Por trás do colorido nas prateleiras do supermercado

A diversidade está somente nas embalagens. São apenas coisas engolíveis Escondem químicos para dar “prazer viciante”, marketing pesado e o verde deserto do agro. Apartam-nos da beleza dos biomas e da luta dos povos indígenas. Lembremos disso neste Abril Vermelho

Foto: Revista Mercados
.

Poucos lugares são tão coloridos quanto um supermercado. Cada corredor contém prateleiras e mais prateleiras, sobre as quais embalagens de todos os tons disputam a atenção do nosso olhar, mesclando palavras e figuras criadas minuciosamente pelos departamentos de marketing para otimizar sua “atratibilidade”, aumentando a chance de venda.

Confesso que, sempre que fico algum tempo distante desses centros de mercadorias reluzentes, me sinto um tanto chocada ao entrar em seus ambientes sobrecarregados de estímulos visuais. Para refletir a partir do que me incomoda neles, convido você a vir comigo em uma experiência imaginativa, que nos levará mentalmente para espaços totalmente díspares.

Para começar, imagine que você está em um desses “templos do consumo”, com pacotes e pacotes de produtos comestíveis, um mais colorido que o outro, e todos gritando pra você: “me leva, eu sou diferente dos outros!” Slogans divertidos, fotos tentadoras, referências a uma natureza idílica, promessas de boa forma ou de saúde turbinada se revezam em superfícies plastificadas que provavelmente nunca mais serão usadas, mas que não “morrerão” tão já, dada sua não biodegradabilidade.

Imaginou? Agora, vamos fazer um corte radical neste “filme”, e você vai imaginar que está em meio a uma imensa monocultura de soja, com fronteiras a perder de vista. Para qualquer direção em que olhar, só o que você verá é apenas um único tom de verde, típico da espécie que está sendo cultivada ali – espécie cuja semente provavelmente foi modificada em um laboratório de biotecnologia, através de um processo de transgenia, para que, ao brotar, a planta siga determinados padrões desejados pelos seus des-envolvedores. Sentiu o baque do contraste?

A pergunta que não quer calar é: considerando que estamos em um dos países mais biodiversos do mundo, qual a relação entre a acachapante uniformidade de uma imensa área de cultivo, como a que você visualizou, e a Disneylândia multicolorida tão característica dos espaços em que os alimentos industrializados são vendidos?

Para responder a essa questão, precisamos entender de quê esses produtos comestíveis são realmente feitos. Aliás, chamar muitos deles de comida seria uma injustiça imensa com nossa história alimentar, baseada em milênios e milênios de relacionamento com a agrobiodiversidade presente nos diferentes ecossistemas ao redor do planeta. Gosto de chamá-los de “coisas engolíveis”. Mas, nomenclaturas pessoais à parte, o importante mesmo é analisar a composição de alguns desses preparados.

Deu vontade de um chips crocante? É algo relativamente simples de fazer – basta ter um determinado tipo de alimento (como um tubérculo ou cereal), óleo e sal, não é? Pois ERA. O processo de fabricação de um salgadinho bem popular, por exemplo, envolve dezenas de etapas, nas quais seu ingrediente básico, milho transgênico, é transformado em uma pasta, que será submetida a várias máquinas sofisticadas, até adquirir a visualidade do produto conhecido por milhões de pessoas. E é só nesse momento que os petiscos recebem, ainda, a aplicação de uma fórmula secreta de aditivos para conferir a eles um dos três sabores típicos da marca – o que dá margem para que muita coisa que não é bem o que entendemos por comida entre em cena. Aliás, boa sorte para quem quiser descobrir o tal segredo laboratorial.

Mas passemos à algo mais corriqueiro… Segundo um documento divulgado pela própria empresa em 2012, as batatas fritas presentes na rede de fast food mais popular do mundo – que supostamente também deveriam conter apenas o tubérculo, óleo e sal – levam, ainda, ácido cítrico (conservante), dimetilpolisiloxane (antiespumante), ácido sódio pirofosfato (realçador da cor) e dextrose (açúcar derivado do milho). Fica aí a dica pra você “fazer em casa”, se quiser se aventurar no mundo dos preparados culinários com sobrenomes químicos.

Que tal uns pedaços de frango?

Na época em que a tal rede de fast food chegou ao Brasil, eu e minha irmã enchemos o saco do meu pai para nos levar para conhecer e experimentar a tão alardeada novidade. Embora ele e minha mãe sempre tivessem adotado uma postura crítica em relação ao sistema econômico globalizado, no qual alguns países do Norte planetário impõem padrões de consumo ao restante da população, ele acabou cedendo, e lá fomos nós.

Quando chegou nossa hora de fazer o pedido, e todas as pessoas da fila estavam caprichando para falar os nomes gringos dos sanduíches oferecidos pela (mal) dita lanchonete, meu pai resmungou assim para a atendente: “me vê aí os pedaços de frango”. A minha cara e a cara da minha irmã ferveram de vergonha porque havíamos implorado a ele, durante dias e dias, para que pedisse e comprasse os tais dos nuggets, novidade absoluta naqueles tempos.

Se a intenção dele foi desconstruir a marquetagem da empresa – baseada em nomes sofisticados e quase impronunciáveis por crianças brasileiras, como nós éramos na época -, acabou dando certo. Entendemos que aquilo era algo do tipo “galinha frita” e não merecia muita babação, já que não éramos uma família muito ligada ao cardápio carnívoro (ou mesmo franguívoro). Nunca mais fomos com ele a essa rede de lanchonetes, mas ela segue aí, firmona após várias décadas e incontáveis polêmicas. E ainda vende os tais pedaços de frango empanados.

Só que não é bem assim… E é aí que a estória dá uma cambalhota. Na realidade, os tais nuggets até contêm a carne dos simpáticos galináceos, que sofrem horrores antes de virarem petiscos, mas estão muito longe de ser o que meu pai achava que eram. Cada quitutezinho desses, além de ter carne e pele moídos, é um aglomerado de ingredientes dos mais diversos (como farinha, gordura vegetal, temperos, emulsificantes e estabilizantes), que passa por um processamento complexo, formando uma massa uniforme, cortada no formato padrão, de modo a sugerir algo mais ou menos como o que minha família conhecia como frango à passarinho. Por sinal, vídeos que mostram essa fabricação são bastante indigestos.

Da mesma maneira que observamos as batatas e os nuggets, podemos olhar para boa parte dos outros produtos alimentícios industrializados vendidos nos supermercados e – batata! – vamos encontrar ingredientes e formas de produção muito diferentes do que entendemos, respectivamente, por comida e por cozinhar. Eles fazem parte do tipo de “coisa engolível” que o Guia Alimentar para a População Brasileira denomina como ultraprocessados, aconselhando as pessoas a ficarem o mais longe que puderem de seus pacotes. São exemplos dessa categoria os biscoitos recheados, os cereais do tipo corn flakes, os néctares de caixinha, os macarrões instantâneos, as salsichas e os refrigerantes, entre outras figurinhas carimbadas que povoam as propagandas.

Ilusão dos sentidos

Entretanto, se os ingredientes são distintos do que usamos em nossas cozinhas para preparar as refeições, eles são muito semelhantes entre si. A base de quase todos é soja, milho, trigo, cana-de-açúcar, sal e um bom punhado de aditivos artificiais, como aromatizantes, conservantes, emulsificantes, estabilizantes, adoçantes sintéticos etc… tudo isso é misturado em diferentes composições e proporções, de maneira cuidadosamente calculada para aumentar a palatabilidade, ou seja, a sensação de prazer ao ingerir, viciando nossos cérebros.

Tendo o sabor, o aroma, a consistência, a textura idealizados, é o momento de escolher um formato, uma embalagem, um nome, buscando passar a ideia de que é algo original – e ter mais chance de concorrer com os outros produtos que foram elaborados a partir do mesmo tipo de procedimento fake, especialidade das Big Foods.

É por essa maquiagem toda que achamos que há uma variedade imensa de opções de alimentos nos corredores supermercadeiros, quando, na verdade, as espécies comestíveis presentes nas incontáveis prateleiras são sempre uma meia dúzia, com acréscimo de mais meia dúzia, em alguns casos. Para ter noção do empobrecimento alimentar que isso significa, vale lembrar que, só no território brasileiro, há a estimativa da existência de cerca de 3 mil plantas comestíveis, sendo que centenas ou até milhares de variedades de algumas delas, como o milho e a abóbora, já foram cultivadas e consumidas.

Claro que, no mundo do capital, nada é por acaso. Não é coincidência o fato das espécies vegetais que batem ponto na composição da maioria dos alimentos industrializados serem justamente as que povoam nossas monoculturas Brasil afora. Por sinal, monoculturas estas que seguem avançando no mesmo ritmo em que avança o consumo de ultraprocessados e em que perdemos elementos de nossa Cultura Alimentar, formada pelos saberes acumulados, durante milênios, por povos que nos constituíram como Estado Nacional, conceito em si já bem problemático.

Aqui, deixo um exercício para quem se sentir tentado a cair no mundo ilusório criado pela indústria alimentícia: olhe o rótulo dos produtos e, ao perceber os ingredientes de sempre, lembre-se dos nossos biomas sendo destruídos pelo avanço do Ogronegócio – a engrenagem venenosa que produz e fornece essas espécies vegetais aos seus fabricantes. Provavelmente, eles não vão parecer assim, tão apetitosos. Ou assista o documentário Comida de Mentira, produzido pelo Coletivo Bodoque, ACT Promoção da Saúde, O Joio e o Trigo e IDEC – Instituto de Defesa do Consumidor. Um tapa com classe na cara de pau corporativa.

(Des)colorindo o alimento

Voltemos a nos imaginar em outros cenários. Visualize-se em uma floresta tropical. Perceba a variedade de seres vivos que convivem dentro dela. Com certeza, você será capaz de encontrar cores das mais diversas, seja no alto dos galhos ou entre as folhas caídas no solo. Mesmo se observar os tons de verde das folhas, poderá ver que formam uma paleta extremamente ampla e que a uniformidade passa longe desse ambiente.

Ao imaginar a reunião dos frutos comestíveis nativos que se espalham pelos nossos ecossistemas, nós teremos uma verdadeira obra de arte multicolorida. Dos alaranjados do pequi e do jerivá até o roxo amarronzado do açaí e da jabuticaba, passando pelo verde vivo do cambuci e pelo amarelo vibrante da cagaita, não há como não se encantar com o arco-íris que a Pachamama espalhou em nossos territórios de Abya Yala.

Mas esse tesouro biológico – bem como os saberes culturais acumulados a partir do contato com suas jóias comestíveis – está sendo exterminado em várias regiões do país. A voracidade da elite agrária e das empresas do setor agroalimentar parece aumentar ano a ano, e os seguidos recordes na produção de commodities, como a soja e o milho, mostram que cada vez mais terras estão sendo totalmente alteradas em suas características naturais, para virarem desertos verdes, nos quais um só tipo de planta pode existir. É o cenário perfeito para um cataclismo ambiental – nos colocando, ao mesmo tempo, como agentes desencadeadores do caos climático e vítimas absolutamente vulneráveis aos seus efeitos.

E o tingimento monocromático, que esse modelo de des-envolvimento tem aplicado às paisagens, também se estende ao nosso circuito de preparos alimentares. Mesmo aquelas pessoas que ainda têm acesso ao tomate e à alface que compõem os PFs de todo dia, já perderam uma imensa gama de cores de suas refeições, pois comem o mesmo tipo de tomate e o mesmo tipo de alface rotineiramente, quando eles poderiam ser de muitas outras variedades, com muitas outras cores, das tantas que os seres humanos já cultivaram dessas espécies.

E o mesmo pode se dizer da batata frita ou do purê de batata, sempre feitos com a variedade que ficou conhecida como inglesa (embora as batatas sejam um alimento originário da América e tenham viajado para a Europa após o processo de colonização que sofremos). Muita gente nem sabe que existem versões laranjas, roxas, avermelhadas e brancas de tubérculos que poderiam ser usados para preparar essas receitas.

A realidade nos mostra que, nos espaços urbanos, onde residem cerca de 85% da população brasileira (índice que sobe para 93% no Sudeste), o que os mercados vendem como alimentos in natura é relativo a uma parte ínfima da biodiversidade comestível dos nossos territórios. E que boa parte do povo não tem acesso nem a essa pequena variedade, já que frutas, legumes e verduras (os tais FLVs) não estão disponíveis em muitas quebradas ou costumam ter preços inacessíveis aos bolsos da classe trabalhadora precarizada. São os chamados desertos e pântanos alimentares, que andam de mãos dadas com os desertos verdes do ambiente rural que já mencionamos.

Em compensação, é cada vez mais raro encontrar um local nas cidades, por mais periférico que seja, que não tenha um cantinho em que se vende, a valores bem mais em conta, pão de forma industrializado, salsicha, biscoito, salgadinhos do tipo chips… e tudo o que parece muito colorido e variado, mas que costuma ser feito de algum tipo de massaroca monocromática como as que descrevemos – oriunda diretamente das plantações de commodities que descolorem nossos ecossistemas, – com o acréscimo de aditivos dos mais diversos.

A cor proibida

Se, por terem sempre os mesmos ingredientes, os produtos gerados pela indústria alimentícia irão parecer repetitivos em relação aos seus sabores, é só tascar aromatizantes artificiais na hora de fabricá-los, que é possível criar gostos que imitam quase tudo o que existe. Estão aí os sabores cuscuz com calabresa do lamen instantâneo e cupuaçu do refresco em pó para não deixarmos dúvidas no ar. Caso o problema seja a falta de coloração, é a vez dos corantes entrarem em cena. Vale combinar os que existem disponíveis no mercado, muitos deles totalmente sintéticos, para obter algodão doce azul, refrigerante cor de rosa, carne vermelha…

Ôpa, carne vermelha? É isso mesmo, até produtos que deveriam ser feitos com carne bovina ou suína – e ter sua coloração avermelhada típica -, por vezes, são feitos com boa quantidade de soja, temperada com um toque de um dos corantes disponíveis na praça. No embalo do aumento do veganismo no mundo, empresas que querem surfar nas ondas das tendências de consumo vêm lançando “coisas engolíveis” das mais variadas, com a promessa de tornar possível a obtenção do prazer de comer carne… sem comer carne!

Como alguém que não come carne, nem sente vontade de comer, essa ideia me parece bem inapetecível, mas sei que muita gente adepta do vegetarianismo tem larica de comer receitas que normalmente são feitas com o sacrifício de animais. O fato é que, independentemente de ideologias ou preferências gustativas, sabemos bem que não é possível cada ser humano do planeta devorar proteína animal, sobretudo carne vermelha, como se fosse um/a estadunidense médio/a. Reduzir é preciso, e ponto.

Mas, se o vermelho da carne bovina vem se tornando proibitivo na atual situação de colapso climático, não é se entupindo de versões veganas de embutidos ultraprocessados que vamos construir sociedades mais resilientes, tanto do ponto de vista ambiental como do ponto de vista econômico ou o de saúde pública. Somente transformando substancialmente o atual modelo agropecuário, associado às indústrias alimentícias e farmacêuticas na dominação de nossos territórios, nossos pratos e nossos corpos, é que teremos alguma possibilidade de reverter o processo de “degringolação” civilizacional que nos atropela. Será que estamos agindo para isso?

No começo deste ano, a Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) anunciou que, a partir de 2027, o uso do corante vermelho eritrosina, um dos mais usados pelas empresas de “coisas engolíveis”, será proibido no território do país. Os motivos são os que já sabíamos há décadas: essa substância é potencialmente cancerígena e já havia sido alvo de restrição na UE e no Japão. Agora, quando não dá mais para disfarçar esse “potencial” – e já existem outras opções no mercado -, as autoridades responsáveis por ditar o que deve e o que não deve nos envenenar vêm a público soar as trombetas contra sua presença nos alimentos e suplementos.

É algo a celebrar? Pode até parecer que sim, mas é só uma casquinha em uma cebola que tem camadas e mais camadas de manipulação mercadológica. Além disso, aqui no nosso país, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ainda não acompanhou esse movimento de sua “colega” gringa e é provável que sejamos novamente alvos do lixo tóxico decorrente da circulação seletiva das substâncias no globo terrestre, processo bem definido – em seu livro mais recente – pela pesquisadora Larissa Bombardi como Colonialismo Químico.

A disputa pelo vermelho

Não deixa de ser curioso que, na sociedade capitalista, a “cor do morango” seja um fetiche no mundo da alimentação. Balas, jujubas, pirulitos, sorvetes, gelatinas, pudins, sucos, geleias… as crianças (de todas as idades) têm bastante inclinação a preferir guloseimas de tonalidade vermelha, que costumam ser associadas à alegria e ao sabor doce ou azedinho-doce.

É algo que pode estar associado à busca ancestral por um alimento calórico, que veio da época em que éramos caçadores-coletores e frutinhos vermelhos maduros eram tesouros energéticos dentro de uma realidade em que gastávamos muitas calorias para prover nossa alimentação. O fato é que as indústrias produtoras de ultraprocessados sempre abusaram dessa “suscetibilidade” humana, ou mesmo a estimularam, de modo a extrair lucros polpudos do bolso dos/as consumidores/as desses produtos e enriquecer proficuamente seus grandes acionistas.

Só que a cor vermelha também representa algo diametralmente oposto ao fenômeno gustativo que leva ao enchimento dos bolsos capetalistas. Ela é símbolo do sangue derramado pelos povos que a sanha imperialista por dinheiro vem atacando ao longo de séculos. Ela está nas bandeiras levantadas por pessoas que lutaram e seguem lutando por justiça social, por um modo de viver mais solidário, pelo fim da exploração da vida, seja de que tipo de vida for. Ela está no urucum usado pelas populações indígenas para pintar suas peles já avermelhadas e praticar seus rituais ancestrais para que o céu não desabe e a terra não fique estéril.

E o mês de abril é especialmente simbólico para quem tanto resiste ao extermínio físico e espiritual perpetuado pelas elites nacionais e internacionais, em sua aliança despudorada pelo acúmulo de riquezas e privilégios. É um período de mobilização pelos direitos campesinos e indígenas, sobretudo pelo direito à terra e ao território. É o Abril Vermelho, que ganha vida em todos os cantos do país, empunhando a mensagem da Reforma Agrária aos quatro ventos. É o tempo do Acampamento Terra Livre, reunindo milhares de indígenas em Brasília, para reivindicar sua existência plena enquanto povos originários destes nossos solos sagrados – que tanto vêm sendo sugados por homens brancos de classes histórica e economicamente privilegiadas.

Durante este período, o Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra, impulsionado pelo Dia Internacional da Solidariedade e Ação para as Comunidades Camponesas, que também é o Dia Nacional da Luta pela Reforma Agrária, promove uma agenda consistente, que inclui marchas, protestos, doações de alimentos e as tão necessárias ocupações, que são instrumentos legítimos de pressão sobre os governantes e, também, gritos de alerta à população para a realidade de exclusão no campo. Ocupando áreas dominadas por vários ogronegoceiros – que mastigam os elementos vitais dos ecossistemas e cospem seus bagaços venenosos sobre nossas cabeças -, os povos campesinos denunciam violações inaceitáveis contra a natureza e a sociedade.

É que a data acima referida, o dia 17 de abril, faz referência aos 29 anos do que ficou conhecido como Massacre dos Carajás, uma chacina cometida pela polícia militar do estado do Pará, ceifando a vida de 21 integrantes de acampamentos Sem Terra que protestavam por seus direitos. O sangue de quem tombou na luta serviu de impulso para que o mês se tornasse o tradicional Abril Vermelho, e fosse reverenciado ano após ano, como símbolo da coragem de tantos outros lutadores e lutadoras assassinados/as, ao redor do mundo, em função da ganância da minoria que se julga senhora do universo.

Este ano, o lema Direitos dos Camponeses, Soberania Alimentar e Fim da Guerra e do Genocídio, adotado pela Via Campesina, maior movimento de agricultores/as do planeta, faz uma referência à situação inaceitável em Gaza. Também encorpa a luta para que a UNDROP – Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses -, promulgada em 2018 após décadas de mobilização ativista, seja finalmente implementada.

Aqui, onde quem é indígena, preto/a, pobre e periférico/a também costuma ser alvo de genocidas, o lema escolhido para 2025 foi Ocupar para o Brasil alimentar, reforçando o elo indissolúvel entre o acesso à terra e o combate à fome, inclusive para frear a especulação e o boicote que vêm insuflando a carestia dos alimentos.

Liberdade multicolorida

Se a voz dos povos originários segue ecoando, mesmo frente aos mais de 500 anos de opressão, é porque, através dela, a natureza é quem está falando, cantando e gritando. Transformando a capital do país em uma comunidade multicor, milhares de indígenas reivindicam muito mais do que a demarcação de seus territórios ancestrais. Eles e elas dedicam seus esforços e seus saberes para tentar impedir que a espécie humana, por meio da minoria ávida por dinheiro que a domina, provoque a própria extinção, levando outras milhares de formas de vida consigo nesse processo de ecosuicídio. E, no centro desse debate, está tanto a disputa pelo nosso imaginário como pela materialidade que nos constitui.

É compreendendo essa dupla chave, que afirmamos que é hora de libertar o vermelho – que foi cooptado pelos fabricantes de corantes artificiais e pelas identidades visuais traiçoeiras das redes de fast food transnacionais, como a que eu mencionei no começo deste texto – das garras do capital. Também é hora de libertar as bandeiras e os pigmentos dos povos dos campos, das águas e das florestas da perseguição massiva e contínua por parte de quem empunha espingardas e correntes de arrasto, ao invés de enxadas e maracás.

Queremos e vamos lutar pelos avermelhados naturais das pitangas, das grumixamas, das pimentas e vinagreiras. E de tantas outras espécies de vegetais e de animais que estão sucumbindo frente ao espraiamento sem limites dos monotons do Ogronegócio. Os avermelhados do que é e do que não é comestível. Das araras e borboletas. Basta de esquizofrenia em relação a essa cor tão vibrante que, de um lado, vem sendo instrumento de manipulação marqueteira para nos impor um padrão alimentar artificial e insustentável e, de outro, vem sendo criminalizada por sua identificação com as lutas sociais e políticas dos povos oprimidos pelo sistema baseado na maximização dos lucros.

Mas queremos muito mais. Queremos todos os tons do arco-íris! E os queremos muito além das pautas da diversidade de gênero (também essenciais na busca de uma sociedade plural) ou mesmo da esfera humana. Somos parte de uma teia de (ainda) incontáveis tipos de seres viventes, cujas relações complexas nem sempre vislumbramos, mas que podemos intuir, se observarmos com os olhos bem abertos – ou bem fechados -, como fazem ancestralmente povos nativos de todas as regiões planetárias.

Se sentirmos seu pulsar, mesmo sob camadas de asfalto ou de solos envenenados e compactados por máquinas agrícolas. Se abrirmos espaço para que nossos pratos sejam novamente ocupados pelas cores das abóboras, dos milhos crioulos, das batatas roxas e das juçaras, que repovoaríam, então, as roças campesinas e indígenas. Se nos negarmos a aceitar o domínio corporativo sobre nossas terras, mercados e estruturas políticas, e exigirmos Reforma Agrária Popular Agroecológica e Demarcação de Territórios Indígenas Já!

A luta não é fácil, mas é o único caminho. Deixar que a ditadura de mercado siga (des)colorindo artificialmente nossas vidas, seja com suas uniformizações biotecnológicas ou seja com suas tintas sintéticas tóxicas, é aceitar um futuro de empobrecimento e sofrimento atrozes, que pode obrigar a nossa Gaia a nos expulsar da única Casa Comum em que nossas vidas são possíveis. É por isso que as vozes urbanas, camponesas, florestais, ribeirinhas, pantaneiras, caiçaras e oriundas de todos os espaços em que a vida ainda vibra precisam se unir em cantos regenerativos e em gritos de protesto, neste e em todos os meses do ano. Como diz a Carta Final do Acampamento Terra Livre 2025: “Nossa luta é pela Vida, pela Mãe Terra, pela Constituição e pelo futuro de toda a humanidade. A resposta somos nós”.

Viva o Abril Vermelho Campesino e Indígena! Viva a liberdade multicolorida!

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *