Em defesa de uma biblioteca virtual
Publicado 14/06/2012 às 17:17
Grupo de pesquisadores condena fechamento de importante repositório de obras, em nome da “propriedade intelectual” e propõe buscar alternativas para conciliar direitos dos autores e do públicos
Por Alexandre Nodari, Eduardo Sterzi, Eduardo Viveiros de Castro, Idelber Avelar, Pablo Ortellado, Ricardo Lísias e Veronica Stigger*
A liberdade de expressão moderna é indissociável da invenção da imprensa, ou seja, da possibilidade de reproduzir mecanicamente discursos e imagens, fazendo-os circular e durar para além daquele que os concebeu. A própria formação da esfera pública, bem como do ambiente de debate científico e universitário, está umbilicalmente conectada à generalização do acesso aos bens culturais. Sem a disseminação da diversidade e do confronto de opiniões e de teorias, a liberdade de expressão perde seu sopro vital e se torna mero diálogo de surdos, quando não monólogo dos poderosos.
A internet eleva ao máximo o potencial democrático da circulação do pensamento. E coloca, no centro do debate contemporâneo, o conflito entre uma visão formal-patrimonialista e outra material-comunitária da liberdade de expressão. Tal cisão, bem real, pareceria manifestar-se no conflito entre direitos autorais e direito de acesso. Estes não são, porém, necessariamente antagônicos, pois o prestígio moral e econômico de um autor ou de uma obra está, em última análise, ligado à sua visibilidade. São incontáveis os exemplos de escritores e editoras que não só se tornaram mais conhecidos, como tiveram um incremento na venda de suas obras depois que estas apareceram para download. O público que baixa livros é o mesmo que os compra.
Assim, o verdadeiro conflito não é entre proprietários e piratas, mas entre monopolistas e difusionistas. A concepção monopolista-formal dos direitos autorais está embasada na ideia de que aquilo que confere valor à obra é a sua raridade, o seu difícil acesso; já a difusionista-democrática se ampara na inseparabilidade de publicidade e valor. A internet favorece a segunda concepção, uma vez que a existência física do objeto cultural que sustentava a primeira vai sendo substituída por sua transformação em entidade puramente informacional. Desse modo, também se produz uma transformação da natureza das bibliotecas. As novas bibliotecas virtuais se baseiam no armazenamento e na disseminação tais como as antigas bibliotecas materiais, mas oferecem uma mudança decisiva porque a estocagem depende da distribuição e não o contrário: é a difusão que garante o armazenamento descentralizado dos arquivos.
É uma biblioteca sem fins lucrativos e construída nesses moldes modernos e democráticos que se acha sob ameaça devido ao processo movido pela Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), sob o pretexto de infringir direitos autorais. O alto preço dos livros, o desaparelhamento das bibliotecas públicas e o encarecimento do xerox levaram um estudante universitário a disponibilizar online textos esgotados ou de difícil acesso para seus colegas. A iniciativa cresceu, atraiu a atenção de estudantes e professores de todo o país e se tornou a mais conhecida biblioteca virtual brasileira de textos acadêmicos, ganhando prestígio comparável ao site “Derrida en castellano”, que sofreu processo semelhante e foi absolvido nas cortes argentinas, como esperamos que o “livrosdehumanas.org” o será pela Justiça brasileira.
Os defensores da concepção patrimonialista dos direitos autorais costumam pintar cenários catastróficos em que a circulação irrestrita de obras gera esterilidade criativa. No entanto, ignoram, ou fingem ignorar, que os textos nascem sempre de outros textos e que o autor é, antes de tudo, um leitor. Hoje, lamentamos a destruição das grandes bibliotecas do passado, como a de Alexandria, e das riquezas que elas protegiam. Poupemo-nos de chorar um dia pela aniquilação das bibliotecas virtuais e pela cultura que elas podiam ter gerado.
*Alexandre Nodari é doutor em Teoria Literária pela UFSC e editor da Cultura e Barbárie; Eduardo Sterzi é escritor e professor de Teoria Literária na Unicamp; Eduardo Viveiros de Castro é antropólogo e professor do Museu Nacional/UFRJ; Idelber Avelar é crítico literário e professor da Tulane University (Nova Orleans, EUA); Pablo Ortellado é professor de Gestão de Políticas Públicas e de Estudos Culturais na USP, coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai); Ricardo Lísias é escritor, autor de “O céu dos suicidas”, entre outros; Veronica Stigger é escritora, professora de História da Arte na FAAP, coordenadora do curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema (AIC).
Obrigado Rogério Centofanti,
Esta é uma cruzada que está apenas começando. Distinguir as duas coisas, acesso e apropriação, é fundamental para que uma nova compreensão dos bens culturais (sobretudo dos livros digitais ou digitalizados) tenha lugar.
Abraço,
Manuel Moreira
Compartilho de sua opinião, Manuel Moreira da Silva. Afinal, uma coisa é acesso a uma dada obra, e outra é apropriação dessa mesma obra. Pirata é o que se apropria indevidamente dos conteúdos, e está cheio disso por ai.
Estou de pleno acordo com os autores do artigo e penso que a mentalidade jurídica no tocante a direitos autorais, sobretudo de livros de ficção e não-ficção, só mudará quando os próprios produtores culturais – e portanto escritores, cientistas, filósofos etc., assimilarem a concepção difusionista-democrática acima descrita. Claro, entendo aqui por assimilação a capacidade deses mesmos autores intervirem em prol de de um novo entendimento em torno the criação, the difusão e do valor dos bens culturais que ultrapasse a rígida noção de direito autoral vigente na atualidade. Essa fortemente vinculada à noção de direito de propriedade individual própria dos séculos XVII a XX.
Pirataria é crime porra!