Caso Mahmoud Khalil: Trump quer seu Vietnã?
Ameaça de deportação do ativista, que aderiu aos atos pró-Palestina, expõe nova onda repressora – que agora caça imigrantes e opositores ao genocídio de Israel. Assim como em 1968, a resistência cresce. Naquela guerra, EUA perderam no “front interno”
Publicado 20/03/2025 às 17:34 - Atualizado 20/03/2025 às 17:35

Por Bruno Huberman, no blog da Boitempo
Donald Trump assumiu a presidência dos EUA, há aproximadamente dois meses, com uma nova abordagem para a questão Palestina/Israel. Implementou um cessar-fogo antes mesmo da posse e prometeu uma limpeza étnica completa dos palestinos da Faixa de Gaza para a sua reconstrução como um resort de luxo. Na “Trump Gaza” dos seus sonhos, o dinheiro cai do céu na cabeça de Elon Musk e Trump partilha um drink com Benjamin Netanyahu à beira de uma piscina, como demonstra o seu vídeo promocional. O governo de Israel chegou a abrir um gabinete para planejar a expulsão dos palestinos.
Contudo, o plano não deu certo. Jordânia e Egito, apresentados como os destinos dos palestinos, rejeitaram receber os refugiados mesmo sob pressão estadunidense e promessas de alívio da dívida externa e novos investimentos estrangeiros. Os líderes árabes sabem que até podem ignorar a Questão Palestina, mas colaborar com Israel para facilitar a limpeza étnica é uma linha vermelha que não ousaram cruzar. Diante da recusa, Trump e Netanyahu consultaram países africanos envolvidos em guerras civis — Sudão, além de Somália e Somalilândia. Também sem sucesso.
Em paralelo, Trump abriu negociações diretas com representantes do Hamas, emulando o modelo que tem usado na Ucrânia, onde dialoga diretamente com o presidente russo Vladimir Putin. Essa foi a primeira vez que os EUA negociaram com representantes do povo palestino sem a participação de israelenses. As ações de Trump demonstram como Ucrânia e Israel não passam de joguetes estadunidenses no enfrentamento à Rússia, na Europa Oriental, e ao Eixo da Resistência, no Oriente Médio. Ambas as regiões possuem recursos naturais, rotas comerciais e infraestruturas energéticas que são estratégicas na disputa entre EUA e China.
A retomada do genocídio nesta terça-feira, 18 de março de 2025, com o bombardeio indiscriminado de Israel na Faixa de Gaza — ação que deixou pelo menos 400 mortos —, revela como o uso da força ainda é o principal recurso para a imposição dos interesses imperialistas no Oriente Médio. Diferentemente do que ocorre no teatro de guerra do Leste Europeu, onde a força econômica e militar russa serve de dissuasão, no campo de batalha palestino não há potência opositora capaz de conter a aliança EUA-Israel. Irã, China e Rússia, embora apoiem a causa palestina, não demonstram intenção de ir até as últimas consequências em sua defesa.
Israel retomou a agressão pois, nas últimas semanas, o acordo de cessar-fogo com o Hamas chegou a um impasse: Israel almejava estender indefinidamente a primeira fase do acordo, que envolvia a troca de reféns e ajuda humanitária para Gaza. Os palestinos, porém, recusaram a proposta, pois almejavam partir para a fase seguinte, tal qual previsto originalmente, em que as trocas dos últimos reféns viriam com o planejamento da reconstrução de Gaza.
No entanto, o próprio Netanyahu não pode avançar nas negociações com o Hamas, uma vez que a sua coalizão governamental seria desfeita com o gesto. O ministro Bezalel Smotrich, da extrema direita do Sionismo Religioso, declarou que sairia do governo caso houvesse a reconstrução de Gaza. O interesse do seu grupo é a limpeza étnica completa de Gaza para o assentamento de colonos judeus. Além disso, a demonstração de força dos grupos guerrilheiros palestinos nas cerimônias de troca de reféns irritou profundamente os israelenses. Logo, para coagir o Hamas a aceitar a proposta, Israel interrompeu a entrada de ajuda externa.
Com o silêncio internacional frente a mais esse crime de guerra israelense, o grupo houthi Ansar Allah, do Iêmen, que compõe o Eixo da Resistência ao lado de Irã e Hamas, anunciou a retomada da agressão às embarcações israelenses no Mar Vermelho enquanto a ajuda humanitária não fosse restabelecida. No sábado 15 de março, EUA e Israel bombardearam a capital iemenita Sanaa e mataram aproximadamente trinta pessoas, sem conseguir interromper a ação dos houthis. O bombardeio israelense contra Gaza foi a continuação lógica da racionalidade imperialista diante de um impasse político com um povo considerado subalterno.
Contudo, esse ataque significa o prolongamento de uma guerra que já se revelou insustentável do ponto de vista das forças imperialistas. O cessar-fogo foi um desejo não apenas dos palestinos, mas também de israelenses, que viram as suas Forças Armadas desmoralizadas diante da incapacidade de destruir o Hamas e recrutar novos soldados. A pressão interna pela libertação dos reféns, bem como a externa, pelo fim do genocídio, isolaram ainda mais o governo israelense, que teve que ceder diante do novo plano de Trump.
Nos EUA, o Partido Democrata perdeu o último pleito presidencial, entre outras razões, por causa do apoio incondicional ao genocídio perpetrado pelos israelenses em Gaza. A pacificação dos conflitos no Oriente Médio e na Europa são fundamentais para Trump controlar a inflação global em meio às guerras tarifárias que promove para reindustrializar o seu país. Por essas razões (e não por pacifismo), Trump buscou interromper o conflito. Mas a retomada do genocídio em Gaza, junto da escalada da perseguição interna aos estadunidenses solidários à causa palestina, remete a um antigo revés do imperialismo.
O caso Mahmoud Khalil: um novo Vietnã?
A Guerra Fria foi caracterizada por conflitos quentes no Terceiro Mundo, onde o imperialismo patrocinava forças contrarrevolucionárias para conter movimentos de libertação nacional. Este foi o caso do apoio a Israel no enfrentamento ao nacionalismo árabe; dos diversos golpes militares, como houve em Gana, em 1966; e da Guerra do Vietnã (1955-1975). Os EUA apoiaram militar e politicamente o Vietnã do Sul na divisão do país, em 1954, no enfrentamento ao Viet Minh (Liga de Independência do Vietnã), grupo liderado por Ho Chi Minh e que formou o Vietnã do Norte. Os norte-vietnamitas almejavam completar a libertação nacional iniciada na luta contra o colonialismo francês, e vislumbraram no comunismo uma forma de obter a dignidade desejada para o povo colonizado. Não por acaso, os norte-vietnamitas foram fundamentais aliados dos palestinos e auxiliaram a formação da guerrilha palestina nos anos 1960.
Mas os EUA não tinham um objetivo militar claro no conflito e promoveram uma guerra de extermínio para destruir a resistência Viet Cong (VC) — o grupo de guerrilheiros dissidentes do Sul que lutavam com o apoio do Norte, da China e da URSS. Segundo o atual governo do Vietnã, foram mortos 1,1 milhão de combatentes do VC e do Exército Popular do Vietnã do Norte (PAVN), e 2 milhões de civis em ambos os lados nos vinte anos de conflito.
Apenas o massacre de My Lai, em 16 de março de 1968, por soldados estadunidenses deixou cerca de 500 civis mortos. O massacre foi uma resposta à Ofensiva Tet, realizada em janeiro de 1968 por tropas do VC e do PAVN em mais de cem cidades do Sul. Embora fracassada militarmente, a operação foi politicamente bem-sucedida em demonstrar a força da resistência do Vietnã do Norte depois dos EUA enviar milhares de soldados para o front. A Ofensiva Tet foi o prenúncio da derrota estadunidense.

A natureza imperialista do envolvimento dos EUA no conflito, particularmente depois que o massacre de My Lai foi revelado pelo jornalista Seymour Hersh, em novembro de 1969, ficou tão evidente que boa parte da sociedade estadunidense, em ebulição por movimentos antirracistas, feministas e da classe trabalhadora por justiça social, se uniu num front contra a Guerra do Vietnã.
Martin Luther King, Malcom X e os Panteras Negras buscavam aproximar a luta antirracista dentro dos EUA da luta anticolonial do Terceiro Mundo, incluindo os movimentos de libertação nacional do Vietnã e da Palestina. Os guerrilheiros vietcongues e palestinos se tornaram símbolos populares das massas estadunidenses que reivindicavam justiça e liberdade. Foram realizadas passeatas, acampamentos universitários e diversas outras formas de mobilização social que fizeram os EUA perder o “front interno” da guerra, isto é, a opinião pública. A falta de apoio popular foi decisiva para a saída dos EUA do conflito, em janeiro de 1973. Em 1975, a tomada de Saigon pelo PAVN uniu o Vietnã.
Quando estudantes começaram a ocupar universidades dos EUA e do mundo em abril de 2024 contra o genocídio em Gaza, muitos apontaram para as semelhanças com o ocorrido durante a Guerra do Vietnã. Assim como no passado, as mobilizações em solidariedade aos palestinos se juntaram a diversas lutas por justiça social no país, como o movimento Black Lives Matter. O ataque palestino de 7 de outubro foi interpretado por esses estudantes como uma ação de resistência anticolonial, e não como um ato antissemita. Acampamentos como o da Universidade de Columbia, em Nova York, exigiram o desinvestimento da universidade não somente em ativos israelenses, mas também daqueles vinculados à indústria bélica e à mudança climática.
O retorno de Trump à presidência aprofundou ainda mais as semelhanças entre Gaza e o Vietnã. Durante a Guerra Fria, os EUA também promoveram uma ofensiva interna contra a “ameaça comunista” através da repressão de movimentos políticos alinhados com os ideais socialistas e terceiro-mundistas. Os ativistas pela paz no Vietnã foram duramente reprimidos, criando um clima de caça às bruxas característico do macarthismo — a patrulha anticomunista feita pelo senador John Macarty entre 1950 e 1957, que fomentou uma prática de acusar qualquer um que fizesse críticas ao governo de subversão ou de traição.
O filme Os 7 de Chicago (2020) narra o julgamento de sete integrantes de uma manifestação contra a Guerra do Vietnã ocorrida durante a Convenção do Partido Democrata em Chicago, em 1968. Bobby Seale, um dos líderes dos Panteras Negras, foi amarrado e amordaçado durante o julgamento, mas acabou tendo o seu caso anulado. O governo do democrata Lyndon Johnson buscou condenar os manifestantes por conspiração para dissuadir o movimento contrário à guerra depois da desmoralização provocada pela Ofensiva Tet e o massacre de My Lai. Todas as condenações dos manifestantes, contudo, foram revertidas depois de apelação.

Desde a posse de Trump, os acampamentos estudantis contra o genocídio israelense em Gaza passaram a ser duramente reprimidos, a começar pela Universidade de Columbia. O governo estadunidense cortou US$400 milhões em financiamento da instituição, que, por sua vez, expulsou e revogou o diploma de diversos estudantes envolvidos no acampamento.
O escalonamento da opressão resultou na prisão do estudante palestino Mohammed Khalil, que participou ativamente do acampamento, em 10 de março. Khalil foi abduzido pela ICE (Immigration and Customs Enforcement) dentro do seu dormitório na universidade e está encarcerado na Louisiana, que possui um tribunal mais conservador do que Nova York, sob a ameaça de deportação. Diferente dos demais imigrantes que vêm sendo deportados pelos EUA há anos, Khalil possui residência permanente — o green card. Assim, os EUA desejam deportá-lo sob a acusação de traição nacional pelo seu suposto apoio ao “terrorismo”. O caso de Khalil pode servir de jurisprudência para a revogação do green card de qualquer um dos treze milhões de não cidadãos que residem legalmente no país de forma permanente.
A situação de perseguição na Universidade de Columbia fez o professor de Direito e especialista em liberdade de expressão, Stuart Karle, recomendar aos estudantes que não são cidadãos estadunidenses que apaguem de suas redes sociais qualquer menção à política do Oriente Médio. Também a reitora da faculdade de Jornalismo, Jelani Cobb, teria afirmado durante a mesma reunião: “Ninguém pode protegê-lo. Vivemos tempos estranhos”. Nos últimos dias, ocorreram diversas passeatas exigindo a libertação de Khalil, incluindo a manifestação de judeus antissionistas dentro de um edifício de Trump em Nova York.
Assim como o julgamento dos sete de Chicago, o caso de Khalil é um balão de ensaio para uma ofensiva do governo contra aqueles que têm posições divergentes às suas políticas, uma característica de todo Estado autoritário. Se no passado a ameaça a ser eliminada era a comunista, pressentida na solidariedade com o Vietnã, hoje trata-se da ameaça imigrante, islâmica e que apoia a causa palestina. Isto é, o autoritarismo e o racismo continuam a legitimar os atos arbitrários de violência do imperialismo dos EUA, tanto no front interno como no externo.
Bruno Huberman é professor de relações internacionais da PUC-SP, onde é vice-líder do Grupo de Estudos de Conflitos Internacionais. Integrante do INCT/Ineu, atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado pelo Programa San Tiago Dantas e é autor de Colonização neoliberal de Jerusalém (Educ, 2023). Pela Boitempo, publicou artigo na edição 43 da Margem Esquerda (2024).