Sindicatos: Porque a redução da jornada precisa ser central

Redistribuir tempo é tão civilizatório quanto redistribuir renda. E experiências mostram que seu sucesso depende da participação direta dos trabalhadores no processo. Qual o papel das organizações sindicais para desafiar a narrativa empresarial hegemônica?

Manifestantes em ato contra a jornada de trabalho 6×1, no Rio de Janeiro, no ano passado – crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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Este texto foi escrito por Ulisses Borges de Resende e Rafael Ávila Borges de Resende, com o título original “Redução da Jornada de Trabalho e o Fim da Escala 6×1: Desafios e Estratégias Sindicais no Brasil Contemporâneo”, e faz parte de um dossiê organizado pelo Cesit/Unicamp, Site DMT, Remir, GEPT/UNB e FCE/UFRGS e publicado em parceria com o Outras PalavrasLeia aqui a série completa

Introdução

O tempo de trabalho, longe de ser um simples parâmetro técnico de organização produtiva, constitui um campo de disputa simbólica, política e jurídica que atravessa a história do trabalho moderno. Da Revolução Industrial às atuais discussões sobre inteligência artificial e automação, a definição das jornadas, ritmos e pausas revela-se não apenas como um arranjo econômico, mas como um artefato civilizatório – expressão de valores, prioridades sociais e concepções de dignidade humana. Desde Marx, que qualificou a limitação da jornada como uma “barreira social” contra a apropriação ilimitada da vida pelo capital, até as teorias contemporâneas de Negt, Bourdieu e Nussbaum, a regulação do tempo emerge como um eixo estruturante para a efetivação de direitos sociais e para a própria qualidade da democracia.

No Brasil, essa disputa temporal adquire contornos particulares. A luta sindical, responsável por conquistas históricas como as oito horas diárias e o descanso semanal remunerado, consolidou-se no arcabouço jurídico nacional por meio da CLT e da Constituição Federal de 1988, dialogando com convenções internacionais da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Entretanto, nas últimas décadas, a precarização estrutural, o avanço de regimes extenuantes (como o 6×1) e a intensificação do trabalho em setores de serviços e comércio têm erodido esses marcos, recolocando o debate sobre o tempo no centro da agenda sindical.

Nesse contexto, a Proposta de Emenda Constitucional nº 8/2025[i], apresentada por meio do Movimento Vida Além do Trabalho – VAT em meio a um movimento de recuperação de políticas públicas voltadas ao trabalho após um período de retrocesso trabalhista (iniciado com a Reforma Trabalhista de 2017) irrompe como um marco potencial, ao propor a redução da jornada sem corte salarial e a superação de escalas exaustivas, resgatando o tempo protegido como direito social e como condição para o desenvolvimento humano. Mais que uma alteração normativa, trata-se de uma disputa paradigmática: a quem pertence o tempo que excede as necessidades estritas da produção? Qual o papel do Estado, das empresas e dos sindicatos na definição e na proteção desse tempo?

Este artigo parte da premissa de que redistribuir o tempo é tão estratégico e civilizatório quanto redistribuir renda. Ao articular fundamentos teóricos, evidências empíricas e análise jurídico-sindical, busca demonstrar que a redução da jornada, quando concebida como política pública e pactuada coletivamente, não representa um entrave à competitividade econômica, mas um vetor de saúde, cidadania e fortalecimento democrático. Ao final, pretende-se evidenciar que a disputa pelo tempo, no Século XXI, é também disputa pela forma e pela substância da própria vida social.

O tempo de trabalho como campo simbólico, estratégico e sindical

A jornada de trabalho não é apenas um critério técnico de organização laboral, mas um território de disputa simbólica, política e cultural – especialmente no campo da ação sindical. Desde os clássicos de Marx (2018), que valorizavam o limite da jornada como uma ‘barreira social’ à apropriação da vida capitalista, até teóricos contemporâneos, o tempo emerge como recurso vital e arena de enfrentamento.

No Brasil, o sindicalismo possibilitou conquistas históricas, como as oito horas diárias e o descanso semanal remunerado – consolidando-se na CLT (Decreto-Lei nº 5.452/1943) e reafirmados pela Constituição de 1988, com o acréscimo do limite semanal de 44 horas (art. 7º, XIII e XV) (Brasil, 1988). A conquista desses direitos demonstra a contribuição política dos sindicatos no estabelecimento de normas laborais civilizatórias.

Articulando-se ao plano jurídico nacional, normas internacionais da OIT, como as Convenções nº 1 (1919) e nº 47 (1935), trouxeram às lutas sindicais expressões de impacto global: limitar a jornada e proteger o tempo de vida como condição de dignidade humana (ILO, 1919; ILO, 1935).

A literatura contemporânea reforça a eficácia dessas medidas. Estudos da OIT (2023) e da Eurofound (2023) mostram que a redução da jornada, aliada à reorganização organizacional e à previsibilidade dos horários, gera benefícios tangíveis à saúde, à produtividade e ao equilíbrio trabalho-vida, comprovando a viabilidade das demandas sindicais.

Casos comparados[ii] – como Leis Aubry na França (1998-2000), piloto na Islândia (2015-2019), Reino Unido e Portugal – comprovam não apenas ganhos subjetivos como bem-estar e menor estresse, mas também resultados objetivos como aumento de produtividade, retenção de pessoal e uso do tempo livre para estudo (Estevão e Sá, 2006; Haraldsson e Kellam, 2021; Autonomy et Al., 2023;[iii] Portugal, 2024).

Para o sindicalismo, defender a redução da jornada extrapola a reivindicação por mais horas livres: significa disputar politicamente o tempo social como direito. Hans-Jürgen Urban (2010) argumenta que os sindicatos atuam como agentes coletivos na negociação do “tempo de não-trabalho”, ampliando os direitos à vida além da produção. Essa concepção aproxima-se do “mandato cultural” proposto por Negt (1984), para quem a regulação do tempo livre deve promover a emancipação social, e dialoga, ainda, com a abordagem das capacidades defendida por Nussbaum (2015), segundo a qual a efetiva liberdade depende da disponibilidade temporal para fins educativos, culturais e de participação cidadã.

Em áreas menos protegidas, como comércio e serviços no Brasil, prevalece o regime 6×1 (seis dias consecutivos trabalhados, apenas um de descanso), ainda que com jornada limitada a quatro horas no sábado, que impõe exaustão, dificulta a participação em cursos e enfraquece a formação cidadã. Nessa realidade, o ano 2025 reserva um marco simbólico e político: a PEC 8/2025, ao propor redução da jornada sem corte salarial e superação de escalas extenuantes, resgata a disputa temporal como eixo de justiça social.

Assim, a luta sindical contemporânea por tempo protegido – e não apenas pela formalização de direitos se reflete na luta pela formação, equilíbrio de vida, dignidade e fortalecimento democrático. Perseguir essa agenda através da PEC 8/2025 é afirmar, com força sindical e teórica, que o tempo não deve ser mercadoria, mas direito público e coletivo.

Estratégias sindicais contemporâneas: reapropriação política do tempo de trabalho

O cenário contemporâneo das relações laborais caracteriza-se por uma combinação de fatores que redesenham o papel do tempo na vida social: fragmentação das categorias profissionais, intensificação da produtividade, difusão de tecnologias digitais de controle e precarização estrutural dos contratos. Nesse contexto, o tempo deixa de ser apenas um recurso organizacional para se tornar um território estratégico de disputa política e simbólica, no qual a definição de jornadas, pausas e escalas se vincula diretamente à qualidade de vida, à saúde coletiva e ao exercício da cidadania (Castel, 1998; Offe, 1989).

A sociologia histórica do trabalho revela que a gestão do tempo é uma forma de exercício de poder. Thompson (1998) descreve como a disciplina temporal da Revolução Industrial transformou a experiência humana do tempo em instrumento de controle social. Bourdieu (1998), por sua vez, demonstra que o domínio sobre a organização do tempo pode ser convertido em capital social e político quando apropriado por grupos organizados, como os sindicatos, permitindo-lhes redefinir regras no campo das relações de trabalho.

Negt (1984) aprofunda essa perspectiva ao defender que os sindicatos devem ampliar seu “mandato cultural”, assumindo responsabilidade não apenas pela remuneração e pelas condições de trabalho, mas também pela regulação do uso social do tempo livre. Nessa visão, a luta pela redução da jornada é também uma luta pela qualificação democrática do tempo, com finalidades formativas, culturais e comunitárias. Markert (2002) complementa essa abordagem ao ressaltar que a reorganização do trabalho contemporâneo requer novas formas de consciência coletiva, capazes de incluir trabalhadores precarizados, terceirizados e inseridos em regimes atípicos de emprego.

Além disso, Hyman (2001) aponta que sindicatos eficazes no Século XXI devem articular três dimensões interdependentes: representação econômica, proteção social e projeto político de sociedade. A disputa pelo tempo de trabalho insere-se simultaneamente nas três: representa ganhos materiais (redução de horas com salário integral), avanços sociais (mais tempo para cuidados, educação e lazer) e definição de valores (tempo como bem público e não mercadoria).

Experiências internacionais reforçam essas concepções. Estudos da Organização Internacional do Trabalho (ILO, 2023) e da Eurofound (2023) evidenciam que políticas de redução da jornada, acompanhadas de previsibilidade de horários e reorganização organizacional, produzem ganhos objetivos de saúde, produtividade e retenção de trabalhadores. Exemplos concretos incluem o piloto islandês de semana reduzida (Haraldsson e Kellam, 2021) e o projeto britânico de quatro dias (Autonomy; 4 Day Week Global; 4 Day Week Campaigng, 2023)[iv], ambos demonstrando que a diminuição de horas pode coexistir com aumento de eficiência e engajamento, desde que ancorada em participação dos trabalhadores e redesenho institucional.

No campo das políticas nacionais, Gorz (2007) argumenta que a redistribuição do tempo de trabalho é também uma redistribuição de poder social, pois desloca a centralidade da vida do eixo produtivo para o eixo reprodutivo e comunitário. Tal ideia dialoga com a abordagem das capacidades de Nussbaum (2015), segundo a qual a liberdade substantiva depende de condições materiais e temporais adequadas para o exercício efetivo de direitos – incluindo tempo para formação, participação política e desenvolvimento pessoal.

Nesse sentido, estratégias sindicais contemporâneas, como o Direito Achado na Rua (Sousa Júnior, 2024) ou o Internacionalismo Operário (Santos e Costa, 2005), que preconizam o papel central emancipatório de movimentos integradores da sociedade civil, como o VAT, tendem a articular de forma mais efetiva quatro eixos:

  1. Negociação de tempo protegido – incorporação de cláusulas em acordos e convenções coletivas de trabalho que assegurem horas regulares para qualificação, repouso e participação social, com estabilidade nas escalas e períodos de descanso previsíveis.
  2. Governança participativa do tempo – criação de comitês bipartites para planejar, implementar e monitorar políticas de redução da jornada e reorganização do trabalho.
  3. Ancoragem técnico-política – fundamentar as propostas em dados empíricos e análises comparativas, fortalecendo a legitimidade pública das pautas (Krein, 2020; Krein e Biavascshi, 2020).
  4. Articulação internacional – alinhar reivindicações a parâmetros e experiências globais reconhecidas pela OIT, Eurofound e outros organismos multilaterais, conferindo amplitude e legitimidade às propostas.

No Brasil, essa agenda encontra expressão na mobilização pela Proposta de Emenda Constitucional nº 8/2025, que propõe a redução da jornada sem corte salarial e o fim do regime 6×1. Trata-se de uma iniciativa que, além de atualizar o padrão de proteção trabalhista, reforça a concepção de tempo como direito social e condição para um desenvolvimento democrático e inclusivo (Brasil, 1988; OIT, 2021).

Assim, a disputa sindical pelo tempo de trabalho no século XXI deve ser compreendida como parte de um projeto civilizatório que integra saúde, educação, bem-estar e democracia. Mais do que reivindicar horas livres, trata-se de institucionalizar o direito ao tempo como um bem coletivo e estratégico, capaz de sustentar uma cidadania ativa e ampliar os horizontes democráticos.

A Dimensão Jurídico-Sindical nas Relações de Trabalho

A dimensão sindical no contexto jurídico brasileiro é elemento estruturante das relações de trabalho, especialmente no que tange à defesa dos direitos sociais, à negociação coletiva e à representação de categorias profissionais. A Constituição Federal de 1988 conferiu aos sindicatos papel central na promoção e defesa dos interesses de seus representados, assegurando, no artigo 8º, a liberdade sindical, a unicidade por base territorial e a legitimidade para a negociação e celebração de instrumentos normativos coletivos (Brasil, 1988).

A atuação sindical transcende o campo estritamente normativo, alcançando dimensões sociais, políticas e econômicas. Conforme assevera Krein (2020), os sindicatos não apenas representam trabalhadores, mas também se constituem como espaços de resistência frente a políticas de flexibilização e de desregulamentação trabalhista. Essa função é ainda mais relevante no contexto pós-Reforma Trabalhista de 2017, quando houve significativa redução da obrigatoriedade da contribuição sindical, enfraquecendo financeiramente as entidades e exigindo novas estratégias de mobilização e negociação (Krein e Oliveira; Filgueiras, 2018).

Além disso, no plano internacional, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estabelece parâmetros que reforçam a importância da negociação coletiva e da liberdade sindical como instrumentos para garantir condições dignas de trabalho. As Convenções nº 87 e nº 98 da OIT (ratificada pelo Brasil apenas a última) estabelecem, respectivamente, a liberdade de associação e o direito à negociação coletiva, fundamentos essenciais para um diálogo social equilibrado (OIT, 2021).

Do ponto de vista da teoria social, Bourdieu (1998) contribui para a compreensão da dimensão sindical ao abordar o conceito de capital social como um recurso coletivo que pode ser mobilizado para fortalecer posições em campos de disputa. Nesse sentido, os sindicatos operam como mediadores entre a força individual do trabalhador e a força coletiva capaz de influenciar políticas públicas e práticas empresariais.

No cenário brasileiro, a atuação sindical também desempenha função pedagógica, formando a consciência de classe e promovendo a participação cidadã. Antunes (2020) ressalta que, em sociedades marcadas por profundas desigualdades, o movimento sindical atua como vetor de democratização das relações de trabalho, garantindo que as demandas dos trabalhadores sejam incorporadas ao debate público.

O impacto da dimensão sindical nas relações de trabalho também se reflete na construção de instrumentos normativos como acordos e convenções coletivas de trabalho, que podem criar regras mais benéficas do que as previstas na legislação, adequando direitos às realidades setoriais e regionais. Essa maleabilidade é um ponto nevrálgico para a adaptação do direito do trabalho às transformações contemporâneas, como a plataformização, a intensificação do teletrabalho e as mudanças no perfil da força de trabalho.

Assim, compreender a dimensão jurídico-sindical significa reconhecer sua função estruturante na efetivação dos direitos sociais, na redução das desigualdades e na promoção de um sistema produtivo mais equilibrado. A integração de fundamentos teóricos, parâmetros normativos e análise empírica permite uma visão abrangente do papel dos sindicatos enquanto sujeitos coletivos de direito, indispensáveis à consolidação de um Estado Democrático de Direito socialmente justo.

Obstáculos Legislativos e Estratégias Sindicais na Tramitação da PEC 8/2025

A Proposta de Emenda Constitucional nº 8/2025 surge como marco potencial no reordenamento das relações de trabalho no Brasil, propondo a redução da jornada máxima para patamares compatíveis com a promoção da saúde, a valorização do tempo livre e a prevenção do desgaste físico e mental. Ao vedar escalas que ampliam a exploração temporal da força de trabalho (como o regime 6×1 com horas extraordinárias sistemáticas), a proposta toca em dimensões centrais do direito fundamental ao trabalho digno, previsto no art. 6º da Constituição Federal, e em seu desdobramento na organização social e econômica contemporânea.

O contexto político-legislativo que a envolve, entretanto, revela uma arena marcada por resistências históricas e interesses antagônicos. Desde a reforma trabalhista de 2017 (Lei nº 13.467/2017), consolidou-se uma narrativa hegemônica que associa a competitividade empresarial à flexibilização de direitos, sob o argumento de que a rigidez normativa comprometeria a geração de empregos. Essa matriz de pensamento, amplamente acolhida por segmentos do Legislativo, impõe um desafio adicional para pautas que implicam custos imediatos – ainda que tais custos sejam compensados por benefícios sociais e econômicos de médio e longo prazo (Delgado, 2022).

Além disso, o próprio funcionamento do Congresso Nacional reforça a complexidade dessa tramitação. A multiplicidade de frentes parlamentares, a fragmentação partidária e a elevada influência de setores empresariais na formulação de políticas trabalhistas reduzem a margem de avanço de propostas estruturantes. Essa realidade evidencia que o trâmite da PEC 8/2025 não será meramente técnico, mas profundamente político, exigindo das centrais sindicais e entidades de classe uma atuação integrada, contínua e estratégica (Druck e Filgueiras, 2019).

Do ponto de vista jurídico, o debate sobre a redução da jornada articula-se com princípios constitucionais como o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III e IV, e 170, caput, da CF/88), bem como com dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que tratam da limitação temporal do labor. Ademais, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio da Convenção nº 1 e de recomendações correlatas, reforça que a jornada adequada constitui elemento indispensável à saúde ocupacional e ao equilíbrio entre vida profissional e pessoal – parâmetros que, embora não configurando imposição supranacional, servem como orientação interpretativa ao legislador e ao Judiciário.

Nesse cenário, as estratégias sindicais devem ir além do lobby parlamentar pontual, seguindo exemplos como o processo de constitucionalização dos direitos trabalhistas realizado pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar – DIAP (Riedel, 2003). A experiência brasileira demonstra que a mera apresentação de proposições legislativas, desacompanhada de mobilização social ampla, tende a resultar em arquivamento ou esvaziamento de conteúdo. Por isso, a ação sindical contemporânea precisa combinar três frentes complementares: (i) a produção e difusão de dados técnicos robustos, especialmente estudos de impacto econômico e de saúde pública que demonstrem a viabilidade da redução da jornada sem prejuízo à competitividade; (ii) a celebração de acordos e convenções coletivas de trabalho inovadores em setores estratégicos, funcionando como laboratórios sociais que antecipam os efeitos positivos da medida; e (iii) a construção de narrativas públicas capazes de deslocar o debate da esfera estritamente econômica para o campo dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável (Krein e Biavaschi, 2020).

Sousa Júnior (2024) chama a atenção à essa necessidade, de se realizar um esforço para resgatar os direitos humanos ao impulso da emancipação. Já Boaventura (2003) é mais enfático, apontando que caso não ocorra um movimento de tensionamento entre a regulação e a emancipação sociais, ocorrerá um verdadeiro arquivamento de iniciativas.

Ao situar a PEC 8/2025 nesse conjunto de tensões e possibilidades, percebe-se que ela não é apenas um dispositivo legislativo, mas um símbolo de disputa sobre o modelo de sociedade que se deseja construir. Sua aprovação significaria reafirmar a centralidade do trabalho digno como vetor de cidadania e de justiça social. Por outro lado, sua rejeição ou descaracterização manteria a prevalência de um paradigma que, ao priorizar a maximização do tempo de uso da força de trabalho, posterga a efetivação plena de direitos historicamente reivindicados. A escolha, portanto, ultrapassa o campo jurídico e alcança a própria concepção de Estado Social inscrita na Constituição de 1988.

 Considerações finais

Encerrar este percurso analítico significa reconhecer que a disputa pelo tempo — horas, calendários, ritmos, previsibilidade – é, ao mesmo tempo, o coração da questão trabalhista e a chave estratégica do sindicalismo no Brasil contemporâneo. O exame histórico-teórico mostrou que limitar a jornada sempre foi mais que um ajuste organizacional: tratou-se de impor uma “barreira social” à apropriação privada da vida, como já apontava Marx ao discutir a fronteira política da mais-valia (Marx, 2018). A sociologia histórica do trabalho de E. P. Thompson ajuda a compreender por que essa barreira é estrutural: o capitalismo não apenas compra força de trabalho, ele disciplina o tempo – e, por isso mesmo, cada centímetro de descanso, estudo e convivência foi conquistado politicamente (Thompson, 1998). Ao atualizar esse diagnóstico, Antunes lembra que o ciclo recente de precarização amplia a captura do “tempo vivo” e torna a redução de jornada condição de saúde, cidadania e resistência (Antunes, 2020).

Do ponto de vista institucional e comparado, os dados acumulados são consistentes com esse enredo. Evidências da OIT demonstram que políticas de reorganização do tempo – redução de jornada, proteção do repouso, previsibilidade de escalas – produzem ganhos mensuráveis em saúde e equilíbrio vida-trabalho sem prejuízo sistêmico à produtividade quando acopladas a redesenho organizacional (ILO, 2023). A literatura da Eurofound reforça o mesmo padrão em contextos europeus recentes: tempos mais curtos e melhor organizados tendem a caminhar com estabilidade de resultados econômicos quando há gestão do trabalho e diálogo social (Eeurofound, 2023). No plano nacional, o acervo do DIEESE mostra que reduzir jornada sem reduzir salário é política de repartição de produtividade e de prevenção de adoecimento, além de vetor de qualidade de vida — um tripé que dá lastro técnico às campanhas das centrais sindicais (DIEESE, 2009). Esses elementos não dizem que “toda” redução produzirá “sempre” os mesmos efeitos; dizem, com robustez, que a variável decisiva é o desenho: negociar tempos protegidos, estabilizar escalas, financiar formação e monitorar resultados.

É precisamente aí que o sindicalismo aparece não como apêndice, mas como agente de projeto. Negt propõe que sindicatos ampliem seu “mandato cultural”, disputando a finalidade social do tempo liberado – não horas vazias, mas tempo de reprodução da vida, de participação pública e de qualificação (Negt, 1984). Bourdieu ajuda a nomear a potência política desse gesto: a ação coletiva converte relações em capital social, capaz de redefinir regras do jogo no “campo” das relações de trabalho (Bourdieu, 1998). Ao reivindicar a superação do 6×1, ao estabilizar domingos e folgas, ao vincular janelas fixas a licenciamentos para estudo, os sindicatos deixam de operar apenas na fronteira econômica do salário e passam a operar na arquitetura do tempo social. Isso tem consequências democráticas: como lembra Nussbaum, liberdades substantivas dependem de capacidades reais – e não há capacidade sem tempo disponível e previsível para exercê-la (Nussbaum, 2015).

As seções empíricas do artigo indicaram trilhas concretas para essa virada. De um lado, experiências nacionais verificáveis – como a jornada negociada da categoria bancária e a reserva de tempo extraclasse do magistério – provam que a negociação coletiva cria normas temporais protetivas superiores ao piso legal. De outro, a agenda legislativa reaberta por iniciativas como a PEC 8/2025 oferece um “ponto de alavanca” para atualizar o padrão civilizatório inscrito na Constituição de 1988, articulando valor social do trabalho, dignidade humana e organização social do tempo. A lição estratégica que decorre dessa dupla frente é nítida: vitórias sustentáveis combinam bancada e base –isto é, reforma normativa com laboratório negocial setorial, dados públicos e governança paritária para acompanhar produtividade, saúde e permanência formativa (Krein e Biavaschi, 2020; Druck e Filgueiras, 2019; Openai, 2025).

Nada disso elimina resistências. A narrativa que confunde “competitividade” com “flexibilização de tempo” seguirá presente. É por isso que a disputa contemporânea exige densidade técnica (estudos de impacto e séries históricas), coerência normativa (ancoragem constitucional e parâmetros OIT) e imaginação institucional (comitês bipartites, cláusulas de tempo de estudo, bancos de horas com finalidade formativa). O que os estudos comparados e nacionais mostram é que o verdadeiro “custo” está menos na redução de horas e mais na ausência de desenho: jornadas curtas com desorganização degradam; jornadas reduzidas com gestão e formação emancipam (ILO, 2023; Eurofound, 2023; DIEESE, 2009; Openai, 2025).

Chegamos, assim, ao núcleo normativo deste trabalho: redistribuir tempo é tão civilizatório quanto redistribuir renda. Encerrar o 6×1 e reduzir a jornada com salário integral, quando inscritos em negociação coletiva robusta e em marcos legais que protejam o tempo formativo, não são concessões setoriais — são políticas de Estado para um desenvolvimento que trate a vida como fim, e o trabalho como meio. Não se trata de encurtar semanas, mas de alongar horizontes: abrir espaço para aprender, conviver, criar, cuidar, participar. É este “tempo público” (e não o tempo mercadoria) que sustenta cidadania, saúde e produtividade no Século XXI.

Se quisermos um critério de sucesso para guiar a prática sindical e o debate legislativo nos próximos anos, ele pode ser dito em uma frase: cada hora devolvida à vida deve voltar como capacidade. Caberá às centrais, aos sindicatos de base, aos formuladores de políticas e às empresas que compreendem seu papel social transformar esse princípio em norma jurídica, cláusulas, calendários e dados. Quando isso acontecer de forma ampla, o Brasil terá dado um passo estrutural: não apenas terá reduzido a jornada; terá aumentado o tamanho da sua democracia. (ILO, 2023; Eurofound, 2023; Negt, 1984; Nussbaum, 2015; DIEESE, 2009).

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Notas


[i] Apresentada pela Deputada Erika Hilton (PSOL/SP), em 25/02/2025.

[ii] Reformas que estabeleceram jornadas semanais de trabalho mais curtas sem redução salarial.

[iii] Trata-se de relatório oficial publicado em 2023 pelas organizações Autonomy 4 Day Week Global e 4 Day Week Campaign, que apresenta os resultados do maior programa-piloto já realizado no Reino Unido sobre a implementação da semana de trabalho de quatro dias sem redução salarial. O estudo, conduzido com apoio acadêmico das universidades de Cambridge, Boston College e Oxford, envolveu 61 empresas e cerca de 2.900 trabalhadores, avaliando impactos sobre produtividade, bem-estar e retenção de pessoal. O documento está disponível no portal oficial da Autonomy (https://www.autonomy.work/portfolio/uk-trial-results/).

[iv] Autonomy é um think tank independente britânico fundado em 2017, dedicado à pesquisa aplicada sobre o futuro do trabalho, políticas públicas e economia social. A instituição tem se destacado internacionalmente por coordenar e divulgar estudos sobre a redução da jornada de trabalho e a adoção da semana de quatro dias, em parceria com organizações como a 4 Day Week Global e a 4 Day Week Campaign, além de universidades renomadas. Suas análises influenciam debates acadêmicos, sindicais e governamentais sobre produtividade, bem-estar e inovação social.

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