Pejotização, armadilha para o Brasil

Estudo mostra: precarização é pacto com mediocridade. Renda dos trabalhadores cai em até 20% e, sob impacto do corte de direitos, desigualdade dispara. Redução do consumo volta-se contra próprias empresas, com queda da atividade produtiva

Foto: Governo da Paraíba
.

A possibilidade de substituição da carteira assinada pelo contrato de Pessoa Jurídica (PJ) está no centro do debate nacional. Como os seus efeitos podem ser bastante abrangentes, é necessário avaliá-los sob distintas dimensões: a da dinâmica econômica, do mercado de trabalho, das desigualdades sociais e dos fundos públicos. Com essa preocupação, o CESIT da Unicamp elaborou um estudo1 que mostra que a pejotização irrestrita – isto é, a generalização da possibilidade desse tipo de vínculo para a maioria dos ocupados – traria sérios riscos não apenas para os trabalhadores, mas também para a economia como um todo.

A simulação apresentada na nota técnica estima os impactos da pejotização sobre a economia, adotando algumas hipóteses: 1) que as empresas irão se apropriar dos valores poupados a partir da diminuição dos encargos e que os trabalhadores irão também se apropriar dos valores liberados pelo fim dos descontos em folha; 2) que o salário mínimo não servirá como referência para a remuneração dos trabalhadores pejotizados; 3) que na ausência de seguro-desemprego, os trabalhadores pejotizados ficarão desprotegidos, em caso de rompimento do contrato; 4) que os trabalhadores pejotizados deixarão de receber as remunerações adicionais vinculadas à carteira assinada, tais como: 13º salário, férias, FGTS, horas extras, adicionais noturnos, verbas rescisórias, licença-maternidade, auxílio-doença, entre outros; 5) que haverá redução dos valores das aposentadorias, devido às contribuições serem mais intermitente e, de menor valor, em geral, próximas ao salário mínimo, especialmente no caso do MEI2.

Aqueles que defendem a pejotização partem de um raciocínio aparentemente lógico, mas circunscrito à dimensão microeconômica, isto é: a pejotização seria economicamente vantajosa para as empresas, já que, por um lado, levaria a uma redução de custos com encargos sociais e trabalhistas e, por outro, eliminaria parte da rigidez contratual que incide sobre a contratação e uso da força de trabalho. Já para os trabalhadores, os seus defensores alegam que poderia significar um aumento imediato do salário nominal, já que os descontos previdenciários deixariam de ser feitos na fonte. Portanto, apostam que todos sairiam ganhando.

Contudo, é importante salientar que as economias reais funcionam como um sistema em que as partes são interdependentes e, dessa forma, os efeitos de mudanças institucionais devem ser avaliados pelo seu resultado em termos gerais ou agregados. O que se ganha de um lado pode se perder — e muito — do outro. O modelo utilizado pelo estudo do CESIT incorporou aquelas possíveis vantagens iniciais, mas também considerou as perdas inevitáveis para os trabalhadores e para a economia em geral em razão das interações em termos agregados, ou seja, em sua dimensão macroeconômica e sistêmica. Por exemplo, a perda total de renda disponível dos trabalhadores seria de, no mínimo, 20%, somente considerando os valores relativos ao FGTS, férias e 1/3 de férias que o pejotizado deixaria de receber. Não estão incluídas no cálculo outras perdas prováveis, tais como os benefícios dos contratos coletivos de trabalho (o transporte, os auxílios sociais, vale-alimentação/refeição, etc.). Assim, os supostos ganhos iniciais na remuneração dos PJs não seriam compensados pela perda dos valores que são assegurados ao trabalhador com carteira.

O fundamental, e mais grave, é que a simulação evidencia um efeito bastante negativo sobre o crescimento econômico que pode resultar em uma redução de aproximadamente 0,5 pontos percentuais na taxa de crescimento real do PIB. No longo prazo, o PIB real ficaria até 30% mais baixo no cenário de pejotização irrestrita se comparado com a ausência da generalização deste tipo de contratação (ver Figura 1). Ou seja, o potencial de crescimento do PIB seria significativamente reduzido neste cenário.

Figura 1. Evolução do PIB real no cenário de pejotização irrestrita e no cenário com carteira

Elaboração: Welle e Petrini.

A simulação mostra um enfraquecimento da demanda agregada ao longo do tempo, com queda no consumo. Vale notar que esta queda no consumo ocorre mesmo partindo da hipótese conservadora de que parte da redução dos custos sociais vinculados aos salários seria repassada aos trabalhadores. Esse processo seria ainda agravado tanto pela esperada diminuição do acesso ao crédito, quanto pelo seu encarecimento, já que os pejotizados, por exemplo, ficam impossibilitados de obter crédito consignado.

No mercado de trabalho, os impactos são claros: a pejotização tende a gerar menor nível de ocupação (ver Figura 2). O desemprego poderia aumentar 10 pontos percentuais com a pejotização irrestrita. Outro problema: ela tornaria os ciclos econômicos mais frequentes e intensos, o que ampliaria a incerteza e prejudicaria as decisões de investimentos. Em situações de queda do nível de atividade, as empresas reduzem o uso de força de trabalho e pagam menores remunerações, já que não haveria mais custo de despedida e nem existiria mais qualquer obrigação de se manter o valor das remunerações dos trabalhadores. No cenário pejotizado, as remunerações não teriam qualquer vinculação aos pisos legais ou ao valor do salário mínimo, os quais impedem hoje a redução dos salários nominais. Além disso, outro aspecto preocupante relacionado a este efeito de maior volatilidade do mercado de trabalho seria o desestímulo à qualificação profissional, pois as relações se tornam menos duradouras, o que resultaria em outro efeito negativo sobre a economia no longo prazo: tendência de depreciação do capital humano.

Figura 2. Diferença na taxa de desocupação no cenário de pejotização irrestrita para o cenário com carteira

Elaboração: Welle e Petrini.

Ademais, a pejotização irrestrita provocará, segundo o modelo, o aumento da desigualdade social, calculado a partir do índice de Gini das rendas do trabalho. No longo prazo, estima-se um acréscimo de até 10 pontos percentuais na desigualdade, como mostra a Figura 3.

Figura 3. Diferença no índice de Gini no cenário de pejotização irrestrita para o cenário com carteira

Elaboração: Welle e Petrini.

Em suma, a simulação realizada para testar os efeitos de uma pejotização generalizada aponta para resultados claramente opostos daqueles geralmente empunhados como justificativa pelos defensores da substituição de trabalhadores celetistas por trabalhadores do tipo PJ. Mesmo considerando a ocorrência de eventuais ganhos no curto prazo – ou na dimensão microeconômica – quando analisados pela ótica de suas repercussões sistêmicas e macroeconômicas, os efeitos dinâmicos da pejotização seriam bastante graves e contraproducentes.

De fato, os dois componentes mais importantes da demanda agregada no Brasil – o consumo dos trabalhadores e o investimento privado – seriam negativamente afetados, rebaixando o potencial de crescimento da economia brasileira. Pelo lado do consumo agregado, a simulação indica que a queda da massa salarial (menos empregos e menores remunerações), incluídos os rendimentos previdenciários, explicaria o porquê do consumo diminuir ao longo do tempo. Como consequência, espera-se que o investimento em máquinas e equipamentos também se reduza tendo em vista a contração na demanda agregada.

É importante destacar que existem razões para além do exercício de simulação que implicariam na queda do dinamismo da economia. Espera-se que o consumo também perca fôlego em virtude do aumento do custo das linhas de crédito e se torne menos acessível aos trabalhadores. Já pelo lado do investimento em bens de produção, é de se esperar que seria desestimulado, uma vez que, como mencionado antes, o ciclo econômico deverá transcorrer com maior volatilidade e intensidade, aumentando a incerteza e reforçando o comportamento “curto-prazista” do investidor capitalista.

Consequentemente, antes de ser uma solução para os desafios que se colocam ao nosso mercado de trabalho e para o crescimento econômico do país, a pejotização constitui uma armadilha que reduziria a renda e a proteção social dos trabalhadores e suas famílias, enquanto comprometeria o desenvolvimento do país. Trata-se de uma solução falaciosa que sacrificaria o presente e comprometeria as condições de vida das próximas gerações.


Notas:

1 Trata-se de uma Nota Técnica produzida pelos pesquisadores Arthur Welle e Gabriel Petrini usando modelos baseados em agentes (ABM) para avaliar os efeitos da adoção ampla da pejotização. Veja no site CESIT: https://pesquisa.ie.unicamp.br/centros-e-nucleos/cesit/

2 A simulação não contabiliza os efeitos da redução da arrecadação do Estado especialmente para o financiamento da seguridade social e com a queda dos fundos públicos – efeitos já apontados em estudo de Marconi e colegas (disponível em: https://eaesp.fgv.br/sites/eaesp.fgv.br/files/impactos_da_pejotizacao_sobre_a_arrecadacao_de_tributos_-_final.pdf). Além disso, não se está considerando aqui a provável fragilização dos sindicatos, que perderiam poder de barganha com a redução de suas bases e com a possibilidade das empresas abandonarem as negociações usando a pejotização como ameaça. Outro aspecto não considerado na simulação seria o provável enfraquecimento da Justiça do Trabalho, que teria maior dificuldade para reparar direitos sonegados.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *