Uma história da luta contra o racismo das PMs

Livro recém-lançado traça panorama dos protestos negros contra a violência policial – da luta pelo fim da discriminação racial, nos anos 80, à denúncia do genocídio. E desvela como o Estado produz hierarquias raciais através da Segurança Pública

Foto: Exposição “Memórias Encontradas – Entre a Solidariedade e a Perseguição” (2024)/ Reprodução
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Ao longo da última semana, o sociólogo Paulo César Ramos, autor de Gramática negra contra a violência de Estado, concedeu entrevistas para veículos nacionais e internacionais, comentando os mais novos casos de brutalidade policial contra pessoas negras na capital paulista na última semana.

Agora, em entrevista ao blog da Elefante, ele conta como o livro é resultado da confluência entre sua atuação militante nos movimentos negros em São Paulo e o seu trabalho de pesquisa na academia: “eu utilizei essa minha relação com o movimento negro, com as lideranças negras, com os velhos militantes do movimento negro, sobretudo de São Paulo, para poder compreender como a violência policial foi retratada pelo movimento negro no Brasil, como a violência policial ganhou uma reação e uma agenda política no interior do movimento negro”.

O autor também comenta os dois casos de violência policial que repercutiram nos noticiários e em protestos ao longo da semana. Tanto o do homem que foi arremessado de uma ponte por policiais, cujo registro vídeo viralizou nas redes sociais, quanto o caso do homem negro de 26 anos, executado em novembro por um policial à paisana com 11 tiros nas costas após furtar produtos de limpeza em uma unidade do Oxxo.

A partir dos dois casos, Ramos estabelece uma relação direta entre a atuação do estado – através da política militar –  e a produção de hierarquias raciais. “Quando um policial opta por um menino negro ao invés de um branco para fazer uma abordagem policial, ele produz uma hierarquia, e essa hierarquia é a própria raça. A raça é uma materialidade concreta, é uma categoria que organiza a vida social, a produção da raça é um processo contínuo do fazer policial, é a racialização”, explica.

Ramos é coordenador de pesquisa do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e coordenador do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo. Em suas pesquisas de mestrado e doutorado, se dedicou ao estudo das relações raciais, violência, memória, movimentos sociais e políticas públicas. Também é autor do livro Contrariando a estatística: genocídio, juventude negra e participação política (Alameda, 2021).

Leia abaixo a entrevista completa.

Pode começar falando um pouco sobre o seu livro? Me parece que ele advém diretamente da sua relação com o movimento negro no estado de São Paulo. Pode falar mais sobre isso?

Sim, este livro é o retrato da confluência entre a minha vida acadêmica e a minha vida no movimento negro, a relação entre a minha vida acadêmica e a minha militância. Na militância, entrei na agenda de formulação de políticas públicas contra a violência contra a juventude negra, e agora acabei convertendo esse meu envolvimento numa reflexão muito mais ampla sobre as raízes da violência racial e a violência de estado contra o povo negro no Brasil.

É uma agenda de pesquisa que nasceu entre 2010 e 2012, mas que ganha uma conformação acadêmica a partir de 2015 com o meu doutorado. Eu utilizei essa minha relação com o movimento negro, com as lideranças negras, com os velhos militantes do movimento negro, sobretudo de São Paulo, para poder compreender como a violência policial foi retratada pelo movimento negro no Brasil, como a violência policial ganhou uma reação e uma agenda política no interior do movimento negro.

Por que o livro leva gramática no título?

O que procurei fazer durante o processo de pesquisa foi reconstruir os casos emblemáticos de violência policial que ganharam reação do movimento negro em São Paulo em disversos períodos. Eu só que descobri que havia um padrão gramatical do conflito contra a violência de Estado na reação do movimento negro depois que eu tomei contato com os documentos, depois que eu percebi que algumas palavras se repetiam com maior densidade em determinados períodos da história.

O recurso aos documentos me foi sugerido pelos próprios entrevistados e eu percebi, no curso do trabalho com esses documentos, que havia uma repetição de determinadas palavras de ordem em determinados períodos históricos.

Por exemplo, a expressão discriminação racial aparecia com bastante densidade nas palavras de ordem do movimento negro nos anos 80, mas acabou desaparecendo nos anos 90. Quando se falava de violência policial nos anos 90, a expressão que mais aparecia como uma palavra de ordem era violência racial, e depois ela também desapareceu do léxico gramatical do conflito do movimento negro. Foi substituída pela palavra de ordem genocídio negro. São três palavras de ordem que marcaram essa gramática conflitual contra a violência de Estado no Brasil, por isso que eu dei este nome para o livro. Mas isso foi fruto da pesquisa. Isso saltou aos meus olhos no trato com os documentos e por isso virou o título do livro.

Na conclusão do livro, você menciona que uma gramática se forma quando ela produz sentido na coletividade de um movimento. Essas mudanças no uso das expressões e do discurso que você mapeou refletem ganhos para o movimento negro? Ou apenas denotam as transformações do movimento no curso do tempo?

No meu trabalho eu reputo todos esses termos como igualmente exitosos, cada uma dessas elaborações. A grande diferença que existe entre elas é a capacidade de organização de redes que os movimentos negros ocupam. É a relação dos movimentos negros com a institucionalidade, com o aumento de atores negros na cena pública, com o incremento de pessoas negras em lugares estratégicos.

Tem mais a ver com a capacidade material que as organizações negras têm de revolver um solo crítico, político, organizativo, mobilizador. A construção de sentidos é igualmente exitosa em cada período.

O que existe, sim, é uma progressão da radicalização. A crítica se radicalizou durante esse período.

Sim, me parece. Porque ela vai ficando menos eufemística. A gente passa, por exemplo, do termo “violência racial” para “genocídio negro”, certo?

Exatamente.

Além de sistematizar essa gramática, a sua pesquisa sistematiza essa documentação histórica. Quando se fala em movimento negro no Brasil, se fala muito em luta contra o apagamento ou o esquecimento. Você também menciona isso em alguns momentos no livro. Isso já era uma preocupação desde o início, mapear essa documentação num esforço contra o apagamento, ou ela apareceu durante a pesquisa?

Apareceu ao longo da pesquisa, porque, na insuficiência da memória individual, eu tive que recorrer à memória coletiva, e a memória coletiva me trouxe muito mais coisas do que eu de fato procurava. Eu procurava apenas a reconstituição de casos emblemáticos de violência. O que eu encontrei na organização da memória coletiva foi uma lógica na organização do protesto. Por isso que eu chamo de gramática.

Importante dizer que a memória individual se refere a, por exemplo, quando a gente faz uma entrevista durante uma pesquisa, e a gente procura fatos, datas, nomes, lugares, etc. A memória individual muitas vezes é incapaz de nos entregar isso, mas entrega discursos, significados, símbolos. Muitas vezes você tem narrativas que são, inclusive, ahistóricas, no sentido de que elas não trazem uma materialidade concreta sobre os relatos.

A memória já é a significação do fato, é o passado completamente editado. Alguns militantes que entrevistei tiveram a preocupação de me dar datas, nomes, ordem das coisas. Mas nem todos fazem isso, né? E mesmo aqueles que fazem isso, nem sempre conseguem lembrar tudo, mesmo querendo. Então, essa documentação se torna uma materialidade da memória coletiva.

Os arquivos que reuni a partir da minha tese se transformaram em um projeto interinstitucional que é o AfroMemória, do AfroCebrap e da Unicamp, onde passamos a armazenar estes documentos. O AfroMemória reuniu todos esses documentos e está aos poucos digitalizando eles. Antes, para fazer pesquisa sobre o movimento negro, era preciso saltar de arquivo em arquivo, fazendo um trabalho de mineração desses documentos, que era bastante difícil e longo de se fazer. Hoje, temos quase 20 acervos de coleções reunidas dentro de um mesmo prédio, dentro de uma mesma plataforma.


Esta semana, fomos bombardeados por casos de violência policial assombrosos. As repercussões nesses momentos ganham muito o tom de denúncia e de indignação. Pensando na ideia de construção de uma gramática e do que ela pode mobilizar coletivamente, você acha que esse tipo de repercussão, quando acontece, ajuda o debate e a própria luta a avançar?

É isso que eu procuro retratar na gramática. Eu demonstro como esses casos emblemáticos são muitas vezes motores de impulsionamento de políticas institucionais. Eles têm impacto institucional muitas vezes. Outras não. Mas costuma acontecer.

No entanto, o protesto depende da capacidade de um determinado caso surpreender a cena pública e, por meio da surpresa, mobilizar e afetar as pessoas. O grande problema é que esses casos acabam sendo desmobilizados por um novo caso absurdo que acontece na sequência. Então, quase todo mundo fala “poxa, mas isso não é absurdo?”; e alguém vem com um novo caso que demonstra que não é absurdo, que é parte da regra. E aí, apesar de afetado, você não sabe como lidar com a regra.

Tanto estes casos de violência policial quanto as crises da democracia que o Brasil viveu nos últimos anos, têm um efeito, muitas vezes, que pode ser mobilizador, mas também pode ser dissuasivo. As grandes crises da democracia fazem com que as estratégias de longo prazo do movimento negro se dissolvam no protesto geral. Essa é a grande dificuldade que o movimento negro encontrou. Mas também é uma dificuldade do movimento de direitos humanos, ou de quem pensa a segurança pública democraticamente… é não conseguir criar uma agenda estratégica e progressista para essas pautas. Essa agenda é sempre atacada por barbáries como essas.


Em entrevista ao UOL News, você defendeu que o debate sobre segurança pública precisa ser tomado pela esfera civil. Acha que esse é o caminho?

É isso aí. A gente precisa desmilitarizar o debate sobre segurança pública. E desmilitarizar as polícias. Os cidadãos precisam tomar conta dela. E a polícia precisa se desmilitarizar para que os policiais voltem a ser cidadãos.

Precisamos nos educar para falar mais sobre isso. A gente não fala muito sobre polícia. Fala-se muito mal da polícia, mas não se fala muito sobre ela. A população não sabe quais são as regras básicas e o que o policial pode fazer e o que não pode fazer. A gente não sabe. Ninguém sabe.

Na mesma entrevista, você formulou uma síntese muito forte: você disse que cada abordagem policial é um ritual de racialização. Há um senso comum que trata a raça como uma um fato abstrato, desconectado da violência de estado. Com esta síntese você faz uma inversão deste senso comum ao dizer que Estado, através da polícia, é um produtor direto e concreto de racialidade. Você pode falar mais sobre isso?

Raça é um resultado do processo de produção e reprodução de hierarquizações que humanizam e desumanizam pessoas em todos os ambientes sociais: na escola, na religiosidade, na economia, na organização de redes produtivas, certo?

As instituições de justiça e de repressão, como é o caso da polícia — sendo essas instituições de justiça e de repressão aquelas que são capazes de disciplinar indivíduos, corpos, coletividades; vão reproduzir esse sentido de hierarquização das pessoas, dos seres humanos, produzindo humanidade, produzindo subjetividade, dando ou retirando direitos, aliando e alienando pessoas, emancipando pessoas. Aliás, emancipando pessoas, não. Na verdade, privilegiando pessoas. Porque uma pessoa privilegiada não é uma pessoa emancipada.

Quando um policial opta por um menino negro ao invés de um branco para fazer uma abordagem policial, ele produz uma hierarquia, e essa hierarquia é a própria raça. A raça é uma materialidade concreta, é uma categoria que organiza a vida social, a produção da raça é um processo contínuo do fazer policial, é a racialização.

E chamo a abordagem policial de ritual porque ali existe um toque no corpo, existe um palavreado, existe um tom de voz, existe um ritmo, existe até mesmo uma interação entre os corpos. Isso é um ritual. “Não se mexe porque eu estou mirando em você. Não faz isso, põe a mão na cabeça, não fala comigo, abaixa a cabeça para falar comigo, não olha para mim, olha para o chão. E se reagir, apanha. E se falar alto, apanha. E se correr, eu atiro”.

Aliás, eu acho que essa dimensão do correr é muito importante, porque a primeira forma de correr das pessoas negras foi produzir quilombos. Todo mundo que foge, corre. Esse ato de correr é um ato de sair da escravidão. O que uma pessoa negra recebe quando ela corre do policial? Um tiro, né?

Correr era a primeira forma de rebeldia, o primeiro ato de aquilombamento. Então, eu acho que isso tem muito a ver com a produção de raça e com o estado no Brasil. O estado se forma dessa maneira.


Eu sou uma pessoa branca e, quando te ouvi falar sobre a abordagem policial, fiquei pensando sobre como isso produz racialidade em mim também e como em geral pessoas brancas têm enorme dificuldade de perceber isso. Penso em como é factível pra mim a sensação de passar despercebida em frente a uma viatura, por exemplo.

Com certeza produz racialidade. Até porque, se um policial olhar pra você, talvez você reaja à polícia de uma maneira que vai submetê-los. Dependendo das circunstâncias, você, inclusive, tem o poder de autorizar ou desautorizar a polícia.

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