Motogirls: quem são e o que reivindicam?

A maioria é negra e chefe de família. Tem pautas subalternizadas nos levantes da categoria, mas estão sujeitas a mais assédios, precariedade e endividamentos. São mais prudentes no trânsito e se organizam em redes de solidariedade. Como avançar na luta por direitos?

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Por Ana Pipper

Ao pedir um delivery por aplicativo, esperamos que por trás da buzina, campainha ou interfone esteja um motoboy. Sim, um homem. Em geral, eles têm 33 anos, trabalham em plataformas, são negros e moram na periferia, como mostra o último relatório da PNAD Contínua. Contudo, existem motogirls que vivem inúmeros desafios nesta atividade majoritariamente masculina, sendo invisibilizadas pela clientela, plataformas, políticas públicas e até por sua própria categoria profissional. Mas quem são elas?

Suas demandas, pautas, particularidades e desafios são enfrentados de forma solitária, aponta Khetury Magalhães, doutoranda na Universidade de Brasília, em entrevista concedida ao Outra Manhã.

Em sua dissertação de mestrado pela Universidade de Brasília, nomeada “Meu capacete já viu muitas lágrimas”: o trabalho feminino plataformizado a partir das experiências do coletivo Moto Brabas, publicada em abril deste ano, Magalhães analisa uma rede de trabalhadoras que revelam detalhes do cotidiano das motogirls. Localizada no Distrito Federal e entorno, foi criada em 2023, sendo organizada a partir de um grupo no WhatsApp, intitulado Moto Brabas.

As integrantes do grupo estudado são majoritariamente pretas ou pardas, possuindo entre 18 e 33 anos e responsáveis pelo sustento familiar, mesmo as mais jovens e não inseridas em um modelo patriarcal de família nuclear: provêm filhos, mas também irmãos, mães, avós ou sobrinhos. É a principal fonte de renda de 82% delas. Dispõem de 72 a 90 horas semanais para o trabalho em plataformas.

Dentre as Moto Brabas, um dos principais fatores para a escolha da profissão é a desvalorização e invisibilidade sofrida em empregos anteriores, mesmo que tenha sido exercido há anos. Enquanto entregadoras, enfrentam condições de trabalho ainda piores que os colegas homens, pois nesse contexto estão mais sujeitas à violência e ao assédio por parte de outros entregadores, funcionários dos restaurantes e clientes, especialmente quando sobem aos apartamentos para entregar pedidos. Também enfrentam mais dificuldade no acesso a banheiros em estabelecimentos comerciais. Além disso, sofrem com a má alimentação e infecções urinárias, conta Khetury em audiência na Câmara dos Deputados, convocada pela deputada Erika Kokay (PT/DF), sobre as condições de trabalho e de saúde dos trabalhadores de delivery por plataformas digitais.

Dois traços distinguem as mulheres entregadoras em relação ao restante da categoria, de acordo com Magalhães. O primeiro é a prudência no trânsito: elas investem mais em Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), custeando-os do próprio bolso, pois o medo de acidentes é algo muito presente entre as profissionais… Outro é a solidariedade. Sem acesso a benefícios da Previdência Social, como o auxílio-acidente, elas organizam-se para custear medicamentos, concerto das motos e ajuda financeira às famílias das acidentadas, por meio de rifas e vaquinhas.

Magalhães aponta, também, outra angústia compartilhada pelas motogirls: o eterno endividamento. A moto é a ferramenta de trabalho e nem sempre os rendimentos alcançam para pagar as parcelas, contratar o seguro ou adquirir uniformes e equipamentos básicos de segurança. “Elas tornam-se reféns dessa situação”,conta a pesquisadora.

A divisão sexual do trabalho online

Em Delivery Fight (2021, Veneta), o pesquisador britânico Callum Cant alerta que a descentralização e a dispersão da força de trabalho nas plataformas de delivery, altamente masculinizadas, com os homens representando 80% desse contingente, repelem as mulheres na organização sindical.

Normalmente, as motogirls possuem dificuldades de se enturmar nos grupos masculinos, online e presencialmente, mantendo-se isoladas ou na companhia de poucos durante a espera dos pedidos. O compartilhamento frequente de conteúdo sexista é um obstáculo à participação efetiva das mulheres em grupos de WhatsApp, por exemplo, principal meio de articulação política e circulação de informações da classe.

Há um nítido recorte de gênero no trabalho plataformizado, em geral. Nos de entrega, como Ifood, Glovo, Rappi, Uber Eats ou Zé Delivery e nos de transporte individual de passageiros, como a Uber e 99, predominam trabalhadores do gênero masculino, representando 81,3% da população plataformizada, segundo dados do IBGE e da Unicamp.

Já nas plataformas com serviços relacionados à beleza e limpeza no Brasil, como GetNinjas e Parafuzo, segundo as pesquisadoras Ana Claudia M.Cardoso, Célia da G. Arribas e Maria Júlia T. Pereira em artigo publicado no Outras Palavras, as mulheres ocupam quase 100% do índice de trabalhadores. Portanto, as plataformas digitais reproduzem uma “divisão sexual do trabalho on-line”, provocando novas formas de precariedades laborais, com base em divisões pré-existentes e nas desigualdades sociais.

Mesmo assim, homens se tornaram protagonistas nas pesquisas e discussões sobre trabalho plataformizado no mundo. O Projeto de Lei Complementar 12/2024 que visa regulamentar empresas-plataformas de transporte individual de passageiros no Brasil, por exemplo, sequer menciona direitos e proteção das trabalhadoras.

Contudo, entre as Moto Brabas, Khetury percebe haver um aumento da consciência e organização das entregadoras. Antes, a visão que predominava era de que a regulamentação do governo sobre as plataformas era uma maneira de arrecadar em cima do trabalho realizado por elas, o que, de acordo com a entrevistada, seria “fruto do discurso ideológico implementado pelas plataformas, desde que se expandiram”.

Ao perceberem que o trabalho não poderia mais ser considerado temporário, mulheres passaram a aderir mais às paralisações em busca de direitos para a categoria, mesmo diante das dificuldades imperativas relacionadas à falta de tempo e às necessidades financeiras. A deputada federal Érica Kokay, em audiência pública, abriu espaços de escuta para as trabalhadoras, visando levantar suas demandas e pautas. Nesse momento, as mulheres começam a se inserir no debate.

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