O Bolsa Família diminuído pela “austeridade” fiscal
Programa tornou-se marco no combate à pobreza no Brasil e grande bandeira de Lula. Mas a alta dos preços da comida o corrói – e, ainda assim, governo diz que não elevará seu valor. Isso em nada ajudará o presidente na tentativa de reconexão com sua base social para 2026
Publicado 11/02/2025 às 17:43
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O Programa Bolsa Família foi um dos pilares de inovação e aperfeiçoamento em termos de políticas públicas inclusivas e de redução da pobreza e da miséria em nosso país. Concebido e implementado desde o primeiro mandato do presidente Lula, o programa ganhou status ministerial e importância estratégica na agenda governamental. Em 2004 foi promulgada a Lei 10.836, com o objetivo de regulamentá-lo e discipliná-lo.
Em pouco tempo, o Bolsa Família (BF) converteu-se em uma importante vitrine do desempenho do novo governo em termos de orientações para a redução da desigualdade social e econômica. O programa tem recebido inúmeras premiações internacionais ao longo de sua existência, uma vez que passou a ser considerado como uma das experiências mais exitosas em termos de políticas públicas voltadas à maioria da população.
Junto com a vigência de outras políticas de governo, a exemplo da política de valorização real do salário mínimo, o BF consolidou o sucesso conjuntural no enfrentamento de injustiças estruturais que sempre marcaram nossa sociedade. Tratado com todo o carinho pelo núcleo do poder no Palácio do Planalto até o golpe contra a presidenta Dilma, o programa foi sendo lapidado para atender aos seus propósitos intrínsecos. Os exemplos são muitos. Melhoria das relações federativas, em especial com as prefeituras. Estabelecimento das contrapartidas para as famílias beneficiárias, em especial em saúde e educação. Incremento de acesso por meio de Cadastro Único e da universalização do cartão bancário.
Importância do Bolsa Família desde 2003
Mas um elemento fundamental durante esse tempo todo foi a política permanente e continuada de reajuste nos valores dos benefícios. Por outro lado, além do aumento dos ganhos para as famílias, verificou-se também a ampliação do número de beneficiários. Apesar da oposição que o programa sempre enfrentou da parte dos setores da direita e das elites, a sua popularidade era tal que nem mesmo o governo Bolsonaro ousou alterar sua essência. É verdade que o BF foi descontinuado na gestão do capitão, mas apenas para tentar apagar a marca lulista no mesmo. O BF foi substituído pelo Auxílio Brasil durante esse período e Lula restabeleceu o original em seu terceiro mandato.
Pois agora, em meio às pesquisas que apontam para uma queda de popularidade do presidente da República e de seu governo, haveria a oportunidade de fortalecimento deste importante instrumento de combate à miséria, à pobreza e à desigualdade. A previsão orçamentária para este ano mantém os valores do BF congelados em relação a 2024, sem nenhum reajuste. Trata-se de uma estratégia completamente equivocada, tanto em termos políticos quanto em termos econômicos. Na verdade, obedece exclusivamente às orientações generalizadas de respeito absoluto aos compromissos de Haddad com a austeridade fiscal. Uma loucura!
O próprio ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, chegou a anunciar a necessidade de se promover um reajuste nos valores do BF. Disse ele:
(…) “O problema é o preço do alimento, que teve essa elevação brusca do fim do ano passado para cá. Será um ajuste? Será um complemento na alimentação? […] A decisão vai ser tomada até o final de março.” (…)
Dentre os vários problemas enfrentados pelo governo está, sem dúvida alguma, alta dos preços. A inflação de itens de consumo da grande maioria da população afeta mais pesadamente as camadas de mais baixa renda. Em especial ganha destaque o crescimento dos preços dos alimentos. Esse grupo de produtos está com uma inflação anual em 2024 acumulada próxima 9%. Esse índice é bem superior à média que do IPCA, que registrou algo em torno de 5%. O Bolsa Família merece um reajuste imediato em seus valores.
Prioridade de Haddad é atender o financismo com juros
No entanto, uma preocupação que deveria ser de todos os integrantes do governo e do próprio Lula parece não ter recebido muita empatia na Esplanada dos Ministérios. Logo em seguida a esta entrevista do titular da pasta que se ocupa do BF, integrantes do Ministério da Fazenda se encarregaram de torpedear a sugestão de reajuste. Além de criticarem Dias por apresentar a ideia, retomaram a velha ladainha da inexistência de recursos:
(…) “não há espaço orçamentário para reajustar o programa” (…)
E na sequência destas declarações em “off”, a própria Casa Civil soltou uma nota referendando a posição da área econômica.
(…) “A Casa Civil da Presidência da República informa que não existe estudo no governo sobre aumento do valor do benefício do Bolsa Família. Esse tema não está na pauta do governo e não será discutido” (…) [GN]
Essa hegemonia completa da agenda prioritária do governo pela ótica do austericídio pode provocar ainda maiores dificuldades políticas para Lula. Afinal, é difícil de se imaginar que não sejam apresentadas emendas no Congresso Nacional para corrigir a distorção flagrante que se observa nas contas orçamentárias do BF. Ao invés de assumir a vanguarda neste debate necessário, o Palácio do Planalto é capaz de ficar, mais uma vez, refém dos acontecimentos e das inciativas pulverizadas que certamente surgirão no interior do Parlamento.
Afinal, como é possível que Haddad ainda consiga convencer o seu chefe de que não existem recursos disponíveis para cobrir essa rubrica tão fundamental para o governo, para o PT e para o país? Ora, esse mesmo conjunto orçamentário da União realizou, ao longo de 2024, um total de gastos de R$ 1 trilhão para cumprir com as obrigações financeiras decorrentes da dívida pública federal. Existe a disponibilidade de destinar um montante trilionário como esse para a despesa mais parasita e regressiva de todas, mas os obstáculos surgem sempre e quando se trata de alocar recursos para os mais pobres e miseráveis de nossa sociedade.
Ministro do BF é humilhado publicamente
Vamos nos lembrar de que o governo encaminhou, há pouco tempo atrás, medidas para promover austeridade fiscal e buscar a absurda meta de zerar o déficit primário. Ali estavam propostas para eliminar o abono salarial, para reduzir o espectro de ação do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e para referendar o abandono do compromisso de Lula com reajustes reais do salário mínimo de acordo com o crescimento do PIB. Ou seja, manteve-se a estratégia de promover cortes orçamentários apenas e tão somente nas verbas destinadas aos setores da base da nossa pirâmide da desigualdade social e econômica.
Nada foi colocado no horizonte para elevar receitas tributárias com medidas mais do que óbvias, a exemplo do fim da isenção de lucros e dividendos. Ou de se promover um pente fino e uma força tarefa para recuperar as dívidas tributárias assinaladas que superaram a casa de R$ 600 bilhões ou mesmo a sonegação tributária recorrente que também se aproxima da mesma cifra a cada novo exercício.
A situação termina por escancarar a prioridade que o Ministério da Fazenda estabelece para a garantia das despesas financeiras, conseguindo convencer a Presidência da República por tal opção tão polêmica quanto equivocada. E isso leva o ministro da pasta responsável pelo BF a se retratar publicamente de forma humilhante. Wellington Dias afirmou que não se tratava de reajuste algum no programa. Aliás, muito pelo contrário. Que coisa triste e lamentável!
(…) “A pasta planejou em 2025 reduzir as despesas, com previsão de R$ 4 bilhões, no mínimo. Vamos fazer isso garantindo direito a quem tem direito, mas vamos combater fraudes onde tiver” (…) [GN]
É fundamental e urgente que Lula se dê conta dos riscos que ele incorre em manter esse apoio incondicional a Haddad em sua agenda austericida. Como próprio presidente afirmou recentemente em entrevista coletiva, 2026 já começou. Ou seja, o horizonte das eleições já entrou no campo de visão e de ação do conjunto das forças políticas do país. E ele é o único em condições de vencer a disputa presidencial contra qualquer candidato da extrema direita. Ocorre que, para esse projeto ser exitoso, é fundamental que o governo tenha uma agenda de realizações concluídas e um programa de retomada do desenvolvimento econômico e social em movimento.
Mas para isso existe uma condição sine quae non: a abandono da obediência cega ao arcabouço fiscal e à meta de zerar o déficit primário. Caso contrário, as pesquisas de opinião não terão elementos para reverter a atual queda de popularidade. Em especial nas pautas voltadas às populações que ganham até cinco salários-mínimos mensais, o governo precisa reverter a linha sugerida pela tecnocracia instalada na área econômica. E quem afirma isso, com todas as letras, é um amigo do presidente e diretor do Instituto Lula, Paulo Okamotto, em artigo assinado junto com Gleisi Hoffmann, a presidenta do PT.:
(…) “O grande desafio do PT, assim, é reconectar-se com sua base social primordial, os trabalhadores e a nova classe média, que vive as angústias da carestia, do emprego de qualidade, do empreendimento inovador, dos serviços públicos que precisam ser melhores e de mais cultura e lazer” (…) [GN]