Tempos de empreendedores sem capital

Maiorias pejotizadas, exploradas por plataformas ou em “empregos de merda” criticam a CLT e buscam saída em promessas de sucesso mágico, como as dos coaches. Talvez, mais que renunciar a direitos, isso seja tentativa de superação subjetiva, ainda que individual, de uma vida precária

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A recente onda de repúdio à CLT costuma encontrar duas explicações principais. De um lado, argumenta-se que esses ataques são mera reprodução de uma ideologia neoliberal e que os detratores apenas repetem um discurso imposto pela burguesia.  Do outro, afirma-se que os indivíduos querem liberdade e autonomia e que esses elementos só podem ser encontrados no empreendedorismo. Para este grupo, carteira assinada é sinônimo de fracasso e empreendedorismo é equivalente a liberdade.

Embora o componente ideológico explique parte do problema, ele não abarca uma série de nuances presentes no cotidiano dos trabalhadores que, eventualmente, fazem críticas à CLT. O pano de fundo dessa discussão poderia ser o seguinte: qual o tipo de emprego de carteira assinada que está disponível para a maioria da população brasileira? De acordo com o IBGE, a cada 10 trabalhadores com carteira assinada, 7 ganham até dois salários-mínimos. Ademais, 90% dos empregos formais criados em fevereiro de 2025 são em vagas que pagam até 2 salários[1]. A esses dados, acrescentamos o fato de que o assédio moral, o controle e a extensão da jornada de trabalho e as longas horas de deslocamento no transporte público compõem a experiência cotidiana desses trabalhadores.

Isso nos levaria a reelaborar a afirmação inicial. Os trabalhadores não repudiam o conjunto de direitos conferidos pela CLT, mas sim, os empregos com carteira assinada que estão realmente disponíveis no mercado: baixos rendimentos, assédio moral e, por vezes, em escala 6 x 1. Aqui, o componente ideológico, enquanto prática e discurso, entra em cena. Essa precariedade poderia ser atribuída a uma série de motivos, como a ânsia dos patrões em rebaixar os salários para aumentar a taxa de lucro, os políticos que defenderam uma reforma trabalhista que rebaixou, ainda mais, as condições laborais de milhões de brasileiros, entre outros. Entretanto, a carteira de trabalho, por si só, aparece como causa do problema. Em síntese, parte-se de uma insatisfação real e concreta vivenciada por milhões de pessoas para apresentar um engodo como solução.

Por trás dessa nova onda de ataques às legislações protetoras do trabalho está diretamente o avanço das empresas-plataforma e, consequentemente, a expansão do trabalho digital — seja aquele baseado em uma localidade, como o realizado por entregadores, motoristas e cuidadores, ou os micro e macrotrabalhos remotos desempenhados por treinadores de IA, moderadores de redes sociais, freelancers, entre tantos outros. Em sua grande maioria, subsidiadas pelo capital financeiro, empresas como Uber, Deliveroo, Workana e Amazon Mechanical Turk, são extremamente dependentes dos dados, por elas apropriados, de seus consumidores e trabalhadores. Dados que os investidores apostam poder produzir vantagens competitivas através de eficiências de custos na produção e na circulação de mercadorias (Antunes, Gonsales, van der Laan, 2025).

A captura de dados em escala está estruturalmente vinculada à necessidade de as empresas plataforma consolidarem suas forças de trabalho às margens de qualquer legislação protetora do trabalho e “justifica” o enorme montante de capital e trabalho por elas despendidos nessa tarefa, seja fazendo lobby, influenciando legislações ou propagando o empreendedorismo de si mesmo.

Com a obrigatoriedade de vínculos formais, as plataformas seriam forçadas a reduzir o número de trabalhadores disponíveis, o que impactaria diretamente sua capacidade de atuação em múltiplos mercados, encarecendo os serviços, limitando o acesso, reduzindo receitas e restringindo a coleta massiva de dados. Dessa forma, a regulamentação comprometeria a lógica de dupla geração de valor dessas empresas — baseada tanto na exploração do trabalho quanto na especulação com dados de trabalhadores e consumidores.

A proteção social na periferia do capitalismo

Apesar da contradição das legislações protetoras do trabalho entre a atenuação de danos e a legitimação do trabalho-mercadoria, a CLT representa um conjunto de direitos que possuem, como objetivo, impor alguns limites à exploração desenfreada do capital sobre o trabalho. A garantia de férias remuneradas, o 13º salário, o FGTS, o auxílio maternidade, o descanso semanal remunerado são direitos conquistados pela luta dos trabalhadores e trabalhadoras e buscam garantir algum nível de dignidade aos indivíduos nas relações laborais.

Pois bem, em um país da periferia do capitalismo como o Brasil, com um modelo de desenvolvimento agroexportador, atravessado por décadas de desindustrialização, a grande massa de empregos oferecidos à população são ocupações precárias, com baixa remuneração. Dito de outro modo, a qualidade dos empregos criados por um país está diretamente relacionada ao modelo de desenvolvimento econômico construído nessa formação social[2]. Assim, a particularidade do modelo de acumulação capitalista brasileiro é caracterizada pela articulação entre o informal e formal, por um desenvolvimento desigual e combinado capaz de elevar a riqueza social[3] sem, no entanto, gerar empregos de qualidade e com bons rendimentos – haja vista a crescente expansão de um protelariado de serviços[4].

Essa contradição no desenvolvimento capitalista brasileiro se atualiza com a expansão do MEI e da pejotização: se por um lado permite ao Estado incluir juridicamente os trabalhadores informais e desprotegidos na formalização – aumentando a arrecadação tributária -, por outro, institui categorias econômicas deslocadas da lógica de proteção social e trabalhista prevista na CLT por meio do discurso da autonomia e empreendedorismo. Além disso, a aprovação da reforma trabalhista, a possibilidade de terceirização de atividades fins e a ampliação da pejotização, entre outros ataques, foram capazes de intensificar a precarização em um mercado de trabalho historicamente precário.

Se parte do problema é visualizado pela baixa qualidade dos empregos formais, a outra parte é representada pelo fato de que metade da população brasileira está, historicamente, na informalidade e às margens da proteção social. Mais do que categorias de análises apartadas e estanques – formal e informal – a trajetória de vida de milhões de brasileiros é marcada pela viração, ou seja, pelo trânsito entre formalidade e informalidade, ou mesmo pela ocupação em ambas: emprego CLT no meio da semana e realização de bicos no final de semana, como forma de complementar a renda. Diante desse contexto, a pejotização e o MEI aprofundam essa viração, prometendo autonomia e entregando ausência de direitos.

Ideologia e aparelhos de hegemonia

Reconhecer o papel da ideologia é compreender que os indivíduos não vivem isolados na sua rotina e não possuem total liberdade para a ação, mas que há uma relação recíproca entre sujeito e estrutura social capaz de forjar subjetividades. Ao mesmo tempo os sujeitos forjam, coletivamente e em conjunturas específicas, as estruturas sociais. Os aparelhos de hegemonia como escola, igreja, família, redes sociais, filmes e jornais são os locais de primazia para a formação dessas subjetividades. Segundo Gramsci: “As ideias e as opiniões não ‘nascem’ espontaneamente no cérebro de cada indivíduo: tiveram um centro de formação, de irradiação, de difusão, de persuasão[5]”. As redes sociais, atualmente, possuem um papel central para essa prática ideológica e os discursos de influencers ajudam a explicar a avalanche de críticas contra a CLT.

Embora a vontade de abrir seu próprio negócio e as críticas às condições de trabalho não sejam algo novo no Brasil, a recente onda de ataques à CLT, sobretudo entre jovens, possui relação direta com a atividade de centenas de influenciadores e coaches que se aproveitam da precariedade da maioria dos empregos formais no país para angariarem curtidas, alavancarem seus perfis e venderem seus cursos como caminhos possíveis de empreendedorismo e independência financeira.[6] Em síntese, os influenciadores se valem de um problema real – a má qualidade dos empregos formais no Brasil – e apresentam um caminho ilusório como solução: o empreendedorismo sem capital.

A campanha contra direitos trabalhistas, entretanto, é uma prática antiga e recorrente dos grandes meios de comunicação do país. Basta lembrarmos dos editoriais de O Globo contra a criação do 13º salário ou, na última década, da campanha deste e de outros jornalões – Folha de São Paulo e Estadão –  a favor da reforma trabalhista e previdenciária. A série “Viração: Novos Empreendedores”, lançada neste mês na Globoplay, evidencia as afinidades eletivas entre o discurso coach e a indústria cultural brasileira – principalmente quando o assunto é trabalho e proteção social.

Essa estratégia de enfrentar problemas sociais de forma individual, investindo em um hiperindividualismo precário, encontra eco no discurso e nas práticas reproduzidas por uma série de aparelhos de hegemonia burguesa. A teologia da prosperidade, as disciplinas de empreendedorismo do novo ensino médio, a indústria cultural, enfim, por todos os lados haverá discursos e práticas na sociedade que darão legitimidade para essa estratégia empreendedora.  Assim, encontramos a explicação desse problema olhando menos para a subjetividade dos trabalhadores e mais para a dimensão objetiva das instituições com as quais eles e elas se relacionam.

Uma questão relevante é que boa parte da população brasileira está acostumada a “se virar” para fechar as contas no fim do mês. Os influenciadores, ao chamarem a viração de empreendedorismo, garantem um verniz de dignidade a uma prática sem proteção social que está presente há muito tempo na vida de milhões de brasileiros. “Você não é um trabalhador precário, você é um empreendedor”.

A estratégia de transformar a viração em virtude mascara a ausência de direitos com uma roupagem de liberdade, consolidando uma forma de consentimento em que vigora a precariedade. Ora, se podemos dizer que a experiência da precariedade produz ressentimento, não seria menos verdade que também produz o desejo de reconhecimento. Desse modo, a crítica à CLT não é, necessariamente, um repúdio total aos direitos sociais, mas deve ser interpretada, também, como uma tentativa de superação subjetiva do assédio moral e das condições precárias de trabalho. Nesse sentido, o desafio que se coloca é assegurar e reconstruir a proteção social para além do emprego formal, enfrentando as formas sociais de dominação que asseguram a constituição de um capitalismo selvagem e desigual na sociedade brasileira.


Referências:

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Empreendedorismo, autogerenciamento ou viração?: Uberização, o trabalhador just-in-time e o despotismo algorítmico na periferia. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, v. 11, n. 3, 2021.

ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

ANTUNES, Ricardo; GONSALES DE OLIVEIRA, Marco Antonio; VAN DER LAAN, Murillo. “Platform Capitalism”. Inequalities, 2, 9-32, 2025.

EXAME. Mais de 90% dos empregos criados em fevereiro são de até dois salários mínimos. Disponível em: https://exame.com/economia/mais-de-90-dos-empregos-criados-em-fevereiro-sao-com-salarios-de-ate-r-2-824/

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

Ministério do Trabalho. CAGED, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2025/marco/novo-caged-pais-gerou-431-995-empregos-formais-em-fevereiro.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013

SOUZA, Jéssica Matheus de. “O CLT não tem um dia de paz” A memeificação do trabalho formal no Brasil e o descontentamento viral de uma geração. DeepLab, 2025.

SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. São Paulo, Hucitec, Anpocs, 2018.


Notas:

[1] CAGED. Ministério do Trabalho. https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2025/marco/novo-caged-pais-gerou-431-995-empregos-formais-em-fevereiro.

EXAME. Mais de 90% dos empregos criados em fevereiro são de até dois salários mínimos. Disponível em: https://exame.com/economia/mais-de-90-dos-empregos-criados-em-fevereiro-sao-com-salarios-de-ate-r-2-824/

[2] Isso não significa que o trabalho informal seja um elemento paralelo e resquício do atraso do país. Como já demonstrou Chico de Oliveira, em Crítica à razão dualista, a informalidade é funcional para o desenvolvimento desigual existente no Brasil e para a diminuição do custo de reprodução da força de trabalho.

[3] SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. São Paulo, Hucitec, Anpocs, 2018.

[4] ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

[5] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

[6] SOUZA, Jéssica Matheus de. “O CLT não tem um dia de paz” A memeificação do trabalho formal no Brasil e o descontentamento viral de uma geração. DeepLab, 2025.

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