A China aposta no Pós-capitalismo
Termina sessão anual do Congresso Nacional do Povo. Diante da guerra comercial de Trump e de seus impasses internos, país amplia investimento público. Não quer “ajuste fiscal”. Prefere melhorar condições de vida, elevar salários e consumo interno e tornar-se líder tecnológico global
Publicado 11/03/2025 às 19:50 - Atualizado 12/03/2025 às 12:05

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No plano estético, a reunião do Congresso Nacional do Povo chinês, em Pequim, é o extremo oposto aos macho-shows estrelados pelo governo Trump. Ninguém faz saudação nazista, empina motosserra ou humilha aliados em público. Os 2.997 delegados parecem ver-se como parte de um coletivo em que não cabem manifestações egoicas. Reúnem-se ao longo de dez dias, no Grande Salão do Povo ou em sessões temáticas. Tomam notas dos informes que recebem – e que precisarão transmitir e debater, em suas regiões. Sorriem, vestidos em trajes típicos, para fotos singelas na Praça da Paz Celestial. Mas o contraste simbólico entre os dois países é pequeno, se comparado ao político.

Em Washington, produz-se uma tentativa radical de redução do Estado e do Público. Dois milhões de servidores são incluídos em programas de demissão “voluntária”. Liquidam-se agências como a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). Fala-se em fechar o ministério (“departamento”) de Educação. Esvaziam-se centros de pesquisa como os Institutos Nacionais de Saúde, núcleos de excelência onde se desenvolveram as vacinas contra a covid. Acredita-se na ideologia do empreendimento privado. A China acaba de ampliar a aposta no caminho oposto.
O Congresso Nacional do Povo (CNP), cuja sessão anual de dez dias foi encerrada nesta terça-feira (11/3), reafirmou a ênfase nos serviços públicos avançados (Saúde e Educação em especial) como base de uma nova etapa do desenvolvimento urbano. Manteve o investimento gigantesco em transição energética, cidades ecológicas e obras de infraestrutura como metrôs e trens de alta velocidade. Autorizou as províncias e municípios (“condados”) a enfrentar a crise imobiliária emitindo bônus e comprando ou construindo apartamentos – para em seguida vendê-los em condições favoráveis à população. Elevou os salários dos servidores públicos. Aprovou estímulos ao consumo popular, entre eles subsídios à troca de aparelhos domésticos obsoletos. Ampliou ainda mais os recursos destinados a pesquisa tecnológica de ponta.

As decisões chinesas buscam enfrentar problemas reais, derivados tanto do novo cenário internacional pós-Trump quanto dos desajustes provocados por anos de crescimento econômico vertiginoso. A sessão do CNP que acaba de terminar coincide com o último ano do 14º Plano Quinquenal e do Plano Made in China 2025, iniciado há uma década. Nesse período, o PIB chinês ultrapassou o norte-americano – quando considerado o poder de compra real das moedas (veja gráfico abaixo). O país apostou em alta tecnologia e no que chama de “novas forças produtivas”. Dominou setores como a produção de painéis solares, veículos elétricos e destacou-se em áreas como inteligência artificial e biotecnologia.

Porém, para responder a uma urbanização intensíssima, a China viveu uma febre imobiliária. Entre 2020-21, o país produziu mais cimento que os Estados Unidos em todo o século passado. A economia havia se aberto, desde os anos 1970, aos capitais privados – e o Estado apostou neles para atender à demanda por novos imóveis. Foi um grave erro, considera o economista marxista Michael Roberts. Os incorporadores privados seguiram as lógicas de mercado e o esquema de pirâmide. Para concluir e entregar apartamentos já vendidos era preciso vender outros, ainda na planta. Por volta de 2020, a bolha estourou, com a quebra de uma grande empresa, a Everglande, e reações em dominó. O problema ainda não foi sanado e produziu tremores secundários. O valor dos imóveis caiu, reduzindo o patrimônio das famílias e levando-as a poupar demais. Além disso, parte das unidades vendidas ainda não foi entregue, o que amplia a desconfiança e leva a população a consumir menos do que poderia.
A poderosa indústria da China superou este impasse até agora porque seus produtos ganharam o mundo. Em 2024, o país alcançou superávit comercial de 1 trilhão de dólares, o maior já registrado por qualquer nação, em todos os tempos. Mas as novas tarifas impostas por Trump preocupam. Os produtos chineses, calcula a revista Economist, já pagam em média 34% de tarifas aduaneiras para entrar nos EUA. No ano passado, a União Europeia impôs suas próprias sobretaxas. A diplomacia de Pequim tem agido para evitar ou dissuadir estas medidas. Certamente tentará tirar proveito das recentes fraturas na relação entre Trump e seus aliados europeus.
Mas a sessão recém-concluída do Congresso Nacional do Povo sugere que a China aposta acima de tudo em suas próprias forças – e na capacidade de inverter, por meio de decisões políticas, tendências desfavoráveis. Para fazê-lo, o Estado não hesita em usar seu poder de criar dinheiro. De onde virão os recursos necessários para elevar salários, aprimorar serviços públicos, investir em novas tecnologias, adquirir imóveis do setor privado e destiná-los em massa a moradias, ampliar a vasta rede de transportes públicos urbanos e nacionais, avançar na transição energética?
O gráfico a seguir ajuda a entender. A China não se curva ao dogma segundo o qual os Estados apenas podem gastar o que arrecadam. O país convive, há décadas, com déficits fiscais. O CNP decidiu que, para enfrentar os novos desafios, ele subirá, este ano, de 3% para 4% do PIB – o que está expresso na barra cinza do gráfico. Mas não é só. Os bônus que as províncias e municípios foram autorizados a emitir equivalem a mais 2,5% do PIB. E o próprio Estado central, além do orçamento, emitirá “bônus especiais” equivalentes a 250 bilhões de dólares para, entre outras ações, engrossar os fundos destinados ao desenvolvimento científico e tecnológico e recapitalizar os bancos públicos. Ao todo, o déficit fiscal chinês ultrapassará os 8% do PIB. Não há o menor sinal de que isso “desorganize as finanças públicas” ou “alimente a inflação” (que segue abaixo de 1% ao ano).

Michael Roberts, o economista que criticou o desenvolvimento do setor imobiliário por meio de agentes privados, vê nas decisões recentes da China a prevalência de lógicas pós-capitalistas. Diz ele, num comentário sobre a sessão recente do CNP: “Embora a China tenha um vasto setor capitalista, baseado principalmente em bens de consumo e no setor de serviços, ela conta também com um setor estatal maior que em qualquer grande economia, abrangendo as finanças e setores-chave da indústria. E com um plano nacional que orienta e dirige tanto as empresas estatais quanto as privadas sobre onde investir e o quê produzir. Qualquer queda no setor privado é compensada com mais investimentos e produção no setor estatal. As decisões não são tomadas com base nos lucros, mas nos objetivos sociais”.
O Congresso Nacional do Povo chinês é, em essência, um órgão referendador. Na China, as decisões cruciais são formuladas, debatidas e decididas pelo Partido Comunista. É ele quem apresenta as decisões que serão votadas nas sessões anuais do CNP. Trata-se de uma tradição política totalmente distinta da brasileira e intransponível para nossa realidade. Mas vale observar com atenção o espírito público e a capacidade de planejamento e decisão política suscitadas do sistema chinês. Pode ser inspiração saudável, em tempos tão carregados pela barbárie trumpista.