Convite a resgatar o jornalismo e a internet
Colonizada pelas big techs, a rede converteu-se em fábrica de devastação social e angústia. Enquanto isso, o jornalismo sucumbe. Há alternativas a estas duas ameaças? Quais são? Como Outras Palavras e o Coletivo Digital pretendem debatê-las, num encontro em maio?
Publicado 15/04/2025 às 19:43

A internet, que já foi um espaço de trocas culturais e de construção coletiva do Comum, está colonizada por um punhado de grandes corporações. Como libertá-la? O jornalismo vive uma crise profunda e prolongada. Será possível resgatá-lo? Estas duas questões, que estão muito conectadas entre si, serão o tema de um encontro que Outras Palavras co-organizará em breve — entre 21 e 23/5, em São Paulo, no Centro Maria Antonia. O encontro se dá no âmbito do programa Cultura Viva — o mesmo que espalhou milhares de Pontos de Cultura por todo o país, a partir das gestões de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, e do historiador Célio Turino, um dos secretários da pasta.
Entre 2016 e 2022, o Ministério da Cultura ficou totalmente inativo. Mas, em 2023, o programa Cultura Viva foi retomado. Criaram-se Pontões de Cultura, que visam articular políticas e provocações capazes de sensibilizar esta grande rede de milhares de Pontos. Em parceria com o Coletivo Digital, uma organização de São Paulo, com vasta tradição de defesa da internet livre, Outras Palavras apresentou uma proposta que foi selecionada. Surgiu a partir daí o Pontão de Cultura denominado Sacix — referência cruzada a um personagem da cultura popular brasileira e à cultura Linux, de software livre. O Pontão, que vai organizar o encontro no Centro Maria Antonia, em maio, tem dois objetivos centrais.
O primeiro é promover a Cultura Digital e está relacionado à disputa pelo futuro da internet. O Coletivo Digital é uma das organizações que anima a campanha Internet Legal, lançada há poucas semanas, mas que já reúne dezenas de entidades. Sintomaticamente, é ignorada pela mídia, mas está trabalhando para abrir um debate que, no Brasil, precisa partir dos movimentos sociais, já que as instituições parecem rendidas às grandes corporações.
O argumento central da campanha é: na forma em que está, a internet é um desserviço às sociedades. Foi colonizada por quatro ou cinco corporações e transformou-se num espaço de vigilância, de captura de dados, de trabalho precarizado, de consumismo dirigido, de manipulação eleitoral — em síntese, de corrosão do espaço público e de angústia.
Evidentemente, o Coletivo Digital e a campanha Internet Legal não são ludistas, não querem o fim da internet. Mas estão convencidos de que as sociedades — em especial a sociedade brasileira — têm algo a dizer sobre o presente e o futuro da rede. Isso exige regulamentação, algo que as big techs querem evitar a qualquer custo. Regulamentação significa estabelecer que os conteúdos que são criados e postados por centenas de milhões de brasileiros não podem ser manipulados por um punhado de empresas, em favor de seu lucro máximo e de seus interesses políticos. Isso significa refrear o discurso de ódio, ao invés de promovê-lo. Agir decisivamente contra as fake news, ao invés de servir-se delas para ampliar os conflitos, as visualizações, a captura da atenção e, com isso, as receitas e os lucros. Regulamentação significa, em especial, tornar transparente o algorítimo — ou seja, a programação das redes sociais, para usar um conceito do jornalista Bruno Torturra.
As mesmas tecnologias que levam estas redes a escolher e distribuir conteúdos disruptivos, mas que geram lucros, podem, ao contrário, estabelecer cooperação, troca de ideias, construção coletiva de projetos. Quem vai estabelecer o sentido do algoritmo (ou programação) da internet? Somente os donos das redes sociais? Ou as dezenas, centenas de milhões de pessoas que produzem conteúdos incessantemente e fazem a riqueza destas redes têm algo a dizer sobre isso?
Mas a campanha Internet Legal deseja ir além da regulamentação. Diversas entidades que compõem o movimento estão de acordo com o sociólogo bielorruso Evgeny Morozov de que é preciso construir outras redes. Regulamentar é bom, diz Morozov, mas nos coloca sempre na defensiva, sempre correndo atrás do prejuízo.
Como lembra o sociólogo Sérgio Amadeu, há no Brasil vasto conhecimento, experiência e inteligência em programação. Centenas ou milhares de excelentes programadores estão hoje trabalhando para corporações transnacionais, porque já não encontram aqui oportunidades. Vejam o desperdício: a sociedade brasileira formou estes profissionais com esforço para que eles agora se vejam obrigados a trabalhar para as corporações que nos oprimem. Não é hora de aproveitá-los de outra maneira, de oferecer-lhes outras oportunidades? A isso pode-se agregar a cooperação Sul-Sul, em especial por meio dos Brics. Países como a China e a Índia desenvolveram projetos de tecnologia de informação muito avançados — em alguns casos capazes de rivalizar ou superar os norte-americanos. Poderão estabelecer um trabalho em conjunto?
Tudo isso será debatido entre 21 e 23/5 no Centro Maria Antonia, em São Paulo, durante o encontro da Rede Sacix. Mas, e o Jornalismo?
O Resgate do Jornalismo é o outro eixo de trabalho do Pontão Sacix. A crise da nossa atividade é evidente. As tiragens dos jornais são, hoje, um terço ou um quarto do que foram no passado recente. Dezenas de títulos de revistas simplesmente deixaram de existir. As redações jornalísticas, que reuniam centenas de pessoas, quase desapareceram. As bancas de revista agora vendem, para sobreviver, refrigerantes, mochilas, guloseimas e… jornal para pet. Há, portanto, uma crise no jornalismo empresarial — provavelmente sem solução e sem volta. Uma parte do problema é a mudança tecnológica. As pessoas não precisam mais comprar um jornal para ter acesso a informações básicas. A internet dá conta de informá-las e elas não pagam nada por isso. A receita dos jornais com venda em bancas e assinaturas caiu dramaticamente, bloqueando a atividade jornalística, que exige recursos.
Além disso, a receita publicitária também despencou. A internet roubou os anúncios dos jornais. Ela permite ao anunciante enviar cada mensagem a um público-alvo específico, gastando muito menos dinheiro e com muito maior eficiência.
Do ponto de vista financeiro, portanto, há um movimento em pinça contra o jornalismo empresarial: queda de vendas avulsas e de assinaturas; e, ao mesmo tempo, diminuição drástica da receita publicitária.
Mas a tecnologia é apenas uma parte do problema e o jornalismo precisa sobreviver ao fracasso do seu modelo empresarial. Porque — e este é um dos pontos essenciais da construção política do Pontão Sacix — o bom jornalismo é essencial para duas outras tarefas civilizatórias essenciais: a reconstrução do espaço público e da própria democracia.
O jornalismo é a atividade intelectual que nos alerta para o novo, para o que desponta na vida social, econômica, cultural, comportamental das sociedades.
O jornalismo não é necessário para avisar que estourou um cano na rua — mas, sim, para ajudar a refletir sobre o abastecimento de água nas cidades que afeta milhões de pessoas: que represas construir, que sistemas de adução, que políticas de uso racional da água.
Nós não precisamos do jornalismo somente para contar que há um novo incêndio na Amazônia. Isso pode ser feito por alguém que esteja próximo e grave, num celular, um vídeo a respeito. Porém, ele é necessário para investigar por quais razões multiplicam-se os incêndios. De que forma a Amazônia está sendo ocupada. A partir de que interesses. Com que ramificações no Parlamento, na Justiça, no sistema financeiro, nas corporações internacionais? E, mais importante, o jornalismo é essencial para reunir informações necessárias à mudança. Que políticas específicas podem coibir o desmatamento? Como oferecer a dezenas de milhões de pessoas que vivem na Amazônia ocupações dignas, relacionadas à manutenção da floresta em pé? Quais seriam estas ocupações? Como promovê-las?
São somente dois exemplos, mas que mostram que a busca destas explicações mais profundas e destas alternativas não pode ser limitada a postagens nas redes sociais. Ela exige pessoas formadas para examinar os problemas, pesquisar, entrevistar, comparar com outros exemplos em outros países. E depois, contar o que apuraram, de maneira clara e, preferivelmente, elegante e atraente. Este é o papel indispensável do jornalismo.
Nos últimos meses, a pequena equipe do Pontão examinou diversas alternativas, inclusive as que já estão em curso. Vamos apresentá-las no encontro em São Paulo. Em face da crise, há iniciativas de jornalismo independente buscando apoio no financiamento coletivo — como faz o Outras Palavras, por exemplo. Outras focam no apoio de fundações. Outras, ainda, buscam monetizar-se em plataformas como o Youtube. Tudo isso são alternativas diante da crise.
Examinaremos uma possibilidade, em especial: o financiamento público do jornalismo, por meio de mecanismos que mantenham a sua independência e ampliem a chamada diversidade midiática. Isso significa que a atividade jornalística, devido à sua importância e ao fracasso do antigo modelo, precisa ser mantida pela sociedade. Uma parte da riqueza coletiva deve ser direcionada para esta ação — assim como a sociedade destina recursos muito maiores para o SUS e a Educação Pública, por exemplo. A tributação das receitas ou dos lucros das big techs é um caminho. Há exemplos embrionários de ações nesse sentido em diversas partes do mundo.
O horizonte de financiamento público permitiria desconcentrar a produção jornalística. Beneficiaria, por exemplo, coletivos de jornalistas interessados em examinar a vida social de uma cidade, cumprindo o papel que os antigos jornais locais exerciam. Ou coletivos que se proponham a examinar temas cruciais: a construção de cidades para todos, ou os rumos da inteligência artificial, por exemplo.
Evidentemente, há riscos — e nós vamos examiná-los também. O principal deles é: como evitar o “chapa-branquismo”, a vinculação aos interesses do governo de plantão. É um desafio real e há respostas muito possíveis para isso, como os sistemas de mediação. Pense, por exemplo, que nas verbas públicas que financiam as universidades — mas o ministro da Educação, ou o governador do Estado, não têm interferência nos currículos, ou nos concursos que selecionam os professores.
Vivemos uma crise civilizatória profunda. O velho mundo parece ruir diante de nós e não temos certeza de para onde iremos. É um tempo de angústias. As saídas não cairão do céu, nem virão, provavelmente, a partir das instituições. Elas estão rendidas, entregues ao velho, incapazes de imaginar o futuro. É preciso ação consciente a partir das sociedades, em torno de múltiplos temas.
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