A esquerda que peca pela boca e coração
A linguagem não é ornamento da política — é parte fundamental da luta. Ultradireita entendeu isso, com linguagem direta e mobilizadora, ainda que distorcida. Enquanto isso, a esquerda fragmenta-se e se consome em torno de polêmicas narcísicas — sobre identitarismo, por exemplo
Publicado 25/04/2025 às 16:54

Se há algo difícil de superar no cotidiano da esquerda, pior do que o Centrão e o teto de gastos, é conversar sem tropeçar em palavras que já vêm marcadas. Sem superar isso, em breve estaremos todos juntos chorando dentro de um boteco com os nossos manuais de verdades absolutas debaixo do braço.
Não é novidade que a disputa por sentido sempre foi parte essencial da política. O que muda, hoje, é a intensidade com que os conflitos simbólicos ocupam o centro da arena pública. Não se trata de um fenômeno novo, mas de uma aceleração: as palavras foram reativadas como território estratégico, e não apenas como meio de expressão. A esquerda, por sua vez, ampliou de forma consistente os modos de nomear e interpretar o mundo a partir das lutas concretas de grupos historicamente marginalizados.
Essa ampliação é uma conquista histórica, um avanço. Mas também traz um desafio importante: a fragmentação dos vocabulários pode dificultar a construção de um horizonte comum de ação. A dificuldade não está no excesso de vozes, mas na ausência de mecanismos capazes de ligar essas vozes em torno de um projeto político compartilhado.
A política institucional — especialmente nas disputas públicas mais amplas — exige objetividade e articulação. Não se trata de reduzir a complexidade das experiências, mas de encontrar formas de expressá-las de modo que possam ser reconhecidas também por quem vive outras realidades, com outros repertórios. Sem essa ponte, mesmo a formulação mais justa corre o risco de não mobilizar.
A extrema direita percebeu isso e usou bem. Criou uma linguagem direta, emotiva, fácil de repetir, mesmo que cheia de distorções. Não é uma linguagem mais verdadeira ou justa, mas funciona como código comum para quem a consome. Com poucas palavras, ela mobiliza medo, pertencimento, hostilidade e ódio. Sua força está na repetição organizada, não na coerência interna.
Nesse cenário, o termo “identitarismo” se tornou um espantalho funcional — dentro e fora da esquerda. Criado como crítica à fragmentação sem projeto, passou a ser usado para desqualificar lutas legítimas por reconhecimento e redistribuição. Em muitos casos, virou um recurso fácil para evitar enfrentamentos reais — ignorando ou desprezando a complexidade política, histórica e afetiva dessas pautas. Parte da esquerda, ao aderir a esse uso superficial, contribuiu para desarticular alianças e embaralhar disputas fundamentais. A direita, com faro apurado, capturou o desgaste: juntou ao seu pacote de preconceitos, violência e generalização o uso da diversidade como sinônimo de desorganização, e tratou a diferença como sinal de fraqueza, desvio ou ameaça à ordem.
Enquanto isso, o neoliberalismo se aproveita do cenário. Ele não precisa apagar a diversidade, ele a exalta empastelando seus propósitos — assim, garante que ela não se organize politicamente de forma coordenada. Incentiva causas isoladas, transforma demandas em nichos e lutas em produtos. A multiplicidade sem articulação não ameaça o sistema; apenas o torna mais adaptável.
A solução não é abandonar a pluralidade, mas criar formas de comunicação entre diferentes campos da luta. Isso exige vocabulários capazes de carregar múltiplas experiências sem apagá-las. A articulação política precisa lidar com a diferença sem exigir uniformidade. E isso não é ignorar a realpolitik. Sem esse trabalho, a fragmentação continua sendo uma vantagem dos adversários e um ponto de enfraquecimento da esquerda.
Autores como Bourdieu, Gramsci e Angela Davis ajudam a pensar esse problema por caminhos diferentes, mas que se cruzam. Bourdieu mostra que a linguagem nunca é neutra — ela expressa e reproduz disputas por legitimidade, visibilidade e poder. Gramsci ensina que uma visão de mundo se torna dominante quando passa a parecer natural, quando ocupa o senso comum. Angela Davis reforça que nenhuma transformação radical se sustenta sem enfrentar as opressões cruzadas de raça, gênero e classe — e que as palavras, as narrativas e os silêncios fazem parte real dessa estrutura. Tratar da linguagem, nesse sentido, não é abandonar o marxismo — é atualizá-lo a partir das contradições que ele historicamente ignorou ou tratou como secundárias. Nenhum desses autores oferece atalhos. Mas todos deixam claro que disputar o sentido das palavras é disputar o terreno da política. E quem foge dessa disputa, enfraquece o próprio projeto de mudança.
Esse trabalho é de base, mas também de formulação e de enfrentamento político. Requer coragem para tensionar certezas herdadas, romper com padrões de fala que excluem e abrir espaço para vocabulários mais compartilháveis. Quem atua em partidos, movimentos, coletivos, redes ou escolas precisa se fazer entender — mas também se dispor a entender os outros. Traduzir não é diluir. É abrir canal de escuta. É construir discurso que acolha quem nunca pisou numa assembleia, mas que tem tudo pra estar nela.
Não se trata de escolher entre rigor e comunicação, nem entre complexidade e alcance. A tarefa é formular com responsabilidade, disputar com convicção e não terceirizar o sentido das palavras. Quem não entra nesse terreno deixa que outros o ocupem — e eles ocupam, está provado no cotidiano. A linguagem não é ornamento da política. É parte fundamental da luta. Quem foge dessa disputa, perde antes de saída.
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