Mutações do Trabalho no Brasil: da fábrica ao aplicativo

Informalidade já atinge 39% dos trabalhadores. A uberização avança. E as relações laborais se fragmentam. A antiga noção de identidade de classe está em mutação, o que acarreta grande impacto nas escolhas eleitorais – e traz novos desafios às esquerdas. É preciso compreendê-los

Foto: Sérgio Lima/Poder360
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Uma transformação profunda ocorreu no mercado de trabalho brasileiro nas últimas décadas, alterando fundamentalmente a relação entre trabalhadores, capital e Estado. Esta metamorfose exige uma análise cuidadosa através de lentes tanto históricas quanto contemporâneas, particularmente quando observamos o surgimento do que alguns estudiosos denominaram como uma “nova classe trabalhadora”. A complexidade desta transformação torna-se especialmente evidente ao examinarmos o período entre 2003 e 2024, durante o qual o Brasil experimentou mudanças políticas e econômicas significativas que redefiniram as relações trabalhistas e a composição de classes.

O mercado de trabalho brasileiro contemporâneo apresenta um cenário paradoxal onde o emprego formal coexiste com uma crescente precarização. Esta dualidade manifesta-se mais claramente na expansão do trabalho por plataformas e da economia dos aplicativos, criando o que Ricardo Antunes caracteriza como “novas morfologias do trabalho”. Essas mudanças produziram não apenas efeitos econômicos, mas também consequências sociais e políticas profundas, particularmente visíveis nos padrões de votação e nas afiliações políticas de diferentes segmentos da classe trabalhadora.

A fragmentação das estruturas tradicionais de trabalho levou ao que Singer identifica como um realinhamento fundamental na política brasileira, particularmente evidente na relação entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e sua base tradicional. Esta transformação reflete mudanças mais amplas no sistema capitalista global, onde o avanço tecnológico e a liberalização do mercado remodelaram as relações tradicionais de emprego. A dinâmica social resultante criou novas formas de consciência de classe que frequentemente divergem das orientações políticas tradicionalmente associadas à esquerda.

Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE revelam que aproximadamente 39,1% dos trabalhadores brasileiros encontram-se agora em relações de trabalho informais, representando uma mudança significativa do modelo tradicional de emprego formal que caracterizou o período de industrialização do país. Esta transformação tem implicações profundas para a compreensão da formação de classe e do comportamento político no Brasil contemporâneo.

A pesquisa de Braga e Santana demonstra como essas mudanças afetaram a capacidade de organização coletiva dos trabalhadores, mostrando que a filiação sindical tradicional diminuiu de 16,1% em 2012 para 11,2% em 2023. Este declínio coincide com o surgimento de novas formas de organização dos trabalhadores, particularmente entre os trabalhadores de plataforma, embora essas novas formações frequentemente careçam da força institucional dos sindicatos tradicionais.

A configuração atual do mercado de trabalho brasileiro reflete o que Francisco de Oliveira denomina como o “avesso do avesso”, onde processos aparentes de modernização na verdade reforçam padrões históricos de desigualdade e precariedade. Este fenômeno torna-se particularmente evidente ao examinar a expansão do trabalho por plataforma e do empreendedorismo informal nos centros urbanos.

Ao examinar a relação entre as transformações do mercado de trabalho e o comportamento político, a análise de Singer fornece contribuições cruciais sobre como a precariedade econômica influencia as escolhas eleitorais. Sua pesquisa demonstra que os trabalhadores que ganham entre dois e cinco salários mínimos – precisamente aqueles mais afetados pelas recentes transformações do mercado de trabalho – têm demonstrado crescente volatilidade política.

Em um estudo abrangente das relações trabalhistas brasileiras, Márcia de Paula Leite, José Ricardo Ramalho e Roberto Véras de Oliveira demonstram como a reestruturação das cadeias produtivas afetou a organização e representação dos trabalhadores. Essa pesquisa indica que a fragmentação dos processos produtivos criou novos desafios para a ação coletiva, particularmente nos setores mais afetados pela mudança tecnológica.

O surgimento do que tem sido denominado “uberização” representa talvez a manifestação mais visível dessas transformações. Estudos recentes de Ludmila Costhek Abílio mostram como o trabalho por plataforma criou novas formas de controle e exploração, enquanto simultaneamente promove uma ideologia do empreendedorismo que mascara a natureza precária dessas relações de trabalho.

A dimensão espacial dessas transformações torna-se particularmente evidente ao examinar as regiões metropolitanas brasileiras. Pesquisas conduzidas pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM) indicam que a precarização do mercado de trabalho apresenta padrões distintos em diferentes territórios urbanos, com áreas periféricas experimentando processos mais intensos de informalização e precarização.

As discussões contemporâneas sobre o futuro do trabalho no Brasil devem necessariamente envolver o que Ruy Braga identifica como o “precariado”, um segmento crescente de trabalhadores que, apesar de formalmente integrados ao mercado de trabalho, experimentam insegurança e instabilidade persistentes. Este fenômeno tem particular relevância para a compreensão dos alinhamentos políticos e movimentos sociais atuais.

Observando as evidências empíricas, dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que, entre 2015 e 2023, a proporção de trabalhadores em arranjos de emprego não-padrão aumentou 12,3 pontos percentuais. Esta tendência coincide com mudanças significativas nos padrões de participação política e representação entre os eleitores da classe trabalhadora.

Um aspecto crucial dessas transformações envolve a relação entre mudança tecnológica e reestruturação do mercado de trabalho. Estudos realizados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) indicam que os setores mais afetados pela inovação tecnológica experimentaram as mudanças mais significativas nas relações de emprego, com impacto particular sobre os trabalhadores mais jovens.

As implicações políticas dessas transformações tornam-se evidentes ao examinar os padrões de votação nas eleições recentes. Pesquisas realizadas pela Fundação Perseu Abramo mostram que trabalhadores em situações precárias de emprego demonstram comportamento político distinto daqueles em empregos formais tradicionais, sugerindo uma correlação entre posição no mercado de trabalho e orientação política.

O surgimento de novas formas de organização do trabalho também afetou as estruturas tradicionais de solidariedade de classe. Nadya Araujo Guimarães, em suas pesquisas, demonstra como as mudanças na organização do trabalho criaram novos padrões de sociabilidade e ação política entre os trabalhadores, particularmente em contextos urbanos.

As transformações observadas no mercado de trabalho brasileiro nas últimas décadas são parte de um processo mais amplo de reestruturação do capitalismo global, mas apresentam particularidades que refletem a própria formação histórica do país. Enquanto a uberização, a precarização e a fragmentação das relações de trabalho são fenômenos mundiais, no Brasil eles se sobrepõem a estruturas históricas de desigualdade, informalidade e exclusão social, criando um cenário ainda mais complexo. A herança de um processo de industrialização tardio e incompleto, combinada com persistentes disparidades regionais e educacionais, faz com que estas transformações assumam contornos específicos no contexto nacional.

A forma como estas mudanças afetam a organização política dos trabalhadores brasileiros também apresenta características próprias. O enfraquecimento dos sindicatos tradicionais e a emergência de novas formas de organização coletiva, como as associações de trabalhadores por aplicativo, revelam não apenas uma mudança nas relações de trabalho, mas uma profunda transformação na própria identidade de classe. A volatilidade política observada entre os trabalhadores, especialmente aqueles que ganham entre dois e cinco salários mínimos, sugere que as antigas formas de compreensão da consciência de classe e do comportamento político precisam ser repensadas à luz destas novas realidades.

Em um cenário onde as fronteiras entre trabalho formal e informal se tornam cada vez mais fluidas, e onde a própria noção de emprego estável se transforma rapidamente, torna-se necessário desenvolver novos instrumentos teóricos e analíticos para compreender a formação de classe e a ação política. A emergência de identidades híbridas – como o trabalhador-empreendedor – e a crescente individualização das relações de trabalho desafiam as categorias tradicionais de análise e exigem uma renovação do pensamento social brasileiro.

Diante dos desafios impostos pela revolução tecnológica e pela reestruturação econômica global, o Brasil encontra-se em um momento crucial de redefinição das relações entre trabalho, capital e Estado. A compreensão adequada destas transformações e de seus impactos na formação da consciência política dos trabalhadores é fundamental não apenas para a análise acadêmica, mas para o próprio futuro da democracia brasileira. As novas configurações do trabalho e suas implicações para a organização política da sociedade demandam um esforço renovado de interpretação, que considere tanto as tendências globais quanto as especificidades locais na construção de novos paradigmas de análise social.


Referências:

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, p. 41-51, 2019.

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.

GUIMARÃES, Nadya Araujo. A procura de trabalho: Uma boa janela para mirarmos as transformações recentes no mercado de trabalho? Novos Estudos CEBRAP, n. 93, p. 123-143, 2012.

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Mercado de trabalho: conjuntura e análise. Brasília: IPEA, 2023.

LEITE, Márcia de Paula; RAMALHO, José Ricardo; VÉRAS DE OLIVEIRA, Roberto. Crise econômica e trabalho no Brasil: transformações e novos desafios. Tempo Social, v. 31, n. 1, p. 271-294, 2019.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

ROSSI, Marina. Nova classe trabalhadora não está satisfeita com governo Lula. É um fenômeno de classe, diz cientista político André Singer. BBC News Brasil, São Paulo, 18 jan. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4gzp1pgyv3o. Acesso em: 19 jan. 2025.

SINGER, André. O lulismo em crise: Um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

__________. Os sentidos do lulismo: Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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