OIT: Falta firmeza contra a uberização
Em Conferência, Organização Internacional do Trabalho começa a esboçar recomendações para o trabalho digno em plataformas. Marco, no entanto, não pode ser “minimalista”: deve ter garantias concretas e regulação firme para subordinar o poder econômico e tecnológico
Publicado 25/08/2025 às 17:42

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou em 2025 o primeiro estudo voltado para a criação de uma Convenção e Recomendação Internacional específica para a regulamentação do trabalho decente na economia de plataforma. Este documento histórico, resultado das intensas discussões travadas na 114ª Conferência Internacional do Trabalho realizada em 2025, representa um momento de inflexão na história das relações laborais, mas que deve ser compreendido em uma perspectiva crítica que reconheça a urgência de proteções robustas similares àquelas historicamente conquistadas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no Brasil.
A iniciativa da OIT, embora represente um avanço institucional, revela-se insuficiente diante da magnitude da precarização que caracteriza a uberização do trabalho. Como demonstra Abílio (2021), “a uberização nomeia um novo tipo de gestão e controle da força de trabalho, também compreendida como uma tendência passível de se generalizar no âmbito das relações de trabalho”, resultando das “formas contemporâneas de eliminação de direitos, transferência de riscos e custos para os trabalhadores e novos arranjos produtivos” (ABÍLIO, 2021, p. 1). Esta realidade demanda não apenas regulamentação internacional, mas instrumentos normativos que garantam proteção efetiva aos trabalhadores.
Quando observamos as definições propostas pela OIT, encontramos uma tentativa de capturar a complexidade do fenômeno, mas que pode carecer da força normativa necessária. A “plataforma digital de trabalho” é definida como “uma pessoa jurídica ou, quando aplicável sob a lei nacional, pessoa física que, através de tecnologias digitais, usando sistemas automatizados de tomada de decisão: organiza e/ou facilita trabalho realizado por pessoas por remuneração ou pagamento” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2025, p. 31). Esta definição, embora tecnicamente precisa, não captura adequadamente a natureza da subordinação disfarçada que caracteriza essas relações laborais.
A experiência histórica brasileira com a CLT demonstra a importância de marcos regulatórios robustos e protetivos. Como observa Krein (2020), “a constituição dos direitos dos trabalhadores no Brasil foi marcada por leis esparsas, e estes somente foram regulamentados, de forma sistemática, a partir de 1930”, culminando na consolidação de um sistema que, mesmo com suas limitações, garantiu proteções fundamentais (KREIN, 2020, p. 12). A atual proposta da OIT, por sua vez, corre o risco de reproduzir a flexibilização excessiva que caracteriza as reformas trabalhistas contemporâneas.
O reconhecimento pela OIT de que “a natureza e o crescimento da economia de plataforma, incluindo a expansão das plataformas digitais de trabalho, estão transformando significativamente a forma como o trabalho é organizado e realizado” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2025, p. 31) é fundamental, mas insuficiente se não for acompanhado de mecanismos efetivos de proteção. A experiência concreta dos trabalhadores de plataforma revela uma intensificação da exploração que exige respostas normativas firmes, não apenas orientações flexíveis.
A economia moral dos trabalhadores de plataforma manifesta-se por meio de expectativas legítimas de proteção que ecoam as históricas demandas por direitos trabalhistas. As reivindicações por transparência nos algoritmos, estabilidade na remuneração e proteção contra desativações arbitrárias representam uma continuidade com as lutas históricas por dignidade no trabalho. Como demonstra Antunes (2020), a uberização representa uma “escravidão digital” que exige respostas regulatórias proporcionais à gravidade da precarização (ANTUNES, 2020, p. 62).
A proposta da OIT de incluir “um ambiente de trabalho seguro e saudável” entre os princípios fundamentais (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2025, p. 33) é importante, mas deve ser complementada por mecanismos concretos de aplicação. A experiência brasileira evidencia que direitos formalmente reconhecidos sem mecanismos efetivos de proteção tornam-se letra morta. A regulação da economia de plataforma não pode repetir os erros das reformas trabalhistas que privilegiaram a flexibilização em detrimento da proteção.
As tensões entre flexibilidade e segurança, que permeiam todo o documento da OIT, devem ser resolvidas claramente em favor da proteção dos trabalhadores. A história das relações de trabalho demonstra que a verdadeira flexibilidade emerge de um ambiente de segurança jurídica e proteção social, não da precarização das condições laborais. A regulação das plataformas digitais deve aprender com os acertos da CLT, que estabeleceu um patamar mínimo de proteção capaz de estruturar relações de trabalho mais equilibradas.
A falsa modernização: crítica à perspectiva flexibilizadora da regulação internacional
A abordagem da OIT para regular o trabalho em plataformas, embora represente um avanço, reproduz perigosamente a lógica flexibilizadora que tem caracterizado as contrarreformas trabalhistas contemporâneas. Quando o documento estabelece que “cada Membro deve tomar medidas para assegurar a classificação correta dos trabalhadores de plataforma digital em relação à existência de uma relação de emprego” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2025, p. 34), está tocando em uma questão central, mas sem a firmeza necessária para enfrentar as estratégias empresariais de negação da subordinação laboral.
A experiência brasileira recente com a reforma trabalhista de 2017 ilustra os perigos de uma regulação que privilegia a flexibilização. Como demonstra Krein (2020), essa reforma “amplia a liberdade dos empregadores em determinar as condições de contratação, o uso da força de trabalho e a remuneração dos trabalhadores”, representando “o aumento da insegurança dos trabalhadores e a perda de direitos” (KREIN, 2020, p. 13). A proposta da OIT corre o risco de legitimar uma flexibilização similar no contexto das plataformas digitais.
O tratamento dado pela OIT aos sistemas automatizados exemplifica essa insuficiência. O documento estabelece que “cada Membro deve exigir que as plataformas digitais de trabalho informem os trabalhadores de plataforma digital sobre o uso de sistemas automatizados, baseados em algoritmos ou métodos similares, para monitorar ou avaliar o trabalho” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2025, p. 35). Esta exigência de transparência, embora importante, é insuficiente diante da realidade de controle total que os algoritmos exercem sobre o processo de trabalho.
Como observa Abílio (2021), a uberização caracteriza-se pela “consolidação e gerenciamento de multidões de trabalhadores como trabalhadores just-in-time”, envolvendo “um novo tipo generalizável de remuneração por peça” que “conserva sua centralidade nas formas de exploração capitalistas, mas atualiza seus elementos” (ABÍLIO, 2021, p. 1). Esta realidade exige muito mais do que transparência: demanda limitações efetivas ao poder algorítmico e garantias concretas de proteção aos trabalhadores.
A questão da remuneração ilustra claramente os limites de uma abordagem meramente orientativa. Quando a OIT propõe que “cada Membro deve tomar medidas para assegurar que a remuneração devida aos trabalhadores de plataforma digital seja adequada, paga em moeda legal e paga integralmente e em tempo hábil” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2025, p. 35), estabelece princípios importantes, mas sem os mecanismos concretos necessários para sua efetivação. A experiência histórica da CLT mostra que é necessário estabelecer pisos salariais, mecanismos de reajuste e proteções específicas contra a deterioração dos rendimentos.
As propostas sobre segurança e saúde ocupacional revelam uma compreensão inadequada dos novos riscos laborais. O documento reconhece que “medidas tomadas por um Membro para implementar o parágrafo 1 deste Artigo devem buscar prevenir acidentes ocupacionais, doenças ocupacionais e outros ferimentos à saúde associados a longas horas de trabalho e períodos insuficientes de descanso” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2025, p. 33). Contudo, como demonstra Antunes (2020), a uberização cria formas inéditas de “submissão dos trabalhadores às plataformas” que se configuram como uma verdadeira “escravidão digital” (ANTUNES, 2020, p. 44).
A atenção dada à proteção de dados pessoais, embora represente uma inovação importante, não aborda adequadamente a dimensão da exploração informacional. A proposta de que “cada Membro deve assegurar que dados pessoais de trabalhadores de plataforma digital sejam coletados, armazenados, processados e usados apenas na medida estritamente necessária para o propósito de seu emprego ou engajamento” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2025, p. 36) ignora que a própria coleta desses dados representa uma forma de valor apropriado pelas plataformas sem compensação adequada aos trabalhadores.
O tratamento dado às organizações de trabalhadores revela uma compreensão limitada dos desafios organizativos na economia de plataforma. Embora o documento reconheça formalmente o direito à organização coletiva, não propõe instrumentos efetivos para superar a fragmentação e dispersão que caracterizam esse tipo de trabalho. A experiência histórica mostra que a proteção efetiva dos trabalhadores depende de organizações sindicais fortes e de mecanismos institucionais que favoreçam a ação coletiva.
A questão da jurisdição e da aplicação das normas ilustra uma contradição fundamental na proposta da OIT. Quando o documento estabelece que “os termos e condições de emprego ou engajamento de trabalhadores de plataforma digital devem ser governados pelas leis e regulamentos do país onde o trabalho é realizado” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2025, p. 37), está tentando resolver uma tensão estrutural entre capital globalizado e regulação nacional, mas sem propor mecanismos efetivos de coordenação internacional que impeçam a corrida ao fundo em termos de proteção social.
Por uma regulação protetiva: lições da história e desafios do presente
A análise crítica da proposta da OIT revela a necessidade urgente de uma regulação verdadeiramente protetiva para o trabalho em plataformas digitais, que se inspire nos avanços históricos da legislação trabalhista protetiva e não na lógica flexibilizadora que caracteriza as reformas neoliberais. A experiência brasileira com a CLT oferece lições importantes sobre como construir um marco regulatório que efetivamente proteja os trabalhadores contra a exploração, estabelecendo direitos substantivos e mecanismos efetivos de aplicação.
A regulação efetiva do trabalho em plataformas deve partir do reconhecimento de que a subordinação existe independentemente da mediação tecnológica. Como demonstra Krein (2020), a “flexibilização das relações de trabalho, a restrição ao acesso dos trabalhadores à justiça do trabalho” representam uma adequação forçada “das relações de trabalho às necessidades da lei geral da acumulação capitalista” (KREIN, 2020, p. 5). A regulação das plataformas não pode reproduzir esses erros, mas deve estabelecer critérios claros e objetivos para o reconhecimento da relação de emprego.
O estabelecimento de direitos substantivos representa outro elemento fundamental de uma regulação verdadeiramente protetiva. A experiência histórica mostra que a proteção efetiva dos trabalhadores depende de direitos concretos — salário mínimo, jornada máxima, proteção contra demissão arbitrária, seguridade social — e não apenas de princípios genéricos. A regulação das plataformas deve incluir garantias específicas: remuneração mínima por hora trabalhada, limitação da jornada, custeio de equipamentos e insumos, proteção contra desativação arbitrária de contas.
A questão da proteção social emerge como elemento central de qualquer regulação efetiva. Como observa Abílio (2021), a uberização resulta na “eliminação de direitos, transferência de riscos e custos para os trabalhadores”, criando “enormes contingentes de trabalhadores controlados por empresas que operam por meio de plataformas digitais” (ABÍLIO, 2021, p. 1). A reversão desse processo exige a inclusão obrigatória dos trabalhadores de plataforma nos sistemas de seguridade social, com responsabilização das empresas pelo financiamento das contribuições.
A regulação algorítmica representa outro desafio fundamental que a proposta da OIT aborda de forma insuficiente. A verdadeira proteção dos trabalhadores exige não apenas transparência, mas limitações efetivas ao poder dos algoritmos: direito de contestação de decisões automatizadas, limitações à intensificação do trabalho via algoritmos, garantias de remuneração mínima independentemente da demanda, proteção contra discriminação algorítmica. A experiência com a regulação financeira e de proteção de dados oferece precedentes importantes para esse tipo de regulação.
O fortalecimento da organização coletiva emerge como elemento indispensável de qualquer sistema regulatório efetivo. A história das relações de trabalho demonstra que a proteção individual é insuficiente quando desacompanhada de mecanismos coletivos de defesa. A regulação das plataformas deve incluir facilitações específicas para a organização sindical: acesso a informações sobre trabalhadores, espaços para organização nos aplicativos, proteção contra retaliações, financiamento sindical adequado, direito de greve com proteções específicas.
A aplicação efetiva da regulação representa talvez o maior desafio, considerando a natureza transnacional das plataformas e a fragilidade dos mecanismos nacionais de fiscalização. A experiência histórica mostra que direitos sem mecanismos efetivos de aplicação tornam-se meramente simbólicos. É necessário criar instrumentos específicos: fiscalização especializada, sanções proporcionais à gravidade das violações, responsabilização solidária em cadeias de terceirização, mecanismos de inversão do ônus da prova em favor dos trabalhadores.
A transformação tecnológica que deu origem ao trabalho em plataformas não representa apenas mudanças nos métodos produtivos, mas está criando as condições para uma precarização sem precedentes das relações de trabalho. A resposta a essa transformação não pode ser a adaptação passiva às demandas do capital, mas a construção de uma regulação que subordine a tecnologia às necessidades humanas e aos direitos fundamentais dos trabalhadores.
A experiência concreta de milhões de trabalhadores submetidos diariamente à lógica da uberização revela a urgência de uma resposta regulatória robusta. A precarização extrema, a transferência total de riscos, a ausência de proteções sociais básicas e a intensificação do controle por meio de algoritmos criam condições de trabalho que representam um retrocesso histórico em relação às conquistas do movimento operário.
A regulação internacional proposta pela OIT, embora represente um reconhecimento importante dos problemas, permanece aquém do que a gravidade da situação exige. A construção de um futuro do trabalho verdadeiramente digno na era digital depende da capacidade de construir marcos regulatórios que protejam efetivamente os trabalhadores, inspirando-se nas melhores tradições da legislação social protetiva e rejeitando a lógica flexibilizadora que caracteriza as reformas neoliberais.
A luta pelo futuro do trabalho não se resolverá através de regulamentações minimalistas ou flexíveis, mas exigirá a construção de sistemas normativos robustos, capazes de subordinar o poder econômico e tecnológico aos direitos fundamentais dos trabalhadores. A história nos ensina que as transformações significativas nas relações de trabalho emergiram sempre da combinação entre pressões organizadas dos trabalhadores e marcos regulatórios efetivamente protetivos.
A proposta da OIT representa um ponto de partida, mas a construção de um futuro verdadeiramente justo para o trabalho na era digital dependerá da capacidade de ir muito além do que está sendo proposto, construindo sistemas de proteção social à altura dos desafios contemporâneos e das conquistas históricas do movimento trabalhista mundial.
Referências
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, Porto Alegre, v. 23, n. 58, p. 26-56, set./dez. 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/soc/a/XDh9FZw9Bcy5GkYGzngPxwB/. Acesso em: 20 ago. 2025.
ANTUNES, Ricardo (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020. 333 pp.
KREIN, José Dari. A contrarreforma trabalhista e a precarização das relações de trabalho no Brasil. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 132-142, fev. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rk/a/qVVvQN4Wg5Zx8937PxmTGVp/. Acesso em: 20 ago. 2025.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Decent work in the platform economy. Geneva: ILO, 2025. Disponível em: https://www.ilo.org/resource/conference-paper/ilc/ilc114/decent-work-platform-economy. Acesso em: 19 ago. 2025.
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