Os Racionais MC’s e Milton Sales, seu elo perdido
Ele fundou o grupo e plantou a semente de seu projeto político e cultural. “Griô das quebradas”, intuiu o potencial do hip-hop para dar sentido à revolta da juventude periférica. Neste mês em que os Racionais receberam o honoris causa da Unicamp, vale resgatar seu legado
Publicado 10/03/2025 às 18:08

A conquista do Honoris Causa
Um dos maiores grupos de rap do mundo e o mais relevante do Brasil, os Racionais MC, receberam o título de Doutor Honoris Causa pela Unicamp em 6 de março de 2025. Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay foram reconhecidos pelo Conselho Universitário em novembro de 2024 e homenageados oficialmente nesta data histórica para o hip hop nacional.
Durante a cerimônia, a professora Nilma Lino Gomes destacou a importância do grupo na luta contra injustiças sociais, especialmente o racismo, e seu impacto em inspirar jovens negros e periféricos a ingressarem na universidade. Os integrantes agradeceram a todos que contribuíram em seus 36 anos de trajetória, mas esqueceram de mencionar Milton Sales, o fundador e mentor do grupo.
Milton Sales: o griot periférico
Milton, conhecido como Miltão da Favela do Moinho, é um griot periférico que uniu os membros do Racionais MC no final dos anos 80. Visionário, ele migrou do reggae para o hip hop, enxergando neste último um meio para avançar na revolução que intencionava para a juventude negra e periférica do país. Acompanhou o grupo até 1998, quando saiu após divergências, um ano após o lançamento do aclamado álbum Sobrevivendo no Inferno.
Sua história é um capítulo fundamental, mas muitas vezes esquecido, da trajetória dos Racionais. Milton não apenas fundou o grupo, mas também plantou as sementes de um projeto político e cultural que transformou vidas.
O encontro com o mestre
Em julho de 2024, finalmente conheci Milton Sales após várias tentativas. Há poucos registros sobre ele, mas cada informação é uma joia que revela a essência do projeto político revolucionário e musical dos Racionais MC’s. Na época, eu organizava o Encontro das Periferias e o procurei para ajudar na articulação dos movimentos sociais no centro de São Paulo.
Era uma tarde de julho, e a polícia de Tarcísio ameaçava desocupar moradias na região. Lá estava Milton, no meio do caos, defendendo o povo. Fiquei intrigado: como o fundador dos Racionais MC, aquele que iniciou tudo, estava ali, na linha de frente? Nos desencontramos, mas insisti e o encontrei na Pinacoteca. Enfim encontrei o cara que pegou o Racionais no colo, fez as bases, a fundação deste grande projeto, juntou os caras, tramou uma revolução que está ai até hoje! Estava frente a frente a uma lenda viva, em passos largos, próximo à Cracolândia, correndo para comprar um perfume para sua companheira, nas lojinhas do Centro cinza de São Paulo.
A lição do matuto
No meio da correria, trocamos uma baita ideia sobre política, esquerda, rap, revolução, Deus e os Racionais. Quanto mais ele falava, mais eu via suas ideias refletidas nas letras de Brown, Blue, Edi Rock e nos beats de KL Jay. Ele criticava a esquerda de classe média e os intelectuais de periferia, cheios de conceitos, mas distantes da realidade do povo, com uma linguagem estranha e que não dialogava com a alma. Foi essa percepção que o levou a criar o Racionais, uma virada na conscientização política da juventude negra e periférica.
Contou que, certa vez, os integrantes estavam frustrados por suas músicas atraírem mais playboys do que jovens periféricos. Eles falavam que faltava patrocínios, entrada nas grandes rádios, espaço na mídia. Milton interrompeu e apontou para um menino catando latinhas e cantarolando Tim Maia: “Ta vendo aquele moleque, ele é seu patrocinador. Quando vocês fizerem um som que faça esse menino se conectar com Deus e se emancipar, aí sim fizeram revolução, aí sim será sucesso.”
Essa foi a lição que ouvi do mestre, um sábio da periferia, um griot. Ele também falou sobre sua conexão com Deus, sua descoberta incrível de que Deus estaria numa gota d’água. Baita viagem, muito profunda, mas que só reforçou a grandiosidade do Matuto Periférico do Centro de São Paulo, o quinto elemento dos Racionais.
A essência dos Racionais MC‘s
Ali estava “Sobrevivendo no Inferno”, o Gênesis, Capítulo 4, Versículo 3, a história de um Rapaz Comum, um Interlúdio, talvez um Diário de um Detento. Era a periferia, “Periferia é Periferia” em suas mil definições, São Benedito, Rosário dos Pretos, Jorge da Capadócia. Em um momento, disse: “Tô Ouvindo Alguém Me Chamar”, e ele falou sobre políticos em “Qual Mentira Vou Acreditar”. Estava frente a frente com o Mágico de Oz, aprendendo a “Fórmula Mágica da Paz”. Um papo reto, um “Salve”. Troquei uma ideia incrível com o Miltão, que deu orientações valiosas para o Encontro das Periferias, um sucesso no fim das contas.
O legado e a reconexão
Quando falava dos Racionais, expressava uma admiração profunda pelos manos do grupo, grandes poetas e músicos, mas criticava o ego e a vaidade que os afastava da essência verdadeiramente revolucionária. Seu semblante ficava sério, durão. Na quebrada, a gente sabe o que isso significa, por aqui não temos tempo pra chorar! Em seu olhar, via tristeza, raiva, mas um baita orgulho, uma saudade forte e perdão. Parecia um pai distante, com questões a resolver, querendo dar uma “orelhada” nos filhos, mas, acima de tudo, dar um abraço e lamentar pela distância.
Após ver a celebração do Honoris Causa, senti no coração que devia escrever sobre isso. Espero que este salve chegue ao Miltão e nos manos do Racionais. O mundo precisa de vocês, 36 anos depois, vejam ai bilionários, supremacistas brancos e nazistas mapeando a íris do povo, somado as “IAs” tudo isso pra dominar, alienar e prender a mente o povo. Que mundo é esse? Onde vamos parar? É hora de reconectar o elo perdido. Vida longa aos Racionais MC. Um agradecimento ao mestre: Salve Miltão, obrigado por juntar esses manos e regar as sementinhas lá no início, que hoje geram frutos e mais frutos de uma revolução cultural.