Morte lenta e silenciosa nos hospitais de Gaza
No sistema de saúde, retrato do genocídio. Profissionais assassinados. Hospitais bombardeados. Ausência total de remédios. Não há tempo para atender quem não está sangrando. “Usamos nossas mãos nuas e lanternas: é medieval”
Publicado 07/04/2025 às 18:45 - Atualizado 07/04/2025 às 18:52

Por Mahmoud Mushtaha, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues
Nos últimos dias, vieram à tona detalhes sobre um massacre israelense especialmente horripilante contra equipes médicas palestinas no sul de Gaza. No dia 23 de março, uma equipe do Crescente Vermelho e da Defesa Civil foi enviada em missão de resgate para auxiliar colegas que haviam sido atacados no mesmo dia na província de Rafah. Em certo momento, o contato com a equipe foi perdido, e presumiu-se que estivessem mortos.
No entanto, apenas alguns dias depois, quando uma equipe formada por pessoal do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), do Crescente Vermelho e da Defesa Civil acessou o local e exumou os restos, é que todo o horror foi descoberto: mãos e pés amarrados com correias, sinais de execução à queima-roupa e corpos mutilados até ficarem irreconhecíveis. Não eram vítimas de fogo cruzado. As tropas israelenses os executaram a sangue frio e depois usaram uma escavadeira para enterrar seus veículos esmagados sobre os cadáveres.
“Estamos os desenterrando com uniformes e luvas vestidos”, declarou em comunicado Jonathan Whittall, da OCHA, após a descoberta da vala comum em Tel Al-Sultan. “Um deles teve a roupa tirada, outro foi decapitado”, explicou Mahmoud Basal, porta-voz da Defesa Civil.
Segundo o Escritório de Mídia de Gaza, desde 7 de outubro, o exército israelense matou 1.402 profissionais de medicina, tornando esta uma das campanhas mais mortíferas contra pessoal de saúde da história moderna. Os ataques contra equipes médicas fazem parte de um ataque generalizado à infraestrutura sanitária de Gaza: 34 hospitais foram destruídos e forçados a parar de funcionar, assim como 240 centros e instalações de saúde e 142 ambulâncias que também foram alvos dos ataques. Calcula-se que os danos totais ao setor de saúde ultrapassem 3 bilhões de dólares, deixando-o totalmente incapaz de cobrir as necessidades urgentes de uma população sitiada e sob bombardeios.
No decorrer da guerra, tropas israelenses também invadiram múltiplos centros médicos e os converteram em postos militares avançados, conforme documentado por uma recente investigação da Human Rights Watch. Hospitais importantes como Al-Shifa e Nasser não só foram invadidos, mas também ocupados, colocando em risco pacientes e pessoal, e causando a morte de pacientes transferidos à força ou deixados sem tratamento.
Essas ações, combinadas com o bloqueio generalizado e a privação de ajuda essencial, refletem uma estratégia deliberada de desmantelamento do sistema de saúde de Gaza, uma tática que pode constituir crimes contra a humanidade, incluindo extermínio e atos genocidas.
Durante o recente cessar-fogo, as instalações médicas de Gaza estavam à beira do abismo, inutilizadas pelas consequências de ataques israelenses contínuos por quinze meses. Mas com a retomada da campanha militar israelense e o bloqueio total da Faixa, os hospitais palestinos declararam que o devastado sistema de saúde entrou em estado de “morte clínica”.
O doutor Mohammed Zaqout, diretor-geral de hospitais de campanha do Ministério da Saúde, alerta que a atual guerra de Israel está agravando o que chamou de “crise humanitária já insuportável”. Ressalta que o fechamento contínuo dos postos fronteiriços pelas tropas israelenses bloqueou a entrada de medicamentos, equipamentos médicos e combustível que eles necessitam desesperadamente.
As cenas dentro dos hospitais de Gaza não parecem próprias de instalações médicas. Pacientes jazem espalhados por pisos escorregadios de sangue, com ferimentos não tratados. Alguns ofegam enquanto o oxigênio se esgota; outros ficam em silêncio, esperando um alívio que nunca virá. Não é apenas um sistema de saúde sitiado, mas deliberadamente desmantelado.
“Nossos hospitais estão sobrecarregados e estamos ficando sem nada”, afirma Zaqout. “Não falamos de escassez, falamos de ausência total de tudo”.
“Usamos nossas mãos nuas e lanternas: é medieval”
O que um dia foi uma rede vital de hospitais, clínicas e vias de encaminhamento em Gaza foi reduzido a uma paisagem arrasada de tendas, abarrotados refúgios e pavilhões improvisados. Muitas vezes faltam eletricidade, água potável e suprimentos médicos básicos. Os médicos restantes, sitiados e atacados junto a seus pacientes, trabalham muito além de sua capacidade humana e operam com pouco mais que gazes e determinação.
Ainda assim, as equipes médicas seguem fazendo tudo ao seu alcance para ajudar seus pacientes. “Não podemos nos dar ao luxo de descansar”, disse à revista +972 o doutor Ahmed Khalil (pseudônimo), médico que passou os últimos 540 dias mudando-se de um hospital bombardeado a outro. “Tratamos pacientes no chão, sem eletricidade, sem anestesia. Usamos nossas mãos nuas e lanternas: é medieval”.

Em março de 2024, tropas israelenses cercaram e sitiaram pela segunda vez o hospital Al-Shifa na cidade de Gaza – o maior centro médico do enclave – cortando o acesso a alimentos, combustível e suprimentos médicos. Preso lá dentro por dias, Khalil viu o local passar de um movimentado centro de atendimento a um alvo militar. “Estávamos cercados por tanques, com o zumbido de drones sobre nós, sem eletricidade nem comida. Operávamos com a luz dos celulares”, lembra.
“Quando as máquinas de oxigênio começaram a falhar e os monitores cardíacos se apagaram, soube que não estávamos mais em um hospital”, disse à revista +972 Amna, enfermeira de 32 anos que trabalha no Al-Shifa há cerca de dez anos. “Estávamos dentro de uma vala comum em formação”.
Amna já havia vivido guerras e cercos anteriores, mas o que aconteceu naquele mês, disse, não se parecia com nada antes visto. “Havia muitos”, recorda. “Tivemos que tomar decisões impossíveis: quem tratar primeiro, quem tentar salvar e quem deixar partir. Muitos não morreram porque seus ferimentos fossem graves demais, mas porque não havia máquinas, espaço ou mãos para ajudar”.
Quando as tropas israelenses invadiram o Al-Shifa, Khalil – junto com pacientes, pessoal e civis deslocados – foi forçado a evacuar sob fogo. Seu caminho para o sul o levou por bairros arrasados e abrigos superlotados até chegar ao Hospital Nasser em Khan Younis, um dos últimos centros médicos semifuncionais de Gaza. Mas mesmo lá, as condições eram de pesadelo.
“As pessoas sangravam nos corredores”, relata. “Não havia morfina. Nem antibióticos. Às vezes, nem mesmo gazes”. As equipes médicas não conseguiram salvar muitos feridos que aguardavam para ser admitidos em UTIs. “Vi pacientes – crianças, idosos – morrerem enquanto esperavam na fila por um socorro que nunca chegou”.
Uma lembrança ainda assombra o Dr. Khalil: um jovem de cerca de vinte anos com ferimentos de estilhaços no abdômen, carregado por familiares em uma tábua de madeira. “Não tínhamos scanners, nem sala de cirurgia, nem analgésicos. Ele morreu em menos de uma hora, não porque não soubéssemos como salvá-lo, mas porque não tínhamos nada para salvá-lo”.
As condições enfrentadas por Khalil e seus colegas seriam inimagináveis em qualquer outro contexto. “Operamos após 48 horas sem dormir”, disse. “Não comemos: não há comida. Às vezes trabalhamos turnos inteiros sem uma gota de água limpa. Trabalhamos enquanto nossas próprias famílias estão deslocadas ou enterradas. Às vezes tratamos pacientes sabendo que não há chance, mas tentamos mesmo assim. Porque temos que tentar”.
Bombas caem próximas durante cirurgias; o zumbido de drones e os gritos dos feridos ecoam pelos corredores escuros. “Não apenas tratamos traumas, nós os vivemos”, acrescenta Khalil. “Somos feridos tratando feridos. Mas nos recusamos a deixar nosso povo morrer sozinho”.
“Ninguém tinha tempo para quem não estivesse sangrando”
Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, desde 7 de outubro mais de 50.000 palestinos morreram. No entanto, esses números não refletem toda a magnitude da crise: muitas mortes poderiam ter sido evitadas se o sistema de saúde de Gaza não tivesse sido desmantelado gradualmente.
Em 2 de março de 2025, Haithm Hasan Hajaj, engenheiro civil de 41 anos e pai de três filhos, morreu no norte de Gaza após meses sofrendo de uma doença tratável: uma das muitas mortes silenciosas em meio a um sistema de saúde destruído, onde necessidades médicas se tornam pedidos impossíveis.
Sua esposa, Mona, ainda não consegue aceitar. “Ele não morreu em um ataque aéreo. Morreu lentamente, em silêncio, porque ninguém podia ajudá-lo”, disse à revista +972 esta mulher de 37 anos, segurando as lágrimas. “Procuramos ajuda por nove meses. Imploramos por um diagnóstico, remédios, qualquer coisa. Mas não havia nada”.
Os sintomas de Hajaj começaram em julho de 2024: dor estomacal repentina, fadiga e anemia inexplicável. “No início, pensamos que era o estresse da guerra e da fome”, disse Mona. “Mas após algumas semanas, ele mal conseguia ficar em pé. Fomos de um lugar a outro, mas todos os hospitais estavam sobrecarregados. Nos diziam: ‘Só tratamos feridos de guerra’. Ninguém tinha tempo para quem não estivesse sangrando”.
Presos no norte sitiado, não tinham acesso a especialistas ou laboratórios funcionando. “Um dia fomos ao Hospital Batista”, explicou Mona. “Esperamos das seis da manhã às dez da noite, dezesseis horas na fila. Mas fomos recusados. O laboratório não tinha materiais. Nem mesmo um exame de sangue podiam fazer”.
Com o passar dos meses, o estado de Hajaj piorou. Sua pele encheu-se de erupções dolorosas. Perdeu trinta quilos. “Em janeiro, estava pele e osso. Meus filhos tinham medo de tocá-lo, não por medo dele, mas porque viam que doía”.
Finalmente, no sétimo mês de seu declínio, souberam que ele era celíaco, uma doença desencadeada pelo glúten. A solução deveria ter sido simples: eliminar o trigo de sua dieta. Mas em Gaza não havia alternativa. “Tudo o que tínhamos era trigo, e mesmo isso faltava”, disse Mona. “Nem sabíamos. Por meses, ele comeu o que o matava lentamente só para sobreviver”.
Dois meses depois, Hajaj morreu, não da doença celíaca em si, mas pela ausência de tudo o que Gaza já não podia fornecer: diagnóstico, tratamento, segurança alimentar e dignidade. Seus filhos, de nove, onze e treze anos, agora fazem perguntas que Mona não sabe como responder. “Não param de perguntar quando o Baba voltará”, explica. “O caçula me disse: ‘Agora podemos dividir nosso pão com ele. Talvez ele se sinta melhor’. Como se explica a uma criança que seu pai morreu porque nem mesmo pão que não o machucasse conseguimos encontrar?”
Antes da guerra, Hajaj estava prestes a concluir seu doutorado. “Faltavam apenas alguns meses”, diz Mona. “Ele tinha sonhos. Queria ensinar. Queria construir algo para este país. Tínhamos comprado uma casa em Tel Al-Hawa um ano antes da guerra. Em novembro passado, soubemos que fora destruída num ataque aéreo. Mas Haithm não reclamou. Só disse: ‘Vamos reconstruí-la, para as crianças’. Ela pausou e engasgou. ‘Mas agora ele se foi. E não sei como reconstruir sem ele. Como vou viver sem ele?’”
Seu filho de treze anos, Hasan, tenta ocupar o lugar do pai. “Hasan quer ser o homem da casa, ajudar os irmãos mais novos”, diz Mona. “Ontem, voltou da rua chorando, soluçando, dizendo: ‘Queria ter morrido com o Baba. Não quero viver assim’. Ele foi buscar comida para nós, mas não conseguiu. É só uma criança. Tem pavor de andar sozinho na rua com as bombas caindo. Precisa do pai, todos precisamos. Não sei como fazê-lo se sentir seguro novamente”.
“Não é apenas sobre medicina. É sobre dignidade”
A Nabil Zafer, de 64 anos (tio do autor), a guerra não tirou sua vida, mas sim sua visão, independência e seu papel de sustento de uma família que já lutava para sobreviver.
Antes da guerra, Zafer recebia tratamento regular para um glaucoma grave. Duas vezes por semana ia ao hospital para injeções nos olhos, controlando a pressão e preservando o pouco de visão que lhe restava. Também planejava viajar ao Egito em fevereiro de 2024 para uma cirurgia de implante de válvulas de drenagem nos olhos – um procedimento relativamente simples que poderia ter salvado sua visão.
No entanto, no final de 2023, com a intensificação do ataque israelense, o acesso às injeções oftalmológicas em Gaza tornou-se quase impossível. E sem um sistema de encaminhamento funcional, Zafer não pôde sair: um dos mais de 10.000 gazatenses cujos pedidos de evacuação médica jamais foram aprovados no primeiro ano de guerra. “Os médicos nos disseram: ‘Se não operá-lo logo, ele perderá a visão’, e então já era tarde”, contou sua esposa, Hanan, à revista +972.
“No início, ele começou a ver sombras”, continuou a mulher de 58 anos. “Depois, tudo ficou embaçado. Dia após dia, víamos sua visão se esvair. Em novembro passado, estava completamente cego”.
A perda da visão mudou todos os aspectos da vida de Zafer e afetou profundamente sua família. Ele era o único sustento de um lar já marcado por dificuldades: dois filhos, Hani e Sarah, ambos com deficiência; uma filha viúva; e a própria Hanan.
“Ele fazia tudo”, diz. “Consertava coisas em casa, ia buscar comida e ajudava os filhos. Agora, nem mesmo pode ver seus rostos”.
Os dias de Zafer agora são cheios de silêncio e medo. “Ele sempre pergunta: ‘E se tivermos que evacuar de novo? Quem me ajudará? Quem me guiará?’”, diz Hanan. “Ele me fala: ‘Deixe-me para trás, mas não abandone Hani e Sarah. Garanta que estejam seguros. É tudo o que quero’”.
Às vezes, ele se senta junto à janela e pede que ela descreva a rua: as pessoas, o céu, as árvores. “Ele quer lembrar como o mundo é”, diz com voz trêmula. “Mas mais que isso, sente falta de ver nossos filhos. Não para de perguntar: ‘Quando a fronteira vai abrir? Talvez eu ainda possa ir?’”. Hanan continua: “No fundo, ambos sabemos que não há nada do outro lado. Não é apenas sobre medicina. É sobre dignidade, e ela nos está sendo arrancada dia após dia”.
“Tudo o que desejo é sair de Gaza e receber tratamento adequado antes que seja tarde demais

Ata Ahmed (pseudônimo), de 19 anos, há seis meses está deitado de costas em uma barraca, paralisado da cintura para baixo. Sua vida mudou em um instante em 12 de setembro de 2024, quando um ataque aéreo israelense atingiu uma casa vizinha no bairro de Shuja’iyya, na cidade de Gaza. Estilhaços da explosão perfuraram sua coluna, deixando sequelas permanentes e uma longa lista de complicações. Desde então, passou por várias cirurgias, mas os médicos dizem que fizeram tudo o que podiam.
“Cada dia sinto que meu estado piora”, conta Ata à revista +972. “Faz meses que solicitei encaminhamento para tratamento no exterior; não posso esperar muito mais. Tudo o que desejo é sair de Gaza e receber tratamento adequado antes que seja tarde demais. O cessar-fogo me deu esperança, mas agora sinto como se tudo estivesse fechado”.
Ata é apenas um dos quase 35.000 palestinos feridos e doentes crônicos de Gaza atualmente presos em listas de evacuação médica. Com hospitais paralisados por bombardeios repetidos, escassez grave e colapso total da infraestrutura médica, a milhares são negados acesso a cuidados que poderiam salvar suas vidas. Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, ao menos 40% dos que solicitaram tratamento no exterior desde o início da guerra morreram esperando: vítimas de fronteiras fechadas, de um sistema de encaminhamento quebrado e de um sistema de saúde que não funciona mais.
No Complexo Médico Nasser em Khan Younis, um dos últimos centros parcialmente operacionais no sul de Gaza, Umm Saeed Ghabaeen, de 81 anos, recosta-se em uma cadeira de plástico, visivelmente exausta, enquanto inicia outra sessão de diálise. Há três anos ela luta contra insuficiência renal e depende de diálise rotineira para sobreviver. Mas desde o início da guerra, seu estado piorou muito. Deslocamentos forçados, escassez grave de medicamentos e até falta de água potável colocaram sua vida em risco constante.
“Desde que fugimos de casa, tudo mudou”, diz. “As sessões são mais curtas. Há menos máquinas. O atendimento é pior. E cada dia me sinto mais cansada”. Com poucas unidades de diálise ainda funcionando no sul, os hospitais foram forçados a reduzir sessões semanais e encurtar sua duração – um risco perigoso, especialmente para idosos. Médicos alertam que isso pode causar uma onda de mortes evitáveis. “Estão nos levando ao limite”, diz Ghabaeen. “Alguns dias, pergunto-me se chegarei viva à próxima sessão”
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