O que está em jogo na Segurança Pública do Rio?
Wikifavelas analisa retrocessos na área. O desafio é grande. Cidade está militarizada e securitizada. Há o racismo algorítmico, plano capenga de redução da letalidade e o armamento da Guarda Municipal. Como movimentos das quebradas agem para enfrentá-los?
Publicado 23/04/2025 às 17:32 - Atualizado 23/04/2025 às 17:34

O julgamento do mérito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, a ADPF das Favelas, no Supremo Tribunal Federal (STF), evidenciou a gravidade e o alcance da violência do Estado em operações policiais quando ocorrem em favelas no Rio de Janeiro. O plano de redução da letalidade policial, principal exigência dos movimentos de favelas na luta contra a violência de Estado, foi apenas parcialmente homologado. Deixou espaço para a atuação violenta das polícias, tal como presenciamos mais uma vez na última semana na Ladeira dos Tabajaras, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, com o uso de helicópteros atiradores, assassinatos e invasões de domicílio. Nesse sentido, é preciso que ampliemos a discussão sobre o que está em jogo na segurança pública do Rio de Janeiro, principalmente em um período em que as forças de segurança do Estado e do município se articulam para uma maior repressão e militarização de territórios e populações.
A ADPF das Favelas, protocolada em 2019, ganhou força após a morte brutal do adolescente João Pedro, de 14 anos, dentro de casa, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, durante uma operação policial em maio de 2020. O corpo negro de um menino, executado dentro do que deveria ser seu lugar de proteção, escancarou o que as favelas já denunciavam há décadas: o Estado não entra nesses territórios para garantir direitos, e, sim, para violar vidas. A morte de João Pedro mobilizou coletivos, os movimentos de favelas, movimentos jurídicos e organizações de direitos humanos a exigirem limites para a atuação policial, resultando na construção da ADPF como ferramenta de defesa da vida nas favelas. Ainda assim, mesmo com liminares e decisões, as operações nunca cessaram de fato. Dados recentes do Instituto Fogo Cruzado apontam que, em 2021, as ações policiais em favelas resultaram em 2.098 pessoas baleadas, sendo 1.084 mortas e 1.014 feridas, que representam 5 baleados a cada 24 horas. No mesmo ano, 17 crianças e 43 adolescentes foram baleados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Além disso, em 2023, houve, em média, 3 chacinas policiais por mês.
É importante dizer que consideramos, nesse caso, chacina policial um evento violento em que três ou mais pessoas civis são mortas. Em geral, esses massacres são diretamente associados a grupos de extermínio, cuja atuação conta com a participação de agentes de segurança da ativa fora do período de serviço. Nos últimos anos, esta tem sido uma prática cada vez mais realizada por agentes de segurança em serviço durante as operações sob o aval do Estado. No Rio de Janeiro, há décadas, as operações policiais em favelas são utilizadas como o principal instrumento de ação pública destinado ao controle da criminalidade, servindo como a principal justificativa do Estado para violação de direitos de seus moradores(as). Porém, o controle do que é criminalizado ou não pelo Estado – parte do problema do crime e da violência – não pode continuar impactando diretamente na vida de milhares de moradores(as) que representam a maior parte da população da cidade.
As chacinas policiais acontecem em toda a região metropolitana, mas não se distribuem de forma igualitária. Segundo os dados do Instituto Fogo Cruzado, em 2023, na Zona Sul da capital, foram registradas 9 chacinas, 4 delas na favela da Rocinha. Já na Zona Norte, são 73 casos que deixaram 373 pessoas mortas. Na Baixada Fluminense foram mapeados 72 casos, com 255 mortos. E no Leste Metropolitano, 70 casos resultaram em 252 mortes. O Complexo do Salgueiro, conjunto de favelas em São Gonçalo (Leste Metropolitano), foi a localidade com mais chacinas registradas no período. Apenas lá, 14 chacinas policiais resultaram em 66 mortes. Para que se tenha dimensão do que acontece no Salgueiro, as outras quatro localidades com mais chacinas são: Complexo da Maré (10 ocorrências, 51 mortos), Complexo da Penha (8 ocorrências, 55 mortos), Cidade de Deus (8 ocorrências, 27 mortos) e Vila Kennedy (8 chacinas, 26 mortos).
Gráfico 1 – Número de chacinas por região metropolitana do Rio de Janeiro (2023)

O Dicionário de Favelas Marielle Franco, em parceria com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI-UFF), o Grupo CASA (IESP-UERJ) e o Radar Saúde nas Favelas (Fiocruz) realizou um levantamento das chacinas mais letais durante a série histórica de 1990-2022, dando destaque aos anos de 2019-2022. Três das cinco maiores chacinas policiais da história recente do Rio de Janeiro ocorreram neste período, sob a vigência da ADPF 635, interposta pelo Supremo Tribunal Federal, que restringiu a realização de operações policiais enquanto durasse a pandemia de covid-19. A maior delas, que resultou em 28 mortes, ocorreu no bairro do Jacarezinho, em 6 de maio de 2021, e foi nomeada pela Polícia Civil de “Operação Exceptis”, em alusão à excepcionalidade das operações interpostas pelo Supremo. Na ocasião, o representante da Polícia Civil criticou o “ativismo judicial” que estaria “impedindo o trabalho da polícia”. Pouco mais de um ano depois, a Chacina da Penha resultou em mais 23 mortes.
ADPF das Favelas: insegurança e descontrole das polícias no cotidiano das favelas e periferias
A implementação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas, iniciada em junho de 2020, visava reduzir a violência policial nas favelas do Rio de Janeiro, em especial, durante o período da pandemia, se baseando em uma série de estudos e publicações de instituições locais e movimentos sociais a respeito da alta letalidade policial. Em 2019, antes da ADPF, o estado registrou 1.814 mortes decorrentes de ações policiais. Durante o período de vigência da ADPF, observou-se uma queda significativa nesses números: em 2024, foram contabilizadas 699 mortes, representando uma redução de mais de 61%. Entretanto, como vimos, apesar dessa expressiva diminuição, a violência policial persistiu mesmo durante o período de sua vigência.
As razões apresentadas para o não cumprimento da ADPF das Favelas se dividiram em dois principais argumentos. O primeiro, de ordem operacional, alegava que os confrontos armados teriam início a partir da reação de grupos criminosos diante das ações legalmente conduzidas pelas forças policiais. O segundo, de caráter institucional, sustentava que as operações ocorreriam dentro da legalidade, sendo previamente registradas, comunicadas e planejadas, com a devida instauração de inquéritos policiais supervisionados pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
Esses argumentos, no entanto, não levam em conta um dos elementos centrais da ADPF: a garantia dos direitos humanos para moradores e moradoras de favelas e periferias que são atravessados cotidianamente pela violência do Estado. O conjunto das recomendações que constam no pedido tem como base, por exemplo, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), que considerou o Estado brasileiro culpado no “Caso Favela Nova Brasília”, em 2017, levando em consideração protocolos internacionais. Ou seja, a ADPF das Favelas pretende incidir sobre a urgência do controle das polícias e seus impactos nas formas de vida nesses territórios.
Uma das principais solicitações feitas na ação apresentada ao STF foi, nesse sentido, a criação de um plano de redução da letalidade policial, com o objetivo de garantir o direito à vida nas favelas e periferias. Neste plano, seria considerado o uso de câmeras nas fardas policiais, o uso de dispositivos de gravação de áudio, a presença de socorristas durante as operações, diretrizes para investigações mais rigorosas sobre abusos e mortes nas operações e a priorização de investigações cujas vítimas fossem crianças e adolescentes, por exemplo. Em 2022, o Supremo decretou que o governo do estado do Rio de Janeiro apresentasse o documento, que foi publicado por meio de um decreto um mês depois – no entanto, não apresentando uma real mudança na atuação das polícias.
Segundo dados da Redes da Maré, apenas no conjunto de favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, das 42 operações policiais ocorridas em 2024, havia ambulância em apenas cinco delas, enquanto o uso de câmera por agentes aconteceu em somente nove desse total. Outro dado mostra que de 2016 a 2024, houve 148 mortes em operações policiais na região da Maré e em apenas 11 dessas foram realizadas perícias. Além disso, as operações continuam sendo feitas próximas às escolas: em 88,1% das operações de 2024, veículos blindados e policiais a pé transitaram dentro e no entorno escolar.
Nesse sentido, entidades da sociedade civil que participaram das mobilizações da ADPF 635 enviaram um pedido ao STF para rejeitar o então plano de redução da letalidade policial apresentado pelo governo. Argumentam que o documento não contou com a participação da população e não representa o que havia sido demandado previamente, como indicadores quantitativos, prazos concretos, previsão de recursos financeiros e objetivos. Fransérgio Goulart, diretor executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, comenta sobre o retrocesso da decisão do STF no julgamento realizado em 3 de abril de 2025. Em entrevista ao Globo, ele enfatiza que “a favela perdeu. A ADPF era sobre controle da polícia, não sobre as favelas. Solicitamos um plano de redução da letalidade policial, e o STF encomendou um plano de ocupação territorial para as favelas!”.
Diferentes movimentos e organizações de favelas e sociais se pronunciaram diante da decisão, que desconsidera grande parte da luta histórica e da forte campanha realizada nos últimos cinco anos. Itamar Silva, morador do Santa Marta e militante do movimento de favelas do Rio de Janeiro, aponta a sua decepção com as conclusões da ADPF 635 apresentadas. Para ele, foram “cinco anos em que o governo do Estado desrespeitou, sistematicamente, as orientações do STF que visavam diminuir a letalidade policial no Rio de Janeiro. O número de mortes neste período poderia ter sido muito menor, caso o Estado respeitasse integralmente as decisões e orientações da ADPF. (…) Com esta decisão, aumenta o risco de que João Pedro, 14 anos, assassinado dentro de casa, em uma incursão mal explicada pelos policiais, no complexo do Salgueiro, em São Gonçalo e que aguarda, há seis anos, julgamento, não dê em nada.”
Além do alto investimento em poder bélico, observado no levantamento realizado sobre o ano de 2021 pela IDMJRacial, observa-se um enfraquecimento progressivo dos mecanismos de controle social sobre a atuação policial. Um exemplo emblemático foi a dissolução, em abril de 2021, do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP), vinculado ao Ministério Público, que desempenhava um papel fundamental no acompanhamento de casos de violência letal e violações de direitos humanos cometidas por agentes de segurança nas favelas. O GAESP promovia transparência por meio do acesso à informação e mantinha um diálogo contínuo com movimentos sociais, familiares de vítimas e lideranças comunitárias, funcionando como um canal direto de interlocução entre sociedade civil e promotores encarregados das investigações. Após quase quatro anos, em fevereiro de 2025, o MPRJ anunciou a reativação do grupo.
Ainda sobre o Ministério Público, movimentos e organizações sociais começaram a impor cobranças abertas ao órgão para que houvesse execução efetiva do seu trabalho de controle externo da atividade policial. O Fórum Popular de Segurança Pública do Rio de Janeiro chegou a organizar um ato em frente ao prédio do MPRJ, mobilizando e apontando as consequências do silenciamento do MP diante da reiterada situação. Essa cobrança acontece até os dias atuais, sendo pautada ainda por órgãos e pessoas que são diretamente impactadas com essa situação.
Militarização e securitização da cidade: a disputa entre os programas de segurança pública
Paralelamente, na última semana, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou a proposta de armamento da Guarda Municipal do Rio de Janeiro – que já faz parte do debate público há, pelo menos, 15 anos. A GM-Rio atualmente é a maior guarda desarmada do país, levantando também sérias preocupações diante de um cenário já marcado por excessos e alta letalidade policial. Embora defensores da medida argumentem que o armamento ampliaria a capacidade de resposta da corporação frente à criminalidade, a experiência de outros estados não sustenta essa promessa. Em municípios como Vitória (ES), onde a guarda é armada desde 2008, não há evidências consistentes de que essa mudança tenha contribuído para uma redução significativa nos índices de violência urbana ou para o aumento da sensação de segurança da população. Além disso, dados do IBGE apontam que cerca de 30% das guardas municipais no país já operam com armamento, muitas vezes sem um plano estruturado de formação continuada, controle externo ou integração com políticas de prevenção.
No caso do município do Rio de Janeiro, o armamento deste grupamento civil corre o risco de aprofundar a lógica militarizada da segurança pública, transferindo para uma força originalmente voltada à mediação comunitária a cultura do confronto, sem garantir os devidos mecanismos de responsabilização. Em vez de ampliar o uso da força, o desafio urgente deveria ser repensar as estratégias de segurança a partir de modelos que priorizem a proteção da vida, o fortalecimento dos vínculos comunitários e o respeito aos direitos humanos. Dado o histórico de violações de direitos básicos que acompanham as histórias dos territórios de favelas e periferias, é natural que a lógica de violência se replique para outras esferas; contudo, não se trata de algo que torne o cenário mais aceitável. Para que seja construída uma política de segurança pública que, de fato, ofereça segurança para toda a população, o município também deve apresentar um plano capaz de garantir o respeito aos direitos de cidadania – não aprofundar a policialização e a criminalização.
Nas redes sociais, Maria dos Camelôs, coordenadora-geral do Movimento Unificado dos Camelôs (MUCA), relata “eu tenho filho preto, os camelôs da cidade do Rio de Janeiro são pretos, a gente vê vários camelôs com tornozeleira eletrônica que saem do mundo errado e quer (sic) voltar pra sociedade, e a gente sabe que essas pessoas vão ser fiscalizadas, vão ser interpeladas pela Guarda Municipal”. Seu receio representa o que está diariamente estampado nas notícias: pessoas negras são as principais vítimas da violência policial. Outros marcadores sociais intensificam essas dinâmicas de violência, como gênero e território, além de atravessamentos como trabalho – se a pessoa é camelô, por exemplo – ou registros de antecedentes criminais. Uma pesquisa publicada pelo Instituto Sou da Paz demonstrou como, além de sofrerem com a alta mortalidade, homens negros são o grupo que mais busca (68%) ajuda no sistema de saúde devido a agressão armada.
A coordenação de setores da segurança pública a nível nacional, estadual, municipal e local tem feito parte de uma estratégia de governo aprimorada, pelo menos, nos últimos 15 anos, em diferentes territórios. Em 2010, por exemplo, foi aprovada na cidade de São Paulo a “Operação Delegada”, institucionalizada por um convênio firmado entre o governo do estado, por meio da Polícia Militar, e a Prefeitura Municipal, por meio da Coordenadoria de Subprefeituras, que permite que policiais em dias de folga trabalhem até 96 horas por mês para a Prefeitura, ganhando uma gratificação extra pela municipalidade. O que foi chamado por alguns pesquisadores de “gambiarra jurídica”, no entanto, fere a divisão constitucional dos papeis de cada órgão de controle, diluindo as especificidades das atribuições de fiscalização em prol da ampliação do espaço de atuação da PM ao abrir uma nova cena do controle social urbano.
Exemplos de outros municípios brasileiros demonstram como o armamento da Guarda Municipal não deve ser uma saída para a violência urbana, visto que possibilita, inclusive, mais episódios de agressões e mortes. Apesar de criadas para proteger o patrimônio urbano, no estado de São Paulo as Guardas Civis Municipais (GCM) passaram a atuar repressivamente e exercer atividades da polícia. Em apenas 7 anos, 197 vítimas foram mortas por guardas municipais no estado, além de outras 12 mortes em ações conjuntas com as polícias Civil e Militar, sem identificação da autoria. Em Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo, o secretário-adjunto de Segurança e Controle Urbano foi assassinado por um Guarda Civil Municipal nas dependências do prédio da Prefeitura, após uma reunião com agentes sobre mudança na escala de trabalho. Na cidade de São Gonçalo dos Campos, na Bahia, onde também há atuação armada da Guarda Municipal, dois guardas foram presos suspeitos de praticarem episódios de tortura e lesão corporal grave. No Paraná, após uma abordagem de trânsito que gerou uma perseguição, um homem foi morto por um guarda com um tiro na cabeça.
No município do Rio de Janeiro, desde os processos de urbanização e militarização intensificados no período dos megaeventos na cidade, a Prefeitura, sob gestão de Eduardo Paes, tem investido na formação de uma rede sociotécnica de comando e controle, sendo o Centro de Operações Rio (COR) o seu principal legado. Com o apoio de diversos setores do empresariado, têm sido firmadas uma série de convênios e parcerias ligando o Estado e as forças de defesa e segurança a diversas empresas, novas ou já tradicionais no ramo de tecnologias de guerra, que passam a cooperar com o Estado, mobilizando negócios com altos custos em forma de investimentos para uma cidade em desenvolvimento, enquanto têm como planejamento estratégico e legado securitário a ocupação militar. Debatemos sobre isso, inclusive, em um anterior artigo aqui publicado em janeiro deste ano.
Cerca de 30 órgãos (secretarias municipais e concessionárias de serviços públicos) seguem atuando de maneira coordenada no edifício-sede do COR, na intenção de monitorar a operação da cidade e acionar com maior eficácia os responsáveis para atendimento às demandas, como a Polícia Militar, a Guarda Municipal, a Polícia Civil ou o Corpo de Bombeiros. Hoje, mais de 3.800 câmeras são monitoradas pelos agentes lotados no COR, que também têm acesso a outras gerenciadas por concessionárias de serviços públicos, como o programa Luz Maravilha, e privados, como a startup Noah, a Waze, a Uber e a Surf Connect.
Nesse sentido, a Prefeitura passa a contemplar a vigilância da cidade a partir do acesso a mecanismos mais eficazes de identificação e coordenação de ações, visto que também se torna possível integrar as informações sobre ocorrências da Secretaria de Segurança e das polícias à plataforma de gestão urbana do COR. Desde 2017, por exemplo, o projeto Rio+Seguro, apresentado no Plano Estratégico 2017-2020, reafirmou as parcerias iniciadas ao dar importância ao “esforço de cooperação” do governo, mobilizando diferentes técnicos e representantes das secretarias e órgãos envolvidos. O projeto prevê a integração das atividades das Guardas Municipais com as forças de segurança do estado e, através do Fundo Especial de Ordem Pública (FEOP) e do Programa Estadual de Integração na Segurança (PROES), realiza o pagamento de agentes da Polícia Militar dos batalhões lotados para atuação conjunta em suas horas de folga. No entanto, nenhuma dessas ações estão hoje apresentadas no Plano Municipal de Segurança Pública – que, afinal, nunca foi realizado e segue sendo ignorado – e fazem parte de interesses políticos de certos setores do governo.
Tecnoviolências: o descontrole no uso de tecnologias de vigilância e controle
Um dos grandes legados da coordenação de setores públicos e privados como técnica de governo da segurança pública é toda a infraestrutura que integra milhares de câmeras espalhadas pelo espaço urbano e modal da cidade, e os diversos softwares de análise de dados e produção de informações, que são operados por diferentes agentes das forças de segurança concentrados em um mesmo ambiente tecnológico que se pressupõe a base da inteligência das forças táticas de segurança. Nesse sentido, o processo de securitização da cidade se utiliza de diferentes dispositivos e técnicas integradas para manter a vigilância e o controle, sitiando territórios e policiando determinados corpos e condutas – como, por exemplo, os corpos que transitam nas fronteiras entre o que é considerado ilegal, informal e ilícito.
No debate mundial, e não diferentemente no Brasil, a regulação de tecnologias digitais tem sido um campo de disputas entre instituições públicas com visão tecnocrata e atores da sociedade civil que defendem os direitos digitais sob o olhar da ética e dos direitos humanos. A União Europeia foi a primeira a promulgar a Lei sobre o tema, em 2021. Atualmente, o Senado Brasileiro aprovou o projeto de lei (PL) 2338, que, ainda neste ano, deve ser votado na Câmara. Antes da votação, o processo de construção desse texto na Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA), tentou excluir especialistas negros, protagonistas nos debates sobre direitos digitais e sociedade. Após muita incidência junto à sociedade civil, a CTIA recebeu as contribuições desses especialistas e coletivos negros, como o Aqualtune Lab, que elaborou uma redação para tornar o PL explicitamente antirracista, que reinvidica a regulamentação das câmeras nos uniformes policiais, e que sejam proibidos os usos de drones bélicos – conhecidos como armas autônomas (SSA), por exemplo.
A violência imposta nos territórios tem sido cada vez mais ampliada com as tecnologias digitais, e é o que demonstram os dados da pesquisa “Lentes Opacas”, do O Panóptico. O relatório fez um mapeamento dos estados que usam tecnologias de reconhecimento facial (TRF). São 264 projetos ativos, sendo que a Bahia foi a que mais prendeu pessoas negras – 1.750 pessoas em 6 anos. Não há transparência no uso de dados. A maioria dos estados não informa o erro de prisão por TRF. Ou seja, a tecnologia erra, prende inocentes e continua sem fiscalização. Para uma internet que respeite a vida e não reproduza mais violência, é urgente a regulação das redes digitais para que se protejam direitos fundamentais.
Por exemplo, no Rio de Janeiro, após a chacina policial no Jacarezinho, em 2021, a PMERJ passou a intensificar a aplicação das tecnologias de reconhecimento facial. Seu objetivo era começar a implementação do sistema de monitoramento pelo Jacarezinho e logo após ampliar para a capital e a Região Metropolitana. A tecnologia utilizada pela PMERJ é um software russo banido da União Europeia por “prover suporte técnico e material para sérias violações de direitos humanos na Rússia, incluindo prisões e detenções arbitrárias, e violações ou abusos de direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação”. As câmeras de reconhecimento reproduzem casos de racismo por meio digital constantemente.
Importante lembrar também que outra estratégia de reconhecimento facial utilizada pelas polícias é o álbum de suspeitos nas delegacias. Um relatório produzido pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro concluiu que pelo menos 83% dos erros eram feitos contra pessoas negras, que passavam em média 181 dias presas indevidamente. O motoboy Claudio Junior Rodrigues de Oliveira, de 24 anos, foi acusado de roubo 14 vezes e absolvido, até o momento, de 13 acusações. Ele era identificado por fotos no álbum de suspeitos, mas quando as vítimas o encontravam pessoalmente, não o reconheciam enquanto autor dos crimes. Casos como esse são recorrentes todos os dias e, em casos que dependem de tecnologias que utilizam características e padrões biométricos da face, a reprodução do racismo algoritmo fica ainda mais evidente. A psicóloga Daiane de Souza Melo, por exemplo, estava participando de uma conferência sobre igualdade racial em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, quando foi abordada por um agente do programa Segurança Presente. Sua imagem havia sido reconhecida no sistema de monitoramento e associada à uma mulher com mandado de prisão em aberto. Todos que estavam presentes no evento evidenciaram as diferenças físicas entre Daiane e a mulher, mas ela só foi liberada após apresentar seu documento de identificação aos policiais.
A constituição do problema da violência urbana nas grandes capitais brasileiras, como o Rio de Janeiro, remonta em grande medida ao acúmulo histórico de desigualdades sociais e econômicas, às dificuldades de absorção de setores da população pelo mercado de trabalho e a sua consequente marginalização, além da urbanização acelerada, da dificuldade de incorporação de setores da população ao mercado de trabalho, do racismo, da descrença na capacidade do Estado em mediar conflitos, e das práticas dos grupos de extermínio fundados no interior da polícia. Ou seja, um conjunto de fatores históricos que não será resolvido apenas por meio de novas e mais articuladas formas de policiamento e controle.
Como apresentado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI-UFF), as dinâmicas dos grupos armados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e, nesse sentido, as formas de territorialização da violência, têm sido alteradas constantemente, trazendo novos conflitos para a cidade e seus(as) moradores(as). Décadas de descontrole sobre as polícias e operações sem prestação de contas favoreceram a expansão do controle territorial armado sob diferentes formatos. O Mapa Histórico dos Grupos Armados, inclusive, demonstra que 85% do crescimento do controle territorial armado se deu em áreas antes não dominadas, onde o baseamento policial independia de operações. Ademais, é possível perceber que há duas vezes mais operações policiais em áreas de facções do tráfico do que de milícias, mesmo que as milícias controlem uma superfície territorial maior. A inteligência, portanto, deve ser estratégica – caso a segurança pública tenha realmente como objetivo a garantia de direitos a toda a população. E, no atual cenário, as vítimas que se mantêm sob a mira das variadas formas de violência seguem sendo os moradores e moradoras mais vulnerabilizados pela lógica de atuação desse Estado.
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