Cinema: Os rastros e vazios da ditadura
Em tempos de fluxo frenético de imagens, Ainda Estou Aqui conquista públicos com outro tempo de fruição. E faz da “casa burguesa” algo vivo, pulsante. Mas deixa certa sensação de vazio, por não podermos ver a resistência além da classe média branca
Publicado 27/11/2024 às 16:04
São seis horas da tarde e estou em um Cinemark de shopping, um lugar curioso para assistir um filme considerado de arte. Há 5 anos atrás, até mesmo Ingrid Guimarães, dona de umas das franquias mais assistidas do Brasil, o De Pernas Pro Ar, teve que vir a público reclamar que seu filme estava sem espaço no circuito comercial. O hollywoodiano Os Vingadores tinha dominado mais de 80% das salas de cinema do país, evidenciando o nível de dominação cultural que ainda sofremos no âmbito audiovisual.
Dessa vez não. Dessa vez uma obra nacional, feito em um país dedicado a assistir milhares de horas de conteúdo estrangeiro, um filme sobre a ditadura no meio de avalanches de negacionismo, conseguiu lotar salas de cinema por todo o Brasil. Só por isso, o longa metragem já tem ao menos o mérito de fazer com que os espectadores sejam obrigados a se lembrar do horror da ditadura.
A obra, que adapta o livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, conta a história da vida de sua mãe, Eunice Paiva, após o desaparecimento de seu pai Rubens, antigo deputado acusado de associação com comunistas, durante a ditadura.
Dito isso, a primeira coisa que me chamou a atenção no filme foi o tempo. Um problema cada vez mais comum na montagem de filmes comerciais é antecipar demais a trama. Cortes rápidos, apavorados de perder a atenção de adictos em redes sociais, se esquecem que cinema é modulação de emoções e que para sentir falta de um personagem morto, por exemplo, primeiro o espectador precisa gostar dele.
Nisso Walter Salles, diretor do filme, se sai muito bem. Antes que a ditadura se imponha à vida da família, aprendemos a amar cada um de seus membros e adorá-los ainda mais quando estão juntos. Passamos pela perda de Rubens não só como espectadores, mas como conterrâneos e como uma pequena comunidade espontânea e efêmera unida pela sala de cinema. Aí que aquela mágica que se debate em milhares de páginas sobre a história e a natureza do cinema acontece: a catarse.
Mas se primeiro se impõe o tempo, em segundo lugar se impõe o espaço. A casa burguesa, tantas vezes criticada na história do cinema, no filme se torna algo vivo, como o coração onde pulsa a vida daquela família. Enquanto Rubens convive com a esposa, os filhos, a faxineira e o cachorro, ela é luminosa, musical, cheia de amigos e de vida. Depois que dois homens chegam para levá-lo embora e fecham todas as janelas e cortinas, a casa começa a definhar. A iluminação do filme se torna mais dura e os ambientes mais soturnos, os rostos mais carregados, não há mais praia e nem sol. A vida que eles conheceram ali acabou.
Além disso, dois silêncios pesados circundam a protagonista Eunice, de um lado o silêncio angustiante da ditadura, que some com seu marido do dia pra noite, do regime que decide sobre a vida das pessoas sem pedir licença, que mata sem pedir perdão. Do outro lado o silêncio do mundo dos homens. Por que Rubens não contou o que andava fazendo? Se foi por tentar protegê-la certamente não funcionou, Eunice teve que lidar com as consequências das escolhas do marido de qualquer jeito e com o agravante de não saber direito com que estava lidando.
De dona de casa, de classe alta e mãe solo de cinco filhos, ela foi obrigada a se reinventar completamente. Com 47 anos, se formou em direito e se tornou assídua defensora das terras e vidas indígenas. Nesse ponto o filme foi criticado por não expandir a discussão para os efeitos coletivos da ditadura, por ter retratado o caso de Rubens quase como algo único, ao invés de mostrar que a própria Eunice se especializou na causa indígena por perceber que foram eles os maiores afetados pela ditadura.
Enquanto assistia um outro filme me veio à cabeça. Em Vincere de Marco Bellocchio, o diretor explora os efeitos do fascismo e o caráter de Mussolini através da história da mulher e do filho abandonados pelo ditador. Acredito que a ideia de Walter foi similar. Ao notar a existência de uma única família no microscópio, o cineasta conseguiu evidenciar como histórias escritas ou estatísticas frias efetivamente afetam corpos e existências.
A verdade é que funciona, mas como a história que guardamos da ditadura já tende a ser demasiadamente branca e burguesa, mesmo depois de toda a beleza do filme, fica uma sensação de vazio.