Cinema: Religião e política em meio à ditadura
O Pastor e o Guerrilheiro aborda o elo perdido entre comunidades pobres e evangélicas e os militantes de classe média. No filme, uma estudante lê o livro de um combatente do Araguaia — que, no passado, filosofa com um “crente” sobre um Jesus revolucionário
Publicado 11/12/2024 às 17:03
Em seu filme O Pastor e o Guerrilheiro (2023), José Eduardo Belmonte procura mostrar como os dejetos emocionais da ditadura atravessam as décadas e permeiam o cotidiano, sem a permissão daqueles que tentam viver o presente. As marcas da violência parecem uma película fina que cobre tudo ao redor, mas que só é realmente perceptível a quem se dispuser a olhá-la com atenção.
O fio condutor do filme é Juliana (Julia Dalavia), uma estudante universitária que se engaja nas lutas dos movimentos estudantis de esquerda e, ao se interessar pelo livro perdido de um antigo guerrilheiro do Araguaia, abre um portal para os tempos da ditadura. Ao ler a obra Juliana faz dois tempos históricos — o dela e o do livro — se entrelacem, mostrando a duração das consequências que um período político violento pode ter na vida de todos.
Zaqueu (César Mello), por exemplo, era apenas o pastor de uma comunidade simples que foi confundido com um militante e por isso foi parar na cadeia dirigida pelos militares. Ele não tinha qualquer vontade de se associar com os comunistas ou com os militares, mas a neurose do regime em vigor logo o identificou como suspeito. Assim, mesmo sem querer envolvimento direto com o Estado ou com a resistência, Zaqueu é obrigado a conviver com os dois, e de certa forma, escolher um lado.
Já Miguel é companheiro de cela do pastor, além de ser guerrilheiro e autor do livro que acompanha Juliana. Ele e Zaqueu entram então em uma convivência forçada em uma das celas imundas do centro de tortura militar. E a partir de então começam a ter discussões filosóficas sobre qual seria a real diferença entre um crente e um guerrilheiro e quais seriam as vontades de um revolucionário como Jesus em um regime de exceção como a ditadura.
O filme é um produto perfeito de seu próprio tempo histórico, muito mais do que dos que pretende representar. Ele procura uma espécie de elo perdido entre as comunidades pobres e evangélicas e os revolucionários universitários de classe média, sem deixar escapar a óbvia separação racial que também perpassa essa divisão. As polarizações políticas de hoje aparecem em suas formas embrionárias no passado recente de nossa formação democrática.
Com uma trama bem costurada de diferentes cronologias e histórias de vida, a obra consegue entregar uma discussão sólida sobre como os traumas causados direta e indiretamente pela ditadura se espalham pelo tempo, além de cutucar religiosos ao transformar um militante de esquerda torturado em uma clara alusão à figura de Jesus Cristo.