Trabalho: Retrato do “andar de baixo”

Renda da metade mais pobre dos trabalhadores brasileiros cresceu, mas está aquém do nível pré-pandemia. Eles ganham, em média, míseros R$ 824. Desigualdade continua brutal e expõe desafios estruturais que o Brasil deve enfrentar urgentemente

Foto: Pedro Stropasolas/Brasil de Fato
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O Brasil apresenta sinais de transformação na distribuição de renda entre os trabalhadores, conforme demonstra recente levantamento realizado pelo diretor do FGV Social, Marcelo Neri. A análise dos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE revela que, embora a renda na base da pirâmide social brasileira esteja crescendo mais aceleradamente que no topo, o abismo entre os extremos permanece colossal e estruturalmente enraizado.

Os dados indicam que, na parcela dos 50% dos trabalhadores mais pobres, o aumento da renda no quarto trimestre de 2024, comparado ao mesmo período de 2023, foi de 10,7%, superando a média populacional de 7,1% e os 6,7% registrados entre os 10% mais ricos (Valor Econômico, 2025). No entanto, este crescimento proporcional maior na base deve ser contextualizado frente à brutal desigualdade absoluta: enquanto o rendimento médio no grupo dos 50% mais pobres é de apenas R$ 824, no conjunto dos 10% de trabalhadores mais ricos alcança R$ 8.096 – uma diferença quase dez vezes maior.

O trabalho de subsistência na economia brasileira

Um aspecto alarmante revelado pelos dados é que a renda média dos 50% mais pobres (R$ 824) representa apenas 58% do salário mínimo vigente em janeiro de 2024 (R$ 1.412). Este descompasso evidencia a magnitude do setor de subsistência na economia brasileira, onde metade dos trabalhadores ocupados recebe, em média, menos que o piso legal estabelecido para garantir as necessidades básicas de um trabalhador e sua família.

Esta realidade se torna ainda mais preocupante quando consideramos que a renda domiciliar per capita dos 50% mais pobres (R$ 2.170), embora superior à renda individual, ainda representa um valor insuficiente para atender adequadamente às necessidades básicas de uma família em termos de alimentação, moradia, saúde, educação e transporte, especialmente nos grandes centros urbanos onde o custo de vida é mais elevado.

Análise dos fatores de redução da desigualdade

A decomposição dos fatores que influenciaram o crescimento da renda revela que a queda do desemprego emerge como o principal impulsionador, contribuindo com 3,61 pontos percentuais para o aumento médio da renda total e 4,19 pontos percentuais para os 50% mais pobres. O aumento da escolaridade contribuiu com 0,86 ponto percentual para o crescimento médio da renda total, mas com 1,21 ponto percentual para os 50% mais pobres, evidenciando seu potencial como vetor de mobilidade social.

Para mensurar com maior precisão o impacto do desemprego sobre a desigualdade, Marcelo Neri elaborou o chamado “índice de desemprego igualitário”, que quantifica o percentual da população ocupada no grupo dos 10% mais pobres. Este indicador avançou de 17,6% no fim de 2022 para 18,5% no quarto trimestre de 2023, demonstrando a maior inserção dos trabalhadores mais vulneráveis no mercado de trabalho. O índice de Gini do trabalho apresentou queda de 0,7 ponto percentual em 2023, passando de 0,506 para 0,499.

Tabela 1: Variação da Renda e Fatores de Influência (4º tri/2023 até 4º tri/2024)

Grupo de TrabalhadoresVariação da Renda (%)Renda Média (R$)Proporção do Salário Mínimo
Total7,1%
50% com menor renda10,7%8240,58
10% com maior renda6,7%8.0965,73

Tabela 2: Efeito por Tipo de Fator (em pontos percentuais)

Tipo de efeitoTotal50% com menor renda10% com maior renda
Salário-mínimo0,561,040,05
Aumento do total de ocupados3,614,192,70
Aumento da escolaridade0,861,210,26
Taxa de participação0,130,280,01

Salário mínimo e informalidade: dinâmicas da desigualdade

A política de valorização do salário mínimo, apesar de fundamental, tem efeito limitado diante da realidade do mercado de trabalho brasileiro. O estudo da FGV Social demonstra que o efeito do aumento do salário mínimo de R$ 1.320, em maio de 2023, para R$ 1.412, em janeiro de 2024, contribuiu com 1,04 ponto percentual para o crescimento da renda dos 50% mais pobres, contra apenas 0,05 ponto percentual para os 10% mais ricos.

Este impacto diferenciado do salário mínimo nos diferentes estratos sociais se explica, em parte, pela função de “farol” que ele exerce, influenciando inclusive os rendimentos no mercado informal. Como observa Bruno Imaizumi, da LCA Consultores, “essa política para o salário mínimo influencia não só o trabalhador formal como também o informal. O salário mínimo funciona como um balizador de rendimento do trabalho informal” (Valor Econômico, 2025).

No entanto, a persistência de uma alta taxa de informalidade, estabilizada em 39% desde o fim de 2023 até janeiro de 2025, impõe um limite estrutural à eficácia dessas políticas. A informalidade é particularmente prevalente entre os trabalhadores mais vulneráveis, contribuindo para a perpetuação de rendimentos abaixo do salário mínimo legal e alta instabilidade de renda.

O paradoxo da mobilidade social brasileira

Embora os indicadores apontem para uma redução da desigualdade medida pelo índice de Gini, a mobilidade social efetiva permanece um desafio estrutural. A distância absoluta entre a renda média dos 50% mais pobres (R$ 824) e dos 10% mais ricos (R$ 8.096) implica que, mesmo mantendo-se o ritmo atual de crescimento mais acelerado na base (10,7% contra 6,7% no topo), seriam necessárias várias gerações para uma convergência significativa.

Este paradoxo da mobilidade social brasileira – onde observamos simultaneamente redução da desigualdade relativa e persistência de enormes disparidades absolutas – revela a complexidade do desafio distributivo no país. O abismo entre o topo e a base da pirâmide é tão profundo que mesmo melhorias consistentes na base produzem impactos limitados na estrutura global da desigualdade.

Bruno Imaizumi ressalta que “a renda ainda está abaixo do nível anterior à pandemia, o que exige cautela nas análises” (Valor Econômico, 2025). Esta observação é crucial para contextualizar os aparentes avanços recentes, que em parte representam apenas uma recuperação parcial de perdas anteriores, principalmente entre os trabalhadores mais vulneráveis.

Dimensões estruturais e setoriais da desigualdade

A análise setorial da economia brasileira oferece insights importantes para compreender a persistência de rendimentos extremamente baixos na base da pirâmide. Setores intensivos em mão de obra pouco qualificada – como serviços domésticos, comércio varejista, construção civil e agricultura familiar – concentram grande parte dos trabalhadores de baixa renda e apresentam elevados índices de informalidade.

A heterogeneidade produtiva da economia brasileira, com imensos diferenciais de produtividade entre setores e dentro dos próprios setores, contribui para a manutenção de um amplo contingente de trabalhadores em atividades de baixíssima produtividade e remuneração. Este padrão de “modernização conservadora” combina bolsões de alta produtividade e tecnologia avançada com vastos segmentos operando em condições próximas à subsistência.

O crescimento mais acelerado da renda na base da pirâmide (10,7%) representa um movimento na direção correta, mas a magnitude do desafio distributivo exige transformações estruturais mais profundas, que alterem os padrões de incorporação produtiva e social dos trabalhadores mais vulneráveis.

Além dos números: implicações para o desenvolvimento social

A concentração de metade dos trabalhadores brasileiros em atividades que geram rendimentos médios inferiores ao salário mínimo legal (em média, 58% dele) tem profundas implicações sociais. Esta realidade impõe severas restrições ao acesso a bens e serviços essenciais, limita o potencial de formação de capital humano, compromete a saúde e o bem-estar das famílias e reproduz intergeracionalmente os ciclos de pobreza e exclusão.

Considerando que a renda domiciliar per capita dos 50% mais pobres no quarto trimestre foi de R$ 2.170, verificamos que, mesmo somando todas as fontes de renda da família, grande parte da população brasileira vive em condições de significativa precariedade material. Esta realidade afeta não apenas as condições de vida presentes, mas compromete o potencial de desenvolvimento humano e econômico futuro do país.

O aumento de 10,7% na renda dos 50% mais pobres, embora superior ao crescimento médio, representa em termos absolutos um incremento de apenas R$ 88 na renda média mensal destes trabalhadores. Este valor, embora não desprezível para quem vive em condições de restrição orçamentária severa, é claramente insuficiente para promover transformações substantivas nas condições de vida.

Desafios para uma transformação estrutural

A análise técnica dos dados sobre a distribuição de renda no Brasil revela um movimento de redução da desigualdade que, embora significativo, precisa ser dimensionado frente à magnitude das disparidades existentes. Os fatores econômicos – como a queda do desemprego, o aumento da escolaridade e a política de valorização do salário mínimo – produzem impactos positivos, mas insuficientes para uma transformação estrutural da desigualdade.

A persistência de rendimentos médios equivalentes a apenas 58% do salário mínimo para metade da população trabalhadora revela a extensão do setor de subsistência na economia brasileira e a fragilidade dos mecanismos de proteção social e trabalhista. Uma transformação estrutural deste cenário exigiria não apenas a continuidade e intensificação das políticas que têm favorecido o crescimento da renda na base, mas também intervenções mais profundas no padrão de desenvolvimento produtivo e na incorporação dos trabalhadores mais vulneráveis a setores de maior produtividade.

Os avanços na redução da desigualdade relativa, ainda que importantes, convivem com a persistência de um abismo absoluto entre a base e o topo da pirâmide social brasileira. A sustentabilidade destes avanços e a possibilidade de uma transformação mais profunda dependerão da capacidade de articular políticas de curto prazo – como a valorização do salário mínimo e a expansão do emprego – com transformações estruturais de longo prazo nos padrões de produção, distribuição e proteção social.

Por fim, é fundamental reconhecer que a redução consistente e significativa da desigualdade brasileira exigirá um compromisso social e político de longo prazo, capaz de priorizar a inclusão produtiva dos trabalhadores mais vulneráveis e a construção de uma economia que combine dinamismo produtivo com distribuição equitativa dos frutos do desenvolvimento.


Referências:

Valor Econômico. Melhora de emprego e escolaridade acelera renda de mais pobres. Valor Econômico, 7 abr. 2025. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2025/04/07/melhora-de-emprego-e-escolaridade-acelera-renda-de-mais-pobres.ghtml. Acesso em: 7 abr. 2025.

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