definitivamente perdida, entre duas crises de angústia, o general Navarre muda bruscamente de estratégia. Só os idiotas não mudam de ideia, disse a si mesmo. Sentado em sua escrivaninha Mazarin, o olhar perdido na marchetaria, mordiscando seu mata-borrão, escreve: “Depois de madura reflexão” (esquecendo-se de mencionar as angústias matinais), “cheguei à conclusão de que seria preferível um cessar-fogo imediato.”

Essa reviravolta repentina e inequívoca, esse tom de autoridade para sustentar um ponto de vista diametralmente contrário àquele que ele tinha defendido com obstinação durante meses, desestabilizou profundamente o chefe do Estado-maior das Forças Armadas. O que significava essa brusca meia-volta? Como interpretá-la?, perguntou-se o general Ély. Essa questão, como tantas outras — o desaparecimento dos dinossauros, o elo perdido e a máscara de ferro — ficou sem resposta.

As melhores novelas ganham novo ímpeto a cada episódio. Assim, no início de maio, novo telegrama. Navarre considera agora que “se Điên Biên Phu caísse, um cessar-fogo imediato e sem negociação prévia seria impossível”. O general Ély está embasbacado. Navarre está batendo pino, muda de opinião sem parar. Em 5 de maio, outro telegrama. Dessa vez, uma ordem de cessar-fogo não poderia ser concluída senão através das mais sólidas garantias para o futuro. Entretanto, no questionário estabelecido pela delegação francesa em Genebra, para a questão “Quem ganharia com o cessar-fogo?”, Navarre respondeu sem hesitar: “O Viêt Minh”.

Da leitura desses telegramas resta uma impressão difícil: estamos diante de uma mistura bastante rara de seriedade e confusão; o tom é glacial, altivo, mas o conteúdo é débil, inseguro, Navarre se afunda. Imaginamos o pobre general, perdido, no fim do mundo, sua carreira acabando em um fiasco doloroso, ele sabe disso e cambaleia, lívido, aturdido, nos corredores da suntuosa residência que ele pensou dever exigir, na época de sua grandeza, há apenas poucos meses.

Contudo, surpresa! Suas obsessões, seus tormentos íntimos não se contentam em estragar o ambiente em Hanói ou em Saigon, eles colonizam rapidamente todo o governo francês, e durante a primeira semana de maio suas dúvidas contaminam até a mais alta hierarquia. Tudo que a França comporta de homens em cargos de responsabilidade, militares, políticos, experts de todo tipo, divide-se. De um lado, os partidários de um cessar-fogo imediato; do outro, aqueles de um cessar-fogo negociado. É o caso Dreyfus dos simplórios, o Panamá dos cretinos. No momento em que a guerra já está perdida, estripa-se de todo lado, mesmo o sacrossanto conselho de guerra se separa violentamente em dois campos. O famoso telegrama do começo de maio inflama os espíritos mais frios, os mais experimentados; arrancam-se os poucos cabelos que ainda se tem sobre a cabeça. Navarre é contagioso. Todo mundo fica maluco. Matam-se no Estado-maior, beliscam-se no Conselho de ministros, arranham-se nas alcovas. É preciso escolher seu lado. Grita-se “cessar-fogo imediato!” ou “cessar-fogo negociado!”, e sem misericórdia!

Outras Palavras e Selo Manjuba irão sortear um exemplar de Uma Saída Honrosa, de Éric Vuillard, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 19/5, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

*

[…]

A QUEDA DE SAIGON

Os helicópteros tinham voado a manhã toda por sobre a embaixada. Era o caos. Nas ruas da cidade, todo mundo carregava alguma coisa, empilhava-se de tudo, não importava o quê, camas, ventiladores, abajures, colchões. Os policiais, por sua vez, começaram a pilhar, depois foi o exército. Atravessavam as ruas correndo, ziguezagueando entre motocicletas. A cidade está agora cercada pelo Viêt Minh. Os Estados Unidos tinham sucedido os franceses, os Frédéric-Dupont, os Viollette, os Cabot, os Dulles, tinham por sua vez conseguido levá-los a isso, e essa guerra que De Lattre afirmava, frente a 10 milhões de telespectadores, que acabaria em dois anos no máximo, terá durado trinta. Trinta anos. É uma geração inteira que envelheceu na guerra, e outra que passou sua idade madura na guerra, toda sua idade madura, e outra ainda que nasceu na guerra, tendo vivido na guerra toda sua infância e sua juventude. Isso é muita gente. E no Vietnã caíram em trinta anos 4 milhões de toneladas de bombas, mais que todas as que foram lançadas durante a Segunda Guerra Mundial por todas as potências aliadas, e em todos os fronts. Entretanto, o Vietnã é pequeno, é bomba demais para um país tão pequeno. Em 1945, Ho Chi Minh havia apenas proclamado sua independência, baseado inclusive em nossa declaração de direitos humanos, e, apesar de tudo, não havia declarado guerra a ninguém.

Soldados correm sob varandas sombrias, metralhadora em punho, helicópteros passam atrás dos edifícios. Sobe-se nos telhados. Há gestos perplexos. Os telhados estão cheios de homens e mulheres que têm esperança de que venham pegá-los. Porque o Viêt Minh está chegando, e trinta anos de guerra aguçaram os ódios. Eles tiveram todo o tempo e todas as ocasiões para se tornar uma espécie de ciência. O país foi dividido, insultado, e é um exército que acaba de viver trinta anos de guerra que hoje cerca Saigon.

Casas estão queimando. Alguns cadáveres se estendem na calçada. Um homem corre perdido. Gritos. Mulheres que carregam crianças. Fogo. Uma curiosa mistura de civis e militares. Andam para todo lado. Vespas, bicicletas, caminhões, multidões puxando malas, bolsas. Os rostos estão crispados, pasmos. Os grandes helicópteros americanos, com seus dois rotores, os Chinook, capazes de transportar até 150 pessoas e doze toneladas de material, carregam pelo céu enormes trouxas. As casas noturnas e os bordéis de Saigon fecharam. O Blue Star está fechado. O Baby Doll está fechado. O Song Xanh, com suas estrelinhas no teto, está fechado também. E agora aqui estão os jovens soldados do Viêt Công, com suas caras de meninos de coro. Aqui estão as velhas raposas do Viêt Công, com suas caras de catequistas.

Em 29 de abril de 1975, os americanos partem, estão de mudança. Os ventiladores param. As geladeiras param. Os carros quebram. Há grandes cemitérios de geladeiras, grandes necrópoles de ares-condicionados e pirâmides de lava-louças. Tudo está morto. Então, corre-se na direção dos últimos barcos, dos últimos helicópteros, dos últimos aviões americanos. Os pilotos selecionam os passageiros, pistola em punho. É uma turba. Pelas escotilhas podemos ver, nos filmes de época, as multidões perseguirem um avião, scooters e jipes correrem loucamente atrás de sabe-se lá qual salvação. Agarram-se às rodas, às escadas de embarque. Conseguem fazer subir um ou dois no último momento.

Milhares que partiram em barcos improvisados perecerão afogados. É terrível, esses barcos sobrecarregados de pessoas, essas pencas humanas que boiam ao sabor das ondas, esses empilhamentos de corpos, de pacotes, de bicicletas, de gritos, de estupores. Todos esses chapéus de palha! É tão triste, um povo… Nós o dividimos, nós o isolamos de si mesmo, o tempo passa, e ele só pode temer se reencontrar, estrangulado na rede impiedosa de outros interesses que foi obrigado a assumir. Oh, Kissinger, tão esperto segundo contam, o Talleyrand da Guerra Fria, aí está você, bem ridículo com seu sorriso descontraído, seu ar de sabe-tudo, seus óculos tão célebres que, porém, não lhe permitiram ver. Mas não se preocupe, evacuaram a colônia americana e os últimos franceses, todos partiram, as grandes criaturas de Cuvier desapareceram na neblina. Foram evacuados em silêncio, andaram atrás da cortina sem se fazer notar e encontraram seus camarins. Mas, no fim, a retirada foi uma desgraça. Para os retardatários, foi mais caótico. Havia multidões penduradas como pencas nos trens de pouso; e viram o próprio embaixador da Itália agarrar-se à cerca como um ladrão comum. Ah, você deve ter visto os últimos ocidentais evacuados com urgência, por helicóptero, do telhado da embaixada dos Estados Unidos, durante a queda de Saigon. É preciso a qualquer preço ver isso, os diplomatas subindo como conseguiam na escada de corda. As gravatas voando ao vento. Os corpos se agarrando às barras enquanto os lenços voam. Que atmosfera de fim de mundo, que fiasco! Na esperança ridícula de uma saída honrosa, foram necessários trinta anos, e milhões de mortos, para que tudo terminasse assim! Trinta anos para uma saída de cena dessas. A desonra teria, talvez, valido mais.


SOBRE ÉRIC VUILLARD

Éric Vuillard é diretor de cinema e autor, dentre outras obras, de Conquistadors (2009), vencedor do Prêmio Ignatius J. Reilly 2010, e Tristesse de la terre (2014), Prêmio Joseph Kessel 2015. Em sua obra 14 juillet (Prêmio Alexandre-Vialatte 2017) narra o dia da queda da Bastilha. Com La bataille d’Occident, sobre a Primeira Guerra Mundial, ganhou o prêmio Franz Hessel 2012 e o Prêmio Valery-Larbaud 2013, e com La guerre des pauvres foi indicado para o International Booker Prize. Em 2017, L’Ordre du Jour (A ordem do dia, publicado no Brasil pela Tusquets), recebeu o Prêmio Goncourt. 


Em parceria com a Selo ManjubaOutras Palavras irá sortear um exemplar de Uma Saída Honrosa, de Éric Vuillard, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 19/5, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!


Outras Palavras disponibiliza sorteios, descontos e gratuidades para os leitores que contribuem todos os meses com a continuidade de seu projeto de jornalismo de profundidade e pós-capitalismo. Outros Quinhentos é a plataforma que reúne a redação e os leitores para o envio das contrapartidas, divulgadas todas as semanas. Participe!

NÃO SABE O QUE É O OUTROS QUINHENTOS?
• Desde 2013, Outras Palavras é o primeiro site brasileiro sustentado essencialmente por seus leitores. O nome do nosso programa de financiamento coletivo é Outros Quinhentos. Hoje, ele está sediado aqui: apoia.se/outraspalavras/
• O Outros Quinhentos funciona assim: disponibilizamos espaço em nosso site para parceiros que compartilham conosco aquilo que produzem – esses produtos e serviços são oferecidos, logo em seguida, para nossos apoiadores. São sorteios, descontos e gratuidades em livros, cursos, revistas, espetáculos culturais e cestas agroecológicas! Convidamos você a fazer parte dessa rede.
• Se interessou? Clica aqui!

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.

Leia Também: