Urbanismo para que(m)?

Se “as cidades são os espelhos das desigualdades” e estas tornaram-se muito mais graves nos últimos anos, então não é possível transformá-las apenas por meio de mudanças em seu traçado e ordenamento territorial

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Quando falamos em urbanismo, não nos referimos apenas a traçados e ordenamento territorial, mas à sociedade e às pessoas, e toda a complexidade de suas camadas.

Diversos autores revelam, em críticas agudas, a existência de problemas profundos em nossa sociedade (Bauman, 2001; Lipovetsky, 2005; Beck, 2011), e no modo de vida contemporâneo. Apenas para fins de compreensão sobre a atualidade e as consequências do modo de vida contemporâneo, recorremos a momentos históricos importantes que transformaram radicalmente a vida em sociedade, como as transformações no sistema produtivo e na economia política predominante, como o fordismo e o toyotismo, com a transição para sistemas mais flexíveis de acumulação (Harvey, 2012). Três décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, o neoliberalismo marcou o fim do Estado de Bem-Estar Social. Essas transformações estruturais na política econômica mundial tornaram-se dominantes, atingindo plena maturidade em 1990 com o “Consenso de Washington” e consolidando os EUA como hegemonia global. Este modelo permanece influente até hoje.

Se “as cidades são os espelhos das desigualdades” (Berth, 2021), e essas desigualdades foram construídas e reproduzidas ao longo dos anos, tornaram-se mais evidentes nas últimas décadas, quando o neoliberalismo, aliado à globalização, naturaliza o individualismo.

Quando resgatamos a história do Brasil, são 500 anos de periferia após a invasão portuguesa. Uma colônia que não superou a herança excludente e racista e que transferiu a escravização dos corpos pelo trabalho assalariado, mantendo o sentido da servidão. Ainda temos um Brasil dominado por uma “Elite do Atraso” (Jessé Souza, 2017) que controla os meios de produção em detrimento de toda uma camada excluída do sistema, e a naturalização do desemprego, algo que é inerente ao sistema.

Outro ponto crucial é a forma como os recursos ambientais e a própria Terra são tratados no contexto do neoliberalismo. Desde a Segunda Guerra Mundial, há uma consciência crescente sobre a finitude dos recursos naturais. No entanto, o sistema neoliberal ignora isso, utilizando os recursos como se fossem infinitos, desconsiderando os impactos nas mudanças dos ecossistemas. As ações humanas têm refletido nas mudanças climáticas e em diversas tragédias ambientais. É preciso, e com urgência, se pensar a decolonialidade da vida e dos territórios.

A ideia de crescimento incessante da produção e consumo choca-se contra os limites impostos pelos ecossistemas à expansão do aparato produtivo (Abramovay, 2012). Henri Acselrad, em “A Duração das Cidades”, aponta os riscos das políticas urbanas neoliberais para as questões ambientais. Em “Justiça Ambiental”, ele demonstra como a população vulnerável e historicamente periférica está mais exposta aos riscos ambientais.

Esses exemplos sublinham a urgência de repensar nossa abordagem em relação aos recursos naturais e ao planejamento urbano. É imperativo que adotemos políticas que promovam a sustentabilidade e a justiça ambiental, reconhecendo e mitigando os impactos negativos das práticas econômicas e urbanas neoliberais. Devemos lembrar e incorporar a visão indígena sobre a vida e o respeito à natureza: “Nós pertencemos à Terra e não ela a nós” (pensamento indígena).

Algumas visões, ações e movimentos nos dão pistas de como avançar em direção a outro caminho.

Joice Berth em seu livro “Se a cidade fosse nossa”, mostra caminhos para superar problemas que tornaram as cidades brasileiras exemplos de segregação e violência. Edgar Morin nos diz: “Não haverá transformação sem reforma do próprio pensamento” (Morin, 1990). O ser humano deve se reconhecer como sujeito e compreender “quem é” e “quem é no mundo”. A ação e reflexão, constituindo a práxis, são a maneira humana de existir, como destaca o pensamento freiriano.

Muitos movimentos realizam um trabalho de base, trazendo esperança para mudanças. O Movimento dos Sem Terra (MST), por exemplo, o maior movimento rural organizado do mundo, vem ganhando crescente credibilidade. O Prout (Teoria da Utilização Progressiva), um modelo desenvolvido por um filósofo indiano que fala de uma Democracia Econômica como alternativa ao capitalismo, com a participação popular na construção de uma sociedade cooperativa baseada na solidariedade. Segundo esta teoria, o dinheiro deveria ter apenas um valor simbólico, e não ser o imperativo que dita as regras da vida.

Reafirmando o compromisso com a luta diária pelo direito a cidade, na inclusão de pautas relevantes e extremamente necessárias, a Rede BrCidades nasceu dessa inquietude da base frente as desigualdades para tratar de questões importantes relativas à necessária reforma urbana. Buscamos, a construção de uma nova agenda urbana que inclua movimentos sociais, juventude, população negra, lutas de gênero, e coletivos LGBTQIAP+, todos unidos pelo desejo de construir coletivamente cidades mais justas, solidárias, economicamente dinâmicas e ambientalmente sustentáveis.

Frente a tantos desafios que a complexidade da vida em sociedade nos impõe, sobretudo nas cidades, entendemos que precisamos refletir sobre o urbanismo, principalmente diante de todas as lutas diárias que estamos sujeitos a enfrentar. O momento reflete crises de diversas naturezas, como a climática ambiental, social, política e econômica. Ante todas as crises, uma das que acaba refletindo em todas as outras é a crise de valores, já alertada por Milton Santos, como a “confusão dos espíritos”. Viver nas cidades impõe às pessoas a necessidade de ter uma renda, de se inserir em um sistema neoliberal capitalista que não oferece outra escolha senão sobreviver. O urbanismo, enquanto disciplina, surge como forma utópica de buscar uma equidade no meio urbano.


Referências:

ABRAMOVAY, Ricardo. Muito além da economia verde. São Paulo: Planeta Sustentável, 2012.

ACSELRAD, Henri. A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010.

ACSELRAD, Henri. Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011.

BERTH, Joice. Se a cidade fosse nossa. São Paulo: Jandaíra, 2019.

HARVEY, David. O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2012

LIPOVETSKY, Gilles. Os Tempos Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2005.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 1990.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2013.

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava Jato. São Paulo: Leya, 2017.

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2 comentários para "Urbanismo para que(m)?"

  1. A proposta do indiano coincide com filosofias mais abrangentes denominadas ECOSOFIA, proposta pelos filósofos Giles Deleuze e Felix Guattari. Sua adaptação ao ambientalismo ‘em moda’ pode coincidir com vitoriosa iniciativa intelectiva de superação do conservadorismo e preconceito vigentes.

  2. Miguel Batista da Silva disse:

    Excelente material, nesse contexto a cidade de São Paulo, faz escolhas totalmente antagônicas quando elege um prefeito e um governador totalmente voltados ao interesse capitalista, isso é falta de conhecimento, má fé ou pura ignorância?

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