Quanto mais estuda, mais o brasileiro é desaproveitado?

Embora seja baixa, renda dos trabalhadores sem instrução formal cresceu 42% em doze anos e informalidade caiu. O inverso ocorreu com quem tem ensino superior. Fenômeno expõe como a regressão produtiva afeta os salários de trabalhadores mais qualificados

Foto: Potowizard / shutterstock.com
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O mercado de trabalho brasileiro tem apresentado uma tendência contraditória nos últimos anos, desafiando pressupostos tradicionais sobre a relação entre educação e renda. Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua revelam um fenômeno intrigante: trabalhadores sem instrução formal experimentaram um aumento real de 41% em seus rendimentos entre 2012 e 2024, enquanto profissionais com ensino superior registraram uma queda de 12,3% no mesmo período (IBGE 2024).

Este cenário paradoxal reflete transformações estruturais no mercado de trabalho nacional. De acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV), a pandemia de covid-19 atuou como um catalisador dessas mudanças, preservando inicialmente os trabalhos mais qualificados que podiam ser realizados remotamente, mas posteriormente impulsionando uma recuperação expressiva dos setores que tradicionalmente empregam trabalhadores com menor escolaridade (Feijó 2024).

A análise dos dados do IBGE demonstra que o setor de serviços tem sido fundamental nessa reconfiguração. A coordenadora de Pesquisas por Amostra de Domicílios do IBGE, Adriana Beringuy, destaca que atividades como construção civil, agricultura, transporte e logística têm apresentado forte aquecimento, gerando uma demanda crescente por profissionais com menor qualificação formal (IBGE 2024).

Um aspecto significativo dessa transformação é a redução da informalidade entre os trabalhadores menos escolarizados. Pesquisas da FGV indicam que a taxa de informalidade nesse grupo caiu de 75,2% em 2012 para 71,1% em 2024. Em contrapartida, entre os profissionais com ensino superior, a informalidade aumentou de 27% para 33,2% no mesmo período (Feijó 2024).

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) aponta que a política de valorização do salário mínimo tem sido um fator determinante nesse processo. Segundo Pelatieri (2024), nos últimos três anos, a renda dos trabalhadores com baixa qualificação cresceu aproximadamente 20%, acompanhando os reajustes do piso nacional.

A expansão do ensino superior no Brasil também contribuiu para esse cenário. O número de matrículas saltou de 2,7 milhões em 2000 para 9,4 milhões em 2022, representando um aumento significativo na oferta de profissionais qualificados no mercado. Atualmente, 23% dos ocupados possuem ensino superior, contra 13,7% em 2012 (IBGE 2024).

O setor de comércio eletrônico tem sido um exemplo emblemático dessa transformação. A digitalização acelerada durante a pandemia gerou uma demanda inicial por profissionais especializados em tecnologia, mas posteriormente criou oportunidades significativas em áreas operacionais, como logística e distribuição, que não exigem alta escolaridade.

A recuperação do setor de serviços pessoais após a pandemia também tem favorecido trabalhadores com menor escolaridade. Atividades como serviços de beleza, alimentação e pequeno comércio têm apresentado crescimento consistente, beneficiando principalmente profissionais autônomos. O fenômeno da uberização do trabalho, amplamente discutido por Antunes (2020), contribui para compreender essa nova dinâmica. A proliferação de plataformas digitais tem criado oportunidades de geração de renda para trabalhadores com diferentes níveis de escolaridade, embora frequentemente em condições precárias.

Pochmann (2021) argumenta que essas transformações refletem uma reestruturação produtiva mais ampla, onde a flexibilização das relações de trabalho tem impactado diferentes segmentos da força de trabalho, independentemente do nível de escolaridade. A questão da qualificação profissional ganha novos contornos nesse contexto. Standing (2021) sugere que o conceito tradicional de educação formal pode estar perdendo relevância em um mercado de trabalho cada vez mais volátil e fragmentado.

O caso dos trabalhadores do setor de construção civil é particularmente ilustrativo. Beringuy (2024) destaca que, mesmo na era da inteligência artificial, há maior dificuldade em encontrar profissionais como pedreiros e eletricistas do que programadores web. As mudanças no perfil das vagas operacionais também são significativas. Dados da organização social Gerando Vidas indicam que as ofertas de emprego para posições que exigem baixa escolaridade praticamente dobraram entre o início de 2024 e 2025, com salários médios passando de R$ 1.400 para R$ 1.700.

O impacto da tecnologia nesse processo é ambíguo. Se por um lado a automação ameaça certos postos de trabalho, por outro tem criado novas oportunidades em setores como logística e distribuição, que não necessariamente demandam alta escolaridade. A questão da mobilidade social também merece atenção. Embora a renda dos trabalhadores menos escolarizados tenha aumentado, a diferença salarial entre quem tem ensino superior e ensino médio ainda é expressiva, cerca de 126% segundo dados da FGV.

O papel das políticas públicas nesse cenário é fundamental. A retomada da política de valorização do salário mínimo, com aumentos reais vinculados ao crescimento do PIB, tem impactado positivamente a renda dos trabalhadores na base da pirâmide. A dinâmica do mercado de trabalho brasileiro reflete também tendências globais. As transformações tecnológicas e organizacionais têm alterado profundamente a natureza do trabalho e as competências valorizadas pelos empregadores.

A questão da desigualdade de renda no Brasil revela uma complexidade sem precedentes neste novo cenário. Embora os dados apontem para uma aparente redução da disparidade salarial, com o aumento da renda dos trabalhadores menos qualificados, é fundamental examinar criticamente este fenômeno. O nivelamento por baixo da renda do trabalho pode mascarar um processo de precarização generalizada das condições laborais, onde a aproximação entre os rendimentos ocorre não pela elevação sustentável dos salários mais baixos, mas pela deterioração dos rendimentos dos trabalhadores mais qualificados.

A tendência de desvalorização da educação formal representa um risco significativo para o desenvolvimento socioeconômico do país. O desencorajamento ao investimento em formação superior, provocado pela queda na rentabilidade deste nível de ensino, pode gerar um ciclo vicioso de desinvestimento em capital humano. Quando as novas gerações observam a redução do retorno financeiro da educação superior, podem optar por trajetórias profissionais que priorizam ganhos imediatos em detrimento da qualificação de longo prazo, comprometendo a capacidade inovativa e produtiva do país.

O futuro do trabalho no Brasil exige uma abordagem que transcenda a dicotomia entre conhecimento formal e prático. A valorização equilibrada entre as diferentes formas de saber e competências profissionais precisa estar ancorada em uma política educacional e de desenvolvimento que reconheça tanto a importância da formação acadêmica quanto das habilidades técnicas e experienciais. Esta integração deve ocorrer de forma a potencializar ambas as dimensões, criando sinergias que elevem a qualidade geral do trabalho e da produção nacional.

O horizonte que se desenha para o mercado de trabalho brasileiro demanda uma profunda reestruturação dos sistemas educacionais e de formação profissional. As transformações tecnológicas e organizacionais em curso exigem um novo paradigma que combine flexibilidade adaptativa com solidez formativa. Este modelo deve ser capaz de responder às demandas imediatas do mercado sem sacrificar a capacidade de geração e absorção de conhecimento avançado, essencial para o desenvolvimento sustentável do país em um contexto de competição global cada vez mais intenso.


Referências:

ALMEIDA, Cássia. Escolaridade desvalorizada? Renda no país cresceu mais para trabalhador sem qualificação. O Globo, Rio de Janeiro, 9 fev. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2025/02/09/escolaridade-desvalorizada-renda-no-pais-cresceu-mais-para-trabalhador-sem-qualificacao.ghtml. Acesso em: 10 fev. 2025.

ANTUNES, Ricardo. Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

FEIJÓ, Janaína. Relatório sobre escolaridade, emprego e renda no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2024.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.

PELATIERI, Patrícia. Análise da política de valorização do salário mínimo. São Paulo: DIEESE, 2024.

POCHMANN, Marcio. Trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Contexto, 2021.

STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

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