Por que a pejotização compromete o futuro do Brasil?

Tendência no STF, que julgará o tema em breve, é reconhecer a precarização sob o discurso de “liberdade econômica”. Exame da medida, em 40 países, mostra que ela desmonta as bases dos direitos trabalhistas. E quanto mais “autônomos”, menor o IDH

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Minha contribuição neste texto é, a partir da utilização do direito comparado, mostrar como os países civilizados tratam a questão aqui em discussão e, com base em comparação de índices de desenvolvimento humano – IDH e PIB (Produto Interno Bruto) per capita – demonstrar a falácia do argumento da corrente da Suprema Corte para legalizar a pejotização: a liberdade econômica e a livre iniciativa.

Pela premência do tema, temos que ser diretos e objetivos: a tendência majoritária do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a pejotização, verificada a partir das decisões proferidas até agora em reclamações, está em franco desacordo com a regulação do trabalho em todo o mundo e, por conseguinte, com a brasileira.

Caso se tome no processo de Repercussão Geral do Tema 1389 o mesmo rumo desenhado até agora, estaremos diante de um modelo inédito em todo o mundo e com consequências desastrosas para o país, em termos econômicos e sociais.

Quem afirma isso não sou eu, mas sim um grupo de mais de 640 especialistas de mais de 40 países de todo o mundo, incluindo os maiores nomes do direito do trabalho mundial, como, por exemplo, Alain Supiot, do Collège de France, Simon Deakin, de Cambridge e Veena Dubal, da Universidade da Califórnia, ao emitirem carta de alerta ao STF sobre as consequências da destruição do princípio sustentador do direito laboral.

O direito do trabalho, em qualquer parte do mundo, tem como base e pressuposto o princípio da primazia da realidade sobre a forma, pelo qual prevalecem os fatos, como a relação se dá na vida real, sobre o que está escrito no contrato. Não importa o nome que se dê ao acordo, mas sim sua substância, como ele se dá na realidade. E os Estados, no mundo inteiro, têm a obrigação de combater as relações disfarçadas de contratos civis. Tudo isso está disposto na Recomendação 198 da OIT e faz parte da jurisprudência vinculante da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

E como os países fazem isso? Alguns mais avançados têm a presunção de laboralidade, ou seja, a partir do trabalho pessoal a presunção é que seja um empregado, devendo a empresa comprovar quando não for o caso. Isso ocorre em Portugal e Califórnia, por exemplo.

Em outros, como o nosso, não há essa presunção, devendo ser caracterizados os elementos ou requisitos da relação de emprego, sendo ônus do trabalhador ou do Estado prová-los, caso a empresa apresente um contrato formal civil. No caso brasileiro, o art. 9º da CLT expressamente tem como nulos os atos que pretendam desvirtuar ou impedir a aplicação do direito do trabalho.

Todos os países no mundo, no entanto, estão abertos a um processo de reclassificação em contrato de emprego pela justiça com competência para as relações de trabalho. Todos, sem exceção.

Alguns países desenvolvidos estão bastante preocupados com o crescimento de falsos contratos civis e, em cumprimento com a Recomendação nº 198 da OIT, tomam medidas fortes específicas para o combate à fraude.

É o caso dos Estados Unidos, cujo Departamento de Estado de Trabalho, emitiu, em 2024, “final rule”, com medidas concretas para o combate ao problema, afirmando que a misclassification, que chamamos aqui de fraude à relação de emprego, é “um problema sério que impacta os direitos dos trabalhadores ao salário mínimo e ao pagamento de horas extraordinárias, fomenta o furto de salários (wage theft), permite a alguns empregadores derrotar deslealmente seus concorrentes cumpridores das leis e prejudica a economia como um todo.” Fraudar a relação de emprego “é uma questão muito grave que priva os trabalhadores dos direitos e proteções básicas” .

Na Alemanha, houve alteração legislativa recente, em 2017, com regras mais rígidas para o combate ao que o BGB, o Código Civil alemão, chama de “falso trabalho autônomo”, quando uma pessoa é formalmente contratada como trabalhador autônomo, mas desempenha na prática o trabalho como empregado. O que vale é a realidade sobre o contrato (§ 611a (4), BGB). A requalificação em contrato de emprego é feita tanto pela Justiça do Trabalho, que tem estrutura quase idêntica à brasileira, ou pela fiscalização da Seguridade Social alemã. Aliás, cabe aqui um parênteses: na Alemanha os motoristas da Uber são considerados empregados e têm todos os direitos trabalhistas.

Mais recentemente tivemos as reformas na Austrália e na Holanda, que se preocupam diretamente com as fraudes na pejotização. Na Austrália, em 2023 e 2024 houve o fortalecimento da Fair Work Comission no combate ao “sham contracting”, contratos civis para mascarar relação de emprego, sendo expressamente aplicável a primazia da realidade. Na Holanda, por sua vez, em 2023, criou-se a presunção legal de existência de relação de emprego para quem recebe até 46 mil reais, multa para o que chama de “bogus Self-employment”, além da descrição de critérios rígidos para verificação de atuação real do suposto autônomo como verdadeiro empresário. Sempre, em todo caso, podendo ser questionado pelo Estado ou pelo trabalhador o seu real caráter de empregado.

Em comparação com esses países, o que mais assusta é o argumento utilizado nas decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro, que baseia a prevalência do contrato sobre a realidade com base nos princípios de livre iniciativa e na liberdade econômica. O argumento é tão absurdo que levaria a se discutir se não haveria livre iniciativa nos Estados Unidos, na Alemanha, na Holanda e na Austrália. Não seriam democracias modernas e inovadoras? Cai por terra, com um estrondo, o pífio argumento que o Direito do Trabalho seria um entrave para a liberdade econômica. Bem ao contrário, a liberdade econômica é balizada pelo direito do trabalho, que impõe patamar mínimo de concorrência entre as empresas, sobre o qual as empresas são livres para concorrer entre si. Como afirma o documento estadunidense acima citado, a quebra do patamar concorrencial só serve para más empresas sobrepujarem aquelas que têm respeito pelo direito e pelos trabalhadores.

Além de ser falso o argumento da liberdade econômica, os próprios pressupostos do debate no STF também são falseados: não há uma oposição entre o STF e a Justiça do Trabalho quanto à validade de contratos civis. A oposição, deixe-se claro, é em admitir um contrato civil para mascarar uma relação de emprego. É a isso que se opõe o direito do trabalho: para se reconhecer uma fraude ou uma simulação você tem que entender como válido o contrato verdadeiro, é uma questão de lógica. Você só reconhece a falsificação de uma bebida, como vodka e whisky, entendendo pela existência de uma verdadeira vodka e um verdadeiro whisky e, portanto, passando a reconhecer o produto manipulado e falsificado. Se eu coloco um rótulo de champanhe em uma garrafa de vinho tinto isso não o torna uma champagne, nem nega a existência de uma champagne verdadeira. O debate é falseado: não se trata de negar a possibilidade de que pessoas possam ser contratadas como profissionais autônomos para realizar sua atividade como negócio próprio, mas sim de permitir que o trabalhador continue subordinado, trabalhando em negócio alheio, só que sem direitos. Deve-se deixar claro: é a união do pior dos dois mundos, um subordinado sem direitos.

O Brasil, em verdade, pode se tornar um pária mundial nas relações de trabalho, sendo bastante provável, nesse caso, sofrer condenação de organismos internacionais, como o sistema interamericano de direitos humanos, cuja corte tem opinião consultiva vinculante pela aplicação do princípio da primazia da realidade sobre a forma. A Redesca já emitiu expressamente preocupação sobre o rumo do debate no Brasil.

Importa notar também que há uma correlação, entre forte e fortíssima, entre o percentual de trabalhadores por conta própria e o desenvolvimento econômico e humano do país: quanto mais alto o percentual de trabalhadores por conta própria, pior a condição econômica (-0,89, correlação negativa forte) e humana (-0,98, correlação negativa fortíssima) naquela sociedade. As citadas Austrália e Holanda estão entre os mais altos IDHs do mundo e também em relação ao PIB per capita, e têm baixíssimo índice de trabalhadores por conta própria. Ao contrário, os piores IDHs e PIBs per capita do mundo, como Angola, Congo, Índia e República Centro-Africana, têm altíssimo nível de trabalhadores por conta própria. Podemos ver no quadro essa correlação em todos os exemplos.

Comparativo Internacional: IDH, PIB per capita (PPP) e Trabalho por Conta Própria

PaísIDHPIB per capita PPP (US$)% Trabalhadores conta própria
França0,92054.46512,9
Dinamarca0,96273.7098,4
Alemanha0,95962.8308,6
Suécia0,95963.25910,7
Noruega0,97091.1084,6
Japão0,92546.0979,5
Austrália0,95860.08213,1
Estados Unidos0,93875.4926,1
Angola0,6167.34465,5
Congo0,5226.18186,3
Índia0,6859.81776,1
Afeganistão0,49681,7
Etiópia0,5222.88485,1
República Centro-Africana0,4141.11294,5
Brasil0,78619.64831,0
Chile0,87830.18324,6
Argentina0,86526.54725,8

Fontes: PIB per capita | IDH | Trabalhadores por conta própria

Pois bem: a catástrofe anunciada pelos especialistas já está se desenhando: escolas no Rio estão transformando seus professores de ensino fundamental e médio em PJs e hospitais estão em processo de pejotar os fisioterapeutas. No Rio de Janeiro já foram encontrados trabalhadores escravos com contrato de prestação de serviços. Em Marabá, uma ação civil pública por trabalho escravo rural encontra-se suspensa por conta da decisão no citado processo de Repercussão Geral devido à alegação do patrão de que os trabalhadores seriam autônomos.

Não é exagero dizer que o futuro do Brasil (e a qual grupo de países ele quer se juntar) depende da decisão neste processo. É como diz a canção, “e o espanto está nos olhos de quem vê o grande monstro a se criar”. Pelas gerações futuras, não temos o direito de dizer: “não olhe para cima!”

Este texto é baseado na manifestação realizada pelo autor na audiência pública do Tema 1389 no Supremo Tribunal Federal.

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