Cinema: A esfinge Brasil

Mário de Andrade, o turista aprendiz, de Murilo Salles, é um belo ensaio sobre essa interrogação. Baseado em uma incursão na Amazônia, em 1927, constrói cenas que condensam problemas, dúvidas e tormentos do modernista diante da grandeza e da complexidade do país

Cena do filme ‘Mário de Andrade: Turista Aprendiz’, de Murilo Salles – Divulgação
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Muito antes de Renato Russo nascer, a pergunta acima inquietava os modernistas brasileiros, em especial o poeta, romancista, musicólogo e ensaísta Mário de Andrade, o pensador mais lúcido e profundo do movimento. Mário de Andrade, o turista aprendiz, de Murilo Salles, é um belo ensaio cinematográfico sobre essa interrogação.

O filme, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira, acompanha a viagem que Mário fez pela Amazônia em 1927, em companhia de sua amiga e mecenas Olivia Guedes Penteado. Os incidentes e descobertas da jornada seriam descritos no livro O turista aprendiz, publicado postumamente. Nas telas, o escritor é interpretado por Rodrigo Mercadante, e Olívia por Lorena da Silva. Ótimas escolhas.

Chave alegórica

Que não se espere um relato realista da excursão. O filme de Murilo Salles se desenvolve com absoluta liberdade estética numa chave predominantemente alegórica, buscando sempre a melhor expressão audiovisual para as ideias, dúvidas e tormentos de Mário diante da grandeza e da complexidade do país.

Diferentemente da antropofagia festiva de Oswald, o relacionamento de Mário de Andrade com o Brasil sempre foi mais complexo e doloroso, até mesmo trágico, composto muito mais de dúvidas e interrogações do que de certezas. Nisso reside sua fecundidade perene.

Murilo Salles procurou dar conta dessa perplexidade construindo cenas quase autônomas, cada uma delas condensando um problema: a relação com os indígenas e sua cultura; a exploração colonial atualizada no imperialismo ianque; a exuberância indomável da natureza; a condição subalterna dos pobres (pescadores, seringueiros, carregadores, garçons); a dependência dos artistas aos donos do dinheiro; a influência sufocante da cultura europeia; os tormentos do poeta com sua própria sexualidade.

O tema cada vez mais atual da espoliação das riquezas naturais pelo grande capital vem à tona em referências muito concretas, ainda que em tom jocoso: o mogno amazônico usado para fabricar eletrolas nos EUA, o couro de jacaré que vira sapatos finos em Paris.

Invenção contínua

A encenação é sempre surpreendente. Pode ser um baile de máscaras, um recital de piano, o discurso de um prefeito, uma sessão de cinema, uma conversa no convés do barco que singra o Amazonas, a imitação de um quadro de Cézanne. Nesta última cena, Dona Olivia, posando nua para um pintor, chega a dizer que está naquela posição desconfortável “por uma necessidade crítica do filme”.

Seria o caso de falar em “ruptura da quarta parede”, mas o fato é que o filme rompe todas as paredes, constrói-se num lugar mental, conceitual, ora contra um fundo infinito, ora numa selva sem contornos, no fundo do rio ou no espaço virtual das imagens de computador. As relações entre som (música, locução, diálogo, ruído) e imagem são frequentemente de atrito ou descompasso, produzindo novas ideias ou novas interrogações.

Nessa invenção contínua, que remete às vezes ao cinema de Godard, às vezes ao de Bressane, alguns momentos são particularmente inspirados. Cito dois. Quando Mário, na locução em off, diz que a literatura não dá conta do “caráter sublime e indizível’ da natureza amazônica e que “talvez fosse necessário um tipo de experimentação de imersão cinematográfica”, passamos a ver imagens do clássico mudo Um homem com uma câmera, de Dziga Vertov, ao som da trilha musical de Georges Delerue para O desprezo, de Godard. Essa mistura anacrônica e improvável é um instante mágico, expressando como poucos o “sublime e indizível” do cinema.

Esfinge Brasil

O outro momento inefável do filme é seu plano final, aparentemente descolado de todo o resto: o rosto em close de um homem negro, no claro-escuro, sobre fundo infinito também negro, encarando a câmera com olhar inquisitivo, duro, até que uma lágrima solitária escorre de um de seus olhos. Essa imagem fortíssima pode ser vista como uma esfinge que nos desafia a encarar nossa história de belezas e brutalidades indizíveis. A esfinge Brasil, que tanto torturou o frágil gigante Mário de Andrade.

Uma curiosidade à margem: no filme, a voz do etnólogo e explorador alemão Theodor Koch-Grünberg, cujos estudos sobre o mito de Macunaíma inspiraram o livro mais célebre de Mário, é do tradutor e professor Berthold Zilly, que está finalizando nada menos que a tradução para o alemão de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

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