Brasil: Que fazer diante da militarização do cotidiano?

Na política, multiplicam-se os “coronéis” e “delegados”. No ensino, parte da população apoia as escolas-quartéis. Multiplicam-se os CACs. As raízes são profundas: remontam ao Brasil das Fazendas e Espadas. Para enfrentá-las, é preciso compreendê-las

Foto: Bruna Prado/AP
.

É da existência do social a dimensão militar, religiosa e econômica. Ela compõe realidade tripartite que se repete em todas as formações societais. Logo, a defesa responsável da sociedade civil está na ordem oposta ao esforço de subtração da cartografia militar do território social. Ou seja, minha escritura está distante do antimilitarismo contemporâneo. Por certo, para a defesa da sociedade é imprescindível a presença de aparato militar. A questão, portanto, é política. Exatamente porque é fundamental defender a sociedade civil da descarga belicosa do poder militar, dado que o corpo social não pode ser de ordem semelhante ao campo de guerra. A proteção da sociedade é prerrogativa da política civil. O militar deve, disciplinadamente, executar a política de defesa. Obviamente, não trago uma questão nova, a subordinação do militar ao político está no horizonte da institucionalidade moderna. Assim sendo, o grau de liberdade da sociedade civil é inversamente proporcional ao de autonomia militar no interior do Estado Democrático de Direito. Em substância, o sonho militar de sociedade, ou melhor, a militarização do cotidiano pesa sobre a democracia como um pesadelo distópico. O processo de modernização das sociedades percorre caminho espiral de inclinação paradoxal, que polariza emancipação e regulação dos corpos. Dessa forma, cabe à sociedade civil questionar, amiúde, o campo de militarização do cotidiano, que inviabiliza a existência de democracia democrática.

O avanço da militarização nas sociedades modernas é um fenômeno geral que se amplia a partir da Era dos Impérios com a formação do exército de massa e a aplicação do serviço militar obrigatório. A partir do século XX, com as duas guerras totais, a questão militar passa a compor parte significativa da economia política e a participação de militares fardados ou à paisana nos governos tornou-se rotina na maioria dos países. De forma que o campo civil e militar desde então apresentam uma hierarquia invertida, na qual os interesses políticos civis estão subordinados à economia de guerra. Efetivamente, a militarização consiste na ausência de distinção entre a sociedade civil e a militar, também, na subalternidade do corpo paisano ao militar. Não é tudo. Há distópico afã de transformação das instituições civis em caserna. Trata-se de progressão da ideia-mágica que consiste na substituição da democracia pela disciplina militar. Proposição posta com base na seguinte sentença: imponha o rigor militar nas escolas, nos presídios, na segurança pública e todos os males sociais serão resolvidos. É o sonho militar de sociedade já descrito por Michael Foucault, que desdobra na crescente militarização do cotidiano a fim de contornar, tresloucadamente, a incerteza do turbilhão moderno sob a égide da ampliação da reprodução de capital e o medo da insurreição das massas de excluídos.

A militarização da sociedade civil não é a imposição de poder de uma casta fardada ou a emergência de “partido militar”, mas algo mais difuso. Trata-se da sobreposição da logística militar sobre a economia política, da ética militar sobre a civil. Ela está imbricada ao diapasão capitalista contemporâneo. Fato, sem a pólvora dos canhões abrindo todas as barreiras para o fluxo do capital, o capitalismo não seria a tal “destruição criativa” que indicia o tom revolucionário da modernidade. O capitalismo tardio do pós-guerra desloca a militarização dos campos de batalha para o cotidiano. A militarização total é o esbatimento da sociedade civil. É endocolonização, isto é, a colonização ou subtração da cidadania operando dentro do próprio território nacional. Sem a destruição constante das bases dos direitos de bem-estar social é impossível ampliar a acumulação necessária de capital. Portanto, a militarização do cotidiano é, acima de tudo, processo de sujeição dos corpos a fim de torná-los dóceis e produtivos. Ela resulta primeiramente de ação truculenta de repressão sobre a carne humana para depois assumir a forma de desejo dominante.

É a perpetuação das práticas belicosas, nomeada Guerra Pura por Paul Virilio. Em poucas palavras, é a preparação infinita para uma guerra que, ordinariamente, combate fantasmas. Ela despolitiza e empobrece a sociedade civil em benefício da economia de guerra, que produz e concentra capital nas mãos dos senhores das armas e das Nações-Império. É a guerra nomeada hoje de 4ª geração que opera em teatro belicoso total e totalizante, em que todos espaços existenciais se transformam, rapidamente, em campo de batalha. Ela pode operar como lawfare (guerra jurídica), bombas de contrainformação (fake news), contrarrevolução molecular (guerra cultural) e, também, na guerra contra as drogas (sociedade de vigilância). Enfim, é a guerra de todos contra todos que opera no cotidiano e que impulsiona o avanço da extrema direita eendocolonização do Estado de Exceção. Basta olhar panorâmico para identificar o medo e a corrosão das democracias na contemporaneidade.

Diante do exposto, sigo na escritura para descrever a militarização do cotidiano no território nacional a partir de olhar crítico-sensível. O Brasil ingressa na modernidade capitalista a partir do final do século XIX arrastado por uma república da espada, ou seja, a militarização da sociedade civil marca a genealogia da história política republicana e é, também, o estorvo que impede a democratização do país no tempo presente. É a militarização da sociedade civil que impossibilita a completa transformação das instituições militares no “Grande Mudo”. A naturalização do corpo militar como ator político é uma realidade que se estende ao longo da temporalidade republicana. De fato, o Brasil – após Estado Monárquico baseado na formação de sistema escravocrata – seguiu mudança sem transformação significativa, configurando uma República de Fazendeiros que, independentemente, da modernização capitalista ainda carrega no campo o poder do agronegócio e na política, o do homem fardado.

O sonho militar de sociedade está no horizonte do imaginário conservador do país. Sem dúvida, não resulta de acidente ideológico a relação entre o desejo militarizante de sociedade que domina regiões do Brasil e a presença de economia baseada na produção agroexportadora. O Brasil nasce independente como uma nação de fazendeiros que deve assegurar a ordem com a contenção de uma massa de negros escravizados distantes das prerrogativas da cidadania liberal. Nesse quadro histórico, a encolonização foi a geopolítica necessária para salvaguardar a paz dos senhores em detrimento da formação de nação, verdadeiramente, democrática e cidadã. Não é sem razão que os inimigos do Estado-nação brasileiro de ontem e de hoje são antes corpos nacionais do que estrangeiros.

É o inimigo interno que mobiliza as forças de defesa nacional. A militarização do cotidiano nacional resulta de formação de nação, profundamente desigual e, naturalmente, permeada pelo medo. No passado o medo da massa de negros escravizados e no presente a de afro-brasileiros marginalizados da cidadania consignada nas promessas da Constituição Cidadã. O sonho militar de sociedade inscreve o projeto político das elites e da classe média para dirimir o medo e a insegurança que impera no território brasileiro. A questão militar, particularmente no Brasil, atravessa o corpo fardado, porque essencialmente compõe a militarização da identidade e da consciência coletiva nacional. O processo brasileiro de militarização da sociedade civil, ou seja, da política corresponde à potência dissuasória para subtrair a emergência de revolução molecular e dos conflitos de raça e classe. Objetivamente, as forças tradicionais da elite branca desencadeiam o medo da insurreição das forças populares e o poder endocolonial é, imediatamente, acionado.

Três acontecimentos importantes evocam nossos laços militarizantes no tempo presente: a bolsonarização da política, escolas cívico-militares e a expansão do armamentismo. São frutos ruins à democracia advindos da mesma árvore. A bolsonarização da política corresponde ao deslocamento de parcela significativa de militares fardados ou à paisana para o centro da política civil. A transformação rápida das escolas públicas em cívico-militares – com a presença de militares da reserva a fim de impor a disciplina militar sobre a comunidade escolar – corrobora o sonho militar de sociedade. E, finalmente, a expansão da posse de armas como afirmação da liberdade do “eu” acuado encerra a militarização do cotidiano, corpos paisanos com armas de guerra deflagram forte movimento armamentista como parte importante da rarefação do Estado Democrático de Direito.

É impróprio o debate sobre a eficiência da militarização sobre os males nacionais. A questão é de outra ordem, visto que o Brasil quando intensifica a militarização do cotidiano adentra no transpolítico. Isto é, no esgotamento da política em nome da hierarquia e da disciplina. A política é baseada no diálogo horizontal, no conflito e na soberania popular. Não há democracia no interior de uma sociedade militarizada. O sonho militar de sociedade é o desaparecimento da política com a substituição da palavra pelas armas e do conflito pela guerra. Em nome da engenharia social de matiz neoliberal e pragmática impõe-se o silêncio e a negligência sobre a perigosa militarização da sociedade civil no Brasil. Ela decorre, essencialmente, de forma social escravista que persiste na longa duração e que arrasta ideologicamente a política nacional para o fascismo de cor tão bem descrito por Muniz Sodré e que revela, objetivamente, o pesadelo de uma sociedade desigual, equilibrada e dócil. O fascismo de cor que emerge no Brasil republicano conjuntamente com a transformação do militar em ator político tem suas bases no medo dos movimentos populares organizados. Uma sociedade civil realmente autônoma e democrática não tem medo. O Brasil é militarizado porque tem medo.

Leia Também:

Um comentario para "Brasil: Que fazer diante da militarização do cotidiano?"

  1. Fernando Pereira Bretas disse:

    E comp fomos levados a este estado de coisas? Como um país que teve em seus quadros educacionais mentes como a de Anizio Teixeira e Paulo Freire nunca conseguiu estabelecer um ensino público de qualidade a não ser em instituições específicas como o Colégio Pedro II, para a classe média, filhos da burocracia estatal da então capital federal? E
    Ou em casos específicos, sem nunca estabelecer um sistema realmente libertador e formador de consciência crítica? Ora, pois isso nunca foi do interesse da elite dominante. Conhecimento é poder. Ninguém dá poder a outro a não ser para obter mais poder. Então não havia nenhuma vontade de desenvolver o povo brasileiro. Por isso não há ensino de qualidade no país. Nem nunca haverá.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *