Por uma macroeconomia da esperança
Queda brusca da popularidade do governo reflete frustração real e trágica. Lula 3 foi incapaz, até agora, de melhorar sensivelmente a vida dos que historicamente o apoiaram. Mas surgem, enfim, três sinais de uma incipiente virada. Movimentos sociais serão capazes de ampliá-la?
Publicado 25/04/2025 às 19:29

Por Juarez Guimarães, em A Terra é Redonda
Há hoje um processo inicial de formação de consciência do campo democrático-popular, do qual participa ativamente a liderança do presidente Lula, de que é preciso mudar. Esta formação de consciência, se decisivamente aprofundada, tem o potencial de criar as condições políticas necessárias para impor à extrema direita brasileira uma derrota histórica nas eleições presidenciais de 2026.
A primeira manifestação desta consciência identificou o “campo da comunicação” do governo como necessário de ser profundamente alterado. De fato, neste campo, as esquerdas brasileiras e o campo democrático sofrem historicamente de uma desvantagem histórica e estrutural diante das mídias empresarias, profundamente agravada com a formação das redes bolsonaristas e da extrema-direita em geral na internet. Diante delas, identificou-se corretamente a ausência de um sistema e uma dinâmica pública que permitisse ao governo e, em particular, à liderança de Lula comunicar-se diretamente com a maioria do povo brasileiro neste novo contexto de desinformação e de extrema polarização.
Em um segundo momento, e vinculado a esta consciência em formação, construiu-se a formulação de que faltariam ao governo “marcas populares”, que estabelecessem com nitidez a identidade do governo e que contrastassem com a extrema direita e a direita neoliberais. Na ausência delas, haveria uma dificuldade de apropriação política pública e na base social democrático-popular dos avanços conquistados pelo governo. Mais além da comunicação, portanto, haveria uma necessidade de concentrar e dar dinamismo a algumas agendas políticas e políticas públicas, mais importante ainda em um governo de ampla coalizão com partidos e lideranças conservadoras.
Já há, decerto, um terceiro momento de formação da consciência que identificou na ação do Banco Central sob a direção do bolsonarista Roberto Campos um movimento altista dos juros e de especulação com o câmbio, fomentadores da recessão e da inflação, e que exigiu a formação imediata – mesmo que muito iniciais e limitadas – de ativação do crédito, da renda (permissão de saque do FGTS para demitidos que aderiram ao saque-aniversário, que se calcula tem um potencial de ativar 12 bilhões de reais na economia), e, principalmente, medidas iniciais de controle da inflação de alimentos (redução de impostos sobre importação, pressão para que os estados adiram a um redução do INSS da cesta básica).
O governo Lula está cumprindo também a proposta feita na campanha de isentar do pagamento do imposto de renda aqueles que recebem até cinco salários mínimos, aliviando de 25 % a 75 % em escala progressiva os que recebem de 5 a 7 mil reais por mês e taxando mais aqueles que recebem mais de 50 mil por mês. A pesquisa Datafolha de 10 de abril registrava um apoio de mais de 70 % dos brasileiros a estas medidas.
Há, portanto, indícios iniciais e mesmo limitados do que se poderia chamar da consciência de uma macro-economia popular e dos trabalhadores, que se chama aqui de “macro-economia da esperança”, ou seja, aquela incontornavelmente necessária para restabelecer e até ampliar o circuito da esperança que vincula a maioria do povo brasileiro à dinâmica e futuro do governo Lula.
Este artigo procura justamente aprofundar de modo decisivo esta consciência e contribuir para a reflexão dos caminhos para se conquistar as condições de uma vitória provável do campo democrático-popular em 2026. Ele se dividirá em cinco partes: a primeira busca interpretar o cenário político do impasse revelado pelas recentes pesquisas que indicam um patamar alto de impopularidade do governo Lula e uma rejeição menor mas ineditamente majoritária à sua própria liderança.
A segunda procura desvendar o aparente paradoxo de como explicar a queda de popularidade em meio a um cenário macro-econômico que apresenta sinais positivos na área do crescimento, da criação de empregos e de reconstrução das políticas sociais; a terceira constrói o diagnóstico de como a dinâmica política neoliberal aprofundou qualitativamente nos anos de Michel Temer e Jair Bolsonaro a crise social para os trabalhadores e pobres e, ao mesmo tempo, aprofundou qualitativamente os impedimentos para uma macro-economia popular e dos trabalhadores.
A quarta procura indicar os caminhos possíveis, no contexto da atual correlação de forças e de disputa política com a extrema direita, de iniciar a construção do que se chama de macro-economia popular e dos trabalhadores ou “macro-economia da esperança”; por fim, busca-se vincular estas conquistas possíveis neste próximo período à própria dinâmica democrática mais geral de luta contra a extrema direita no Brasil, agora reforçada pela vitória de Donald Trump.
Queda da popularidade – cinco razões
Pelo menos quatro pesquisas recentes (Genial Quaest, Datafolha, CNT/Sensus, Ipsos IPEC) convergiram na identificação de uma queda brusca na popularidade do governo Lula e da própria liderança do presidente nos meses iniciais de 2025. Em geral, estas pesquisas vieram acompanhadas de sondagens eleitorais sobre as eleições presidenciais de 2026. Quais seriam os marcos políticos centrais para compreendê-las?
Em primeiro lugar, há que se distinguir claramente pesquisas sobre a situação política atual e em relação a eventos futuros. Entre agora e as eleições presidenciais de 2026 há um tempo político profundamente instável e ainda de evolução indeterminada. As sondagens de eleições presidenciais não consideram, por exemplo, o efeito da condenação de Bolsonaro por sua liderança na tentativa de golpe, as dificuldades da construção de uma candidatura unificada da extrema direita, nem o efeito das mudanças já em curso, mesmo iniciais e muito tópicas, no governo Lula com potencial de incidência positiva sobre a popularidade.
Neste sentido, uma recente pesquisa DataFolha do início de abril (de modo inverso a outra divulgada pela Quaest) indicou um crescimento de cinco pontos de avaliação positiva do governo Lula e uma queda de 3 pontos na avaliação negativa, ainda com um saldo negativo de 9 % (38 % de ruim/péssimo e 29% de ótimo/bom).
Como as pesquisas de avaliação do governo e aquelas de sondagem das eleições presidenciais de 2026 são publicadas em sequência, o leitor é induzido a lê-las no mesmo plano de capacidade de previsão. Decididamente não são. Neste artigo, procura-se apenas compreender o significado das pesquisas sobre a situação atual.
Em segundo lugar, é necessário compreender as pesquisas recém divulgadas em fevereiro e março em sua série desde os inícios do terceiro governo Lula. Isto é fundamental para se entender, por exemplo, se elas são o aprofundamento ou inversão de uma tendência. De modo evidente, trata-se de um aprofundamento de uma tendência. Na pesquisa CNT/ Sensus, por exemplo, a avaliação ótima/boa do governo Lula apresentava os seguintes índices: 43 % (maio de 2023), 41% (setembro de 2023), 43 % (janeiro de 2024), 37 % (maio de 2024), 35 % (novembro de 2024) e 29 % (fevereiro de 2024). Já segundo a Genial Quaest, a aprovação do presidente Lula era de 60 % (agosto de 2023), 50 % (maio de 2024) e 47 % (janeiro de 2025).
Em geral, as primeiras análises das pesquisas tenderam a se concentrar na explicação apenas do impacto da falsa notícia de que o Pix seria taxado pelo governo e, depois, na pressão altista dos alimentos, decorrente principalmente do movimento especulativo que provocou uma forte valorização do dólar diante do real.
Estas explicações, se captam a intensidade do momento negativo janeiro/fevereiro, deixam de lado o período também dramaticamente negativo de outubro/dezembro, durante o qual o governo Lula apresentou uma pauta negativa de ajuste fiscal, com impacto sobre a regra de mudança do reajuste do salário-mínimo e de arrocho na concessão do BPC, fartamente capitalizada pela extrema-direita e suas redes organizadas de fake news.
O fato é, que já após os resultados em geral negativos nas eleições municipais de 2024, o governo Lula viu-se diante de micro-conjunturas extremamente negativas. Este conjunto de fatos negativos explica o forte agravamento de uma tendência de queda de popularidade que já estava em curso.
Em terceiro lugar, este aprofundamento das avaliações negativas nas pesquisas recentes diz principalmente respeito a perdas na própria base eleitoral que elegeu Lula presidente em 2024, ou seja, entre aqueles que ganham de 0 a 2 salários-mínimos, entre as mulheres, entre os não-brancos, entre os nordestinos. Na pesquisa CNT/ Sensus, por exemplo, os que avaliam o governo Lula como regular mantiveram-se em um patamar relativamente estável de 28 % (maio de 2023), 30 % (setembro de 2023), 28 % (janeiro de 2024), 31 % (março de 2024), 32 % (novembro de 2024) e 26 % (fevereiro de 2024). Segundo o IPEC de fevereiro de 2025, 30 % do eleitorado que votou em Lula no segundo turno de 2022 o rejeitariam agora.
Em quarto lugar, coerente com esta perda em sua própria base eleitoral, está o índice da pesquisa Genial Quaest de fevereiro de 2025 de que 65 % dos brasileiros avaliam que o governo Lula não está cumprindo as promessas feitas quando da sua eleição a presidente em 2022. Este índice, maior do que a proporção de votos que obteve no segundo turno das eleições, indicam que a generalização deste juízo vai além da própria base eleitoral do governo, mas a engloba.
O fato de que, pela primeira vez, o índice de desaprovação a Lula supera na margem de erro a sua aprovação (49 % a 47 %, segundo a Quest de janeiro de 2025, 55,3 % a 40,5 % segundo a CNT/Sensus de fevereiro de 2025) indica que está em curso uma campanha de questionamento à própria credibilidade da liderança histórica de Lula.
Em quinto lugar, todos estes dados devem incorporar em sua avaliação a disputa polarizada – diária, agressiva e com frequência manipuladora das informações – feita não apenas pela extrema-direita neoliberal, mas também e, cada vez mais, pela direita neoliberal não bolsonarista. Estas pesquisas não são propriamente um retrato das opiniões sobre a realidade do país e do governo, mas a resultante de um confronto político em curso.
O terceiro governo Lula se exerce não apenas em uma correlação de forças adversa, mas em um clima de opinião mais polarizado até do que aquele do segundo governo de Dilma Rousseff porque mais estruturalmente organizado, inclusive – e isto é decisivo – entre os trabalhadores e os setores populares. A extrema direita tem uma base popular muito mais organizada do que jamais teve o PSDB.
Mesmo assim, considerando todas estas cinco razões, há um aparente paradoxo: como explicar este descontentamento hoje majoritário diante do governo Lula frente a seus chamados êxitos macro-econômicos (crescimento de 7 % do PIB em dois anos, criação de 3,147 milhões de empregos somados em 2023/2024 e diminuição da taxa do desemprego do IBGE ao menor patamar de sua série histórica, elevação do salário-mínimo real, recuperação e expansão do Bolsa-Família, reconstrução de programas de políticas públicas sociais desmontados pelo governo de Jair Bolsonaro)?
Um paradoxo apenas aparente
A explicação do paradoxo da queda de popularidade do governo Lula – contínua e aprofundada gravemente no período recente – deve ser explicada fundamentalmente com base em seus efeitos sobre os brasileiros e brasileiras que recebem até um salário-mínimo per capita (60 % da população) e que recebem entre 1 e 3 salários-mínimos (31, 8 %), segundo o Relatório Síntese do IBGE de 2024. Ou seja, cerca de 90 % da população brasileira. Os que têm rendimento familiar per cápita de mais de três salários-mínimos são apenas 9,1 % da população em 2023.
Um primeiro erro que se encontra com frequência é o que propõe uma crítica centrada apenas na continuidade da política macro-econômica neoliberal entre os governos Lula e de Jair Bolsonaro e seus efeitos sobre a maioria da população brasileira. Se tomarmos alguns indicadores centrais que têm incidência sobre a vida da maioria da população, isto não é verdade: no governo de Jair Bolsonaro houve queda de cerca de 2 % do valor real do salário-mínimo; no governo Lula, houve uma valorização de 5,77 % em 2024 e de 2, 5 % em 2025.
No governo de Jair Bolsonaro, que seguiu a PEC do Teto de Gastos do governo Temer, houve forte redução de investimentos em educação e saúde (este, por exemplo, caiu de 15, 7 % da receita corrente líquida para 13, 54 % em 2019); nos governos Lula, houve um aumento incremental, retomando as vinculações orçamentárias constitucionais anteriores. A média anual de crescimento do PIB no governo de Jair Bolsonaro, marcado pela epidemia, foi de apenas 1,5 %. A inflação dos alimentos, segundo o IBGE, foi de 6,37 %, 14,09 %, 7,94% e 11,64 % nos anos do governo Bolsonaro. E de 1,03 % e 7,69% nos dois anos iniciais do governo Lula.
Um segundo erro seria o de não reconhecer que há uma dinâmica de melhorias incrementais em relação ao período anterior. Há, de fato, melhorias incrementais naqueles indicadores que afetam a vida da grande maioria dos brasileiros, que podem ser medidos pelos indicadores de pesquisa do IBGE e mesmo pelo Dieese.
Este, por exemplo, nos informa que em março de 2022 o salário-mínimo necessário para prover do fundamental uma família de quatro pessoas seria 5,28 maior que o oficial; mas 4,7 vezes maior do que o pago em março deste ano. Houve uma melhoria nestes dois anos de governo Lula, mas ainda distante de março de 2012 quando o salário mínimo necessário para sustentar uma família de quatro pessoas seria 3,7 vezes maior que o então recebido.
Mas, evitando estes dois erros, seria correto dizer que o governo Lula ainda não foi capaz de promover ou anunciar uma melhoria qualitativa dos indicadores econômicos e sociais fundamentais que organizam o cotidiano da vida da imensa maioria dos brasileiros e brasileiras. E nem, de fato, há um anúncio consistente nesta direção.
Esta melhoria de caráter incremental na vida dos brasileiros seria assimilável pela base popular do terceiro governo Lula se os dois anos finais do governo de Dilma Rousseff (de forte recessão), mas principalmente os anos de Michel Temer e Jair Bolsonaro não tivessem sido marcados por uma deterioração qualitativa e profunda da vida social, por uma violenta pauperização, pelo aumento do desemprego, generalizada precarização e desorganização do mercado de trabalho, por uma pandemia e uma situação de gravíssima crise sanitária, pelos agravamentos das catástrofes climáticas, por um aumento da violência cotidiana, principalmente contra os pobres, os negros e as mulheres.
No dia 19 de março, Lula ao encaminhar ao Congresso Nacional a proposta de isenção de imposto de renda até cinco mil reais e uma diminuição das alíquotas para quem recebe até sete mil reais, utilizou a imagem que o “povo brasileiro está doente”. Está certo: a doença se chama neoliberalismo.
Em síntese, a vida da grande maioria dos brasileiros após estes dois anos do governo Lula continua sendo marcada por uma gravíssima crise social para a qual o governo Lula não apresentou uma resposta consistente de saída, de superação ou, pelo menos, de uma melhoria realmente qualitativa. Daí o confronto com as expectativas criadas, o processo de perda de popularidade e o seu agravamento no período recente. Isto é, não há um paradoxo: mas descontentamento, desilusão, perda de esperança, sentimentos que são trabalhados e expandidos pelas redes de comunicação da extrema-direita e da direita neoliberal.
O governo Lula não está conseguindo ainda aplicar ou está aplicando muito parcialmente o programa para o qual foi eleito em 2022. Não é fruto da sua vontade. Há decerto uma correlação de forças adversa. Mas mais do que isto há um bloqueio institucional, construído e aprimorado após o golpe de 2016, sobre a aplicação de uma macro-economia de sentido democrático e popular ou, como se chama aqui, uma macro-economia da esperança. É preciso, pois, entender o seu modo de funcionamento, sua força e fraqueza, para superá-la.
Macro-economia da desesperança
Nos estudos sobre neoliberalismo, identifica-se que o período após a crise financeira internacional de 2008 foi marcado por um aprofundamento das políticas de austeridade, como forma de gerir crescentes dívidas públicas decorrentes da massiva intervenção dos Estados nacionais diante das ameaças dissolventes do sistema financeiro em crise. Em síntese, houve uma socialização das perdas decorrentes do socorro às insolvências dos rentistas e especuladores.
Essa macro-economia da desesperança, que aprofunda as pressões sobre o mercado de trabalho e as políticas sociais, ao mesmo tempo que promove o aumento da concentração da renda em prol dos circuitos financeiros, tem no circuito de poder que envolve os Ministérios da Fazenda, os Bancos Centrais capturados pela lógica da financeirização e a dívida pública os seus eixos institucionais de reprodução.
Esta dinâmica internacional de aprofundamento das políticas de austeridade após a crise financeira internacional de 2008 foi contrarrestada no Brasil pelo segundo governo Lula e pelo primeiro governo de Dilma Rousseff. O golpe contra Dilma, os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro traduziram, com atraso mas com mais virulência, esta dinâmica anti-popular da mal chamada “política de austeridade”, através de novos regramentos constitucionais, institucionais e de dinâmicas financeiras e rentistas em torno da dívida pública.
Este aprofundamento do regime macro-econômico neoliberal tem, decerto, uma gravidade maior devido à posição semi-periférica e dependente do capitalismo brasileiro e a um mercado de trabalho já estruturalmente precarizado. Aqui, o pagamento e amortização dos juros da dívida em 2024 capturaram 950 bilhões de reais, equivalentes a 7,85 % do PIB brasileiro. Isto é, mais do que os orçamentos do Ministério da Saúde, da Educação, do Desenvolvimento Social somados. Apenas a elevação de um ponto da Taxa Selic onera o setor público em mais de 50 bilhões de reais.
Houve, então, de 2016 uma nova regulação que representa uma brutal alteração dos padrões da luta de classes, tendo de um lado, o capital financeirizado e o conjunto dos capitalistas contra os direitos do trabalho e as políticas sociais. Este aprofundamento do regime neoliberal no Brasil passou por três grandes campos de iniciativas.
O primeiro deles foi a institucionalização da mal chamada autonomia do Banco Central, aprovada durante o governo de Jair Bolsonaro. Entre 1988 e 1996, 12 países latino-americanos modificaram legal ou constitucionalmente o estatuto de seus bancos centrais (centrados em políticas monetaristas e visando sobretudo limitar o financiamento do gasto público). Chegou a vez, então, do Brasil estabelecer a autoridade do Banco Central frente à própria soberania popular, vinculando-o institucionalmente às redes financeiras internacionais.
Não apenas o Banco Central passou a subordinar, em sentido amplo, o protagonismo do Ministério da Fazenda – ao estabelecer a taxa Selic, a trajetória da dívida pública e o peso de sua rolagem sobre o orçamento público -, como ao longo do tempo a flexibilização do mercado de câmbio a taxas flutuantes veio se acentuando ao longo das últimas gestões do Banco Central.
A segunda medida chave foi o estabelecimento (in)constitucional de um Teto de Gastos para o orçamento da União, a chamada PEC do fim do mundo, que pretendia inviabilizar por 20 anos o crescimento dos investimentos nas políticas sociais mesmo em períodos de forte crescimento da receita. Foi em negociação com esta trava anti- programática da Constituição de 1988 – um verdadeiro golpe constitucional – que se formulou o atual Novo Arcabouço Fiscal, que negociou no interior desta nova situação adversa um grau menor de política de austeridade.
O terceiro campo de mudanças neste período de aplicação do programa neoliberal foi em relação ao mundo do trabalho: a mudança legal que generaliza a possibilidade de terceirização, aprovada no governo de Michel Temer, forneceu a todos capitalistas uma nova arma para precarizar e aumentar a taxa de exploração da força de trabalho. Uma outra medida retirou cerca de 80 % do orçamento anual dos sindicatos brasileiros, em um contexto de forte desemprego e precarização, levando a uma redução da taxa de sindicalização, hoje em torno de 8,4 % dos 100, 7 milhões de ocupados (em 2012, segundo a PNAD contínua, era de 16,1 %).
Em 2023, os sindicalizados eram apenas 10,1 % entre os assalariados do setor privado e de 18, 3 % entre os assalariados no setor público. A redução do poder de compra do salário mínimo esteve em linha com estas medidas de desestruturação dos direitos do trabalho, que atingiu até a proteção ao trabalho insalubre das trabalhadoras grávidas.
São os setores mais precarizados no mercado de trabalho – mulheres, não brancos, trabalhadores de menor qualificação – os mais atingidos. O Brasil voltou ao mapa da fome: ou na palavra de Marx, o capital no Brasil, de forma cada vez mais agressiva, não reconhece nem os direitos mínimos necessários à reprodução da força de trabalho.
Por uma macro-economia da esperança
Na luta contra o nazi-fascismo, a esquerda retornou à grande lição de Karl Marx que não se pode lutar pelo socialismo se não se luta pelos direitos democráticos e por uma democracia ou república social. Agora, as esquerdas estão aprendendo que não se resiste ao avanço das forças de extrema-direita se se adota, mesmo com algumas inflexões, uma macro-economia neoliberal da desesperança. Os trabalhadores e os cidadãos em geral prezam a democracia porque ela defende os seus direitos à liberdade e à igualdade. Se ela deserta dessa condição, e até mesmo ataca estes direitos fundamentais, ela se esvazia de sentido.
Os governos brasileiros de esquerda nunca tiveram maioria parlamentar para mudar o regramento macro-econômico neoliberal, aprovado em acordo do governo FHC com o FMI, desde 1998: câmbio flutuante, Lei de Responsabilidade Fiscal, sistema de metas da inflação, crescente privatização da economia estatal. O que houve foi sempre uma pragmática adaptação a estas regras, procurando imprimir através de um protagonismo desenvolvimentista e de viés social da Fazenda (durante as gestões Guido Mantega), um contra-balanço às ortodoxias neoliberais do Banco Central. Com este recente e brutal aprofundamento da dinâmica institucional neoliberal e da financeirização, esta pragmática encontra agora seus limites.
Como um governo hoje sem maior popularidade e sem maioria parlamentar, pode superar um tal impasse?
Ora, trazendo a luta de classes que opõe o eixo trabalhadores/imensa maioria do povo brasileiro esquerda e centro-esquerda versus capital financeirizado / bolsonarismo + direita neoliberal para a luta democrática. Ou pensando a luta democrática através da construção e anúncio de uma macro-economia da esperança. Lula, por sua história, sentimento e inteligência, é a liderança que pode organizar esta jornada política potencialmente majoritária neste período que nos separa das eleições de 2026.
As agendas que estão sendo iniciadas pelos movimentos sociais, que se combinam com iniciativas do governo e/ou parlamentares dos partidos de esquerda, a isenção do imposto de renda + taxação dos mais ricos, superação da jornada 6×1, o chamado de todas as centrais sindicais para uma luta pública contra os juros escandalosos com manifestações na porta das sedes do Banco Central, a construção de uma agenda renovada no Ministério da Saúde (após o árduo trabalho virtuoso de reconstrução do Ministério da Saúde da gestão Nísia Trindade) são anúncios desta luta, mesmo que muito inicial, por uma nova macro-economia da esperança.
A dimensão central da macro-economia neoliberal no Brasil e, ao mesmo tempo, a mais vulnerável a um questionamento público e majoritário de legitimidade democrática, é a política escandalosa de juros sustentada e promovida pelo Banco Central, que alimenta todo o processo de financeirização da economia brasileira. Ela foi construída em seus alicerces pelos governos Fernando Henrique Cardoso nos anos noventa, não foi centralmente contestada pelo campo democrático e popular e, inclusive, continuou em vigor nos governos Lula e Dilma. Está agora ainda no centro do terceiro governo Lula, mesmo após ter ele indicado o atual presidente e a maioria dos diretores do Banco Central.
Ora, como teoriza Marx no terceiro volume de O Capital, o circuito D-D´, o capital portador de juros, o dinheiro que cria dinheiro, não cria mais valor mas disputa o seu quinhão na massa geral de mais-valia produzida no processo de reprodução do capitalismo. Este quinhão é fundamentalmente arbitrado por uma autoridade – hoje os Bancos Centrais – e não apenas resulta do processo de concorrência.
As escandalosamente altas taxas de juros praticadas no Brasil, em um quadro de volumosa dívida pública, constrangem de modo radical os orçamentos públicos, as taxas de investimentos da economia, pressionam para a elevação brutal das taxas de exploração dos trabalhadores, estrangulam o crédito e exponenciam o endividamento das famílias. A recente declaração de Armínio Fraga, financista e elevado a uma das inteligências centrais do neoliberalismo brasileiro, de que é necessário congelar o salário-mínimo por seis anos expressa bem esta lógica da barbárie.
Foram indicados pelo atual governo Lula o presidente e a maioria dos diretores do Banco Central. Uma política resoluta de redução da Taxa Selic pelo Banco Central encontraria hoje, sem dúvida, um apoio majoritário da população brasileiro, de sentido democrático e popular, inclusive de setores da indústria e do comércio que operam oprimidos pelo domínio financeiro.
O argumento de que esta redução dos juros básicos alimentaria a inflação, concebida como de demanda não tem o mínimo respaldo na realidade: segundo pesquisa Datafolha de 13 de abril, 58 % dos brasileiros reduziram a compra de alimentos no período recente. Exporia o câmbio a uma valorização especulativa do dólar? Ora, o Brasil conta com vultosas reservas em dólar e a moeda norte-americana, submetida a solavancos diante do desgoverno de Donald Trump, não parece fortalecida.
Alguns ainda argumentam que o Banco Central, agora com nova direção, não pode “fazer um cavalo-de-pau” em um transatlântico diante de uma recente e artificial escalada altista dos juros básicos. Ora, mais vale dizer que não pode continuar em direção a um iceberg e levar ao naufrágio!
Esta redução sustentada e expressiva dos juros básicos da economia, com seu impacto positivo sobre a dívida pública, sobre o crescimento da economia e sobre os investimentos, sobre o endividamento das famílias permitiria ao governo enfrentar de modo qualitativamente mais efetivo as carências populares emergenciais e, ao mesmo tempo, anunciar a construção de um novo ciclo econômico para além do neoliberalismo, uma macro-economia da esperança.
Macro-economia da esperança e novo bloco histórico
Foi golpeando a democracia e, depois, com um governo de extrema direita que se aprofundou o regime de uma macro-economia neoliberal no Brasil no período recente. Uma dinâmica da macro-economia da esperança, mesmo inicial, não pode ser pensada simplesmente como um novo arranjo técnico e econômico. Ela depende da construção de uma nova agenda para o futuro do país, de uma decisiva e frontal disputa política e de um programa de reconstrução da democracia participativa.
Este deve ser o sentido político das eleições de 2026. O grande desafio para as forças democrático-populares é disputar as bases populares hoje ainda aderentes à extrema-direita neoliberal com um programa que alie a reconstrução da democracia brasileira com a construção de uma macro-economia da esperança. Isto é, demonstrar pedagogicamente que Bolsonaro- Paulo Guedes são irmãos-siameses, são contra a democracia e contra os direitos dos trabalhadores e do povo brasileiro.
O programa vitorioso nas eleições presidenciais de 2022 deve ser relegitimado e aprofundado nas eleições de 2026. Macro-economia da esperança e democracia participativa: enfrentar a financeirização do Brasil e reorganizar estruturalmente o regime fiscal, reativar as dinâmicas autênticas de representação, comunicação e participação da democracia brasileira em torno a projetos estratégicos de futuro.
Avançar estruturalmente na construção do SUS e da educação pública, elevar de forma sustentada o salário-mínimo e reorganizar o mercado de trabalho com base nos direitos das classes trabalhadoras, retomar a reforma agrária e a produção de alimentos, implementar de modo decisivo a transição ecológica, liderar investimentos públicos estratégicos nas cidades, implantar a economia de cuidados e reconstruir a estratégia de uma segurança pública cidadã.
Um programa como este teria o potencial de unir os movimentos sociais, uma frente de partidos e lideranças de esquerda e centro-esquerda, criaria uma dinâmica política irresistível de reeleição do governo Lula. Reuniria as classes trabalhadoras e as chamadas classes médias. Expressaria uma vontade histórica de 99 % contra os 1 % que garroteiam, com o poder financeiro e estruturas anti-democráticas, o futuro do país.
Da luta contra o processo de radicalização programática e autoritária do neoliberalismo, internacional e nacional, poderia emergir, enfim, uma nova dinâmica hegemônica e um novo bloco histórico de poder, que não foi possível construir antes nos governos de coalizão liderados pelo PT.
Juarez Guimarães é professor titular de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Democracia e marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã) [https://amzn.to/3PFdv78]
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