Escala 6×1, herança de um país escravista

A realidade brasileira da exploração extrema não se limita ao passado. População negra é quem mais sofre com excesso de jornada, abandono escolar, acidentes, adoecimento e desmotivação. A alta informalidade segue como uma face ainda mais perversa

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Este texto foi escrito por Carlos Alberto de Oliveira, com o título original Negro – Trabalhador ou escravo de carteira assinada? Uma abordagem interseccional da jornada de trabalho, e faz parte de um dossiê organizado pelo Cesit/Unicamp, Site DMT, Remir, GEPT/UNB e FCE/UFRGS e publicado em parceria com o Outras PalavrasLeia aqui a série completa

Introdução

O presente artigo busca explorar a complexa relação entre a herança histórica da escravidão no Brasil, a jornada de trabalho do negro, o fim da jornada 6xl e a redução da jornada de trabalho.

Ao traçar um paralelo entre as condições de trabalho dos escraviza­dos e a realidade contemporânea dos trabalhadores negros, evidencia-se uma continuidade de desigualdades que, apesar dos avanços normativos, ainda persistem no mercado de trabalho. A interseccionalidade entre raça e trabalho revela que, mesmo em um contexto em que a legislação garante direitos, os trabalhadores negros enfrentam jornadas exaustivas, remune­rações inferiores e condições de trabalho desiguais em comparação aos seus colegas não-negros (Santos, Diogo e Schucman, 2014).

Durante a escravidão, os negros foram forçados a trabalhar em condi­ções desumanas, sem quaisquer direitos ou proteção. Mesmo com o fim da escravidão, em 1888, muitos ainda enfrentaram dificuldades para encontrar trabalho digno, sendo frequentemente destinados a funções de baixa remu­neração e sem garantias trabalhistas. Essa realidade permanece ao longo dos anos, criando um ciclo de pobreza e exclusão social.

A ideia de que o trabalhador negro é destinado a executar trabalhos de menor importância é uma manifestação direta do racismo estrutural. Muitas vezes, esses trabalhadores são alocados em funções que não são valorizadas, como serviços gerais, limpeza e outras atividades que, embora essenciais, são desconsideradas em termos de prestígio e reconhecimento. Essa desva­lorização do trabalho negro é um reflexo de uma sociedade que ainda carrega resquícios da escravidão (DIEESE, 2024). Além disso, a expressão “escravo de carteira assinada” ilustra a precarização das condições de trabalho enfren­tadas por muitos negros. Embora estejam formalmente empregados, muitos trabalhadores negros se veem em situações de exploração, com jornadas exaustivas, baixos salários e poucas perspectivas de crescimento.

Essa realidade é um lembrete de que, mesmo com a formalização do trabalho, as relações de poder e a desumanização ainda persistem, ficando notória com as diversas flexibilizações da relação de trabalho, que só retira­ram direitos dos trabalhadores, conquistados há décadas.

Por certo que os trabalhadores que estão na informalidade possuem condições piores que os formalizados, pois aqueles sequer possuem um arca­bouço normativo que ofereça o mínimo de proteção. Se considerarmos dados do DIEESE (2023) dando conta que mulheres negras e homens negros repre­sentavam, em 2022, 54,5% dos ocupados, somando 53,9 milhões de pessoas e que 46,1 % da população negra ocupada trabalhava informalmente e que entre as mulheres negras, 46,5% trabalhavam sem carteira assinada e não contribuíam com a Previdência Social, concluiremos que a desumanização é maior por não existir controle de jornada e nem a proteção efetiva estatal.

A jornada do trabalhador negro

Historicamente, os escravizados eram submetidos a jornadas de trabalho que variavam entre 14 e 16 horas diárias, sem qualquer direito a interva­los ou compensações (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1988, p. 10-11).

Além da jornada exaustiva, a labuta do negro não termina após registrar sua saída do local de prestação dos serviços, uma vez que se deve considerar o tempo gasto com deslocamento o que fará com que a jornada do trabalha­dor negro seja mais fatigante do que a do não-negro.

A maior parte da população brasileira leva até 30 minutos para chegar ao trabalho e uma minoria gasta mais de uma hora nesse deslocamento. Os maio­res percentuais entre os que levam até mais de duas horas de casa ao trabalho são registrados nas áreas urbanas e entre a população negra (Tokarnia, 2014).

A realidade de exploração extrema não se limita ao passado; ela se reflete nas condições atuais enfrentadas por muitos trabalhadores negros, que acabam por ingressar precocemente no mercado de trabalho para com­plementar a renda familiar, abandonando muito cedo o sistema educacional.

Com o abandono escolar, o negro não possui condições de qualificação profissional, pois raros são os casos em que é possível conciliar estudo e tra­balho, principalmente quando há sobrejornada.

Então, contra o negro ocorrem duas situações agravantes no que se refere a duração do trabalho: a jornada extenuante e a falta de compensa­ção pelas horas extraordinárias. Mas se houver uma reflexão mais apurada, constatar-se-á que há situações agravantes, humilhantes e desumanas que são mais profundas e que parte da constatação se “o trabalhador” for uma mulher negra. A escala vai aumentando se for uma mulher negra e pobre. O auge da discriminação ocorre se for uma mulher negra, pobre e portadora de deficiência.

O excesso de jornada não apenas impacta a saúde física e mental dos trabalhadores, mas também limita suas oportunidades de crescimento e de­senvolvimento pessoal.

A lógica do mercado de trabalho, que deveria ser pautada pela equidade, revela-se, na verdade, como um sistema que perpetua a desigualdade racial.

A interseccionalidade, portanto, não é apenas uma questão teórica, mas uma realidade vivida por milhões de brasileiros que, devido à cor da pele (e também sexo, cultura, etnia, classe social etc.) enfrentam barreiras adicio­nais em suas jornadas profissionais.

A perversidade da jornada 6×1

A estrutura de trabalho em escala 6×1, que exige que os trabalhadores atuem por seis dias seguidos com apenas um dia de folga, é perversa. Essa con­figuração não apenas intensifica a carga horária, mas também desconsidera as necessidades básicas de descanso e recuperação, especialmente para aqueles que já enfrentam jornadas extenuantes, como os trabalhadores negros.

É perversa porque rouba a energia do trabalhador, adoecendo-o ou desmotivando-o, conforme descreve o SINAIT (2024): o ritmo intenso do trabalho pode trazer problemas de saúde e até desmotivação, já que o tempo para recarregar e encontrar equilíbrio é reduzido.

É perversa porque expõe o trabalhador a acidentes de trabalho, que ocorrem, muitas das vezes pela falta de concentração, devido ao esgotamen­to físico e mental do trabalhador. O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais sinalizou no mesmo diapasão:

Como autoridades trabalhistas, que atuamos fiscalizando os ambientes de trabalho e investigamos as reais causas dos acidentes de trabalho nos diversos setores empresariais, sabemos que quanto mais longa a jornada de um(a) trabalhador(a), mais chance ele(a) tem de sofrer um aciden­te de trabalho. Portanto a jornada de trabalho reduzida é um fator que contribuirá decisivamente para preservar a saúde e integridade física e mental dos trabalhadores brasileiros (SINAIT, 2024, p. 1).

É perversa porque causa prejuízo ao governo por arcar com benefícios previdenciários devidos pelo afastamento do trabalhador de suas funções laborais de modo que é, a sociedade, que arca com os gastos públicos, con­forme se constata abaixo:

Os riscos de jornadas mais longas são iminentes e deles comumente de­correm eventos que implicam o aumento de despesas previdenciárias e de gastos públicos com a saúde, devido ao afastamento do trabalhador em razão de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho. No Brasil são registrados anualmente cerca de 500 mil acidentes de trabalho e mais de 2.800 trabalhadores sofreram acidentes fatais (SINAIT, p. 1).

 É perversa ao cercear a participação dos trabalhadores fora do ambiente de trabalho, limitando a sua individualidade, reduzindo seu momento de lazer, reduzindo o convívio familiar, comprometendo o tempo despendido para o desenvolvimento de suas crenças e credos.

A jornada 6xl é perversa, mas não significa que seja o limite máximo praticado, pois a perversidade acontece em escala que chega a l0xl, como no caso dos acordos coletivos que autorizavam essa escala na rede de su­permercado gaúcha Zaffari, conforme denunciado por trabalhadores:

No começo, quando comecei no setor de hortifruti, eles puxaram o dez por um. Passou dois, três meses e ficou mais seguido. Às vezes é nove, às vezes é oito, às vezes é dez. Mas quando a gente é contratado eles falam que é seis por um (DMT, 2024, p.l).

A proposta de discutir o fim dessa escala é fundamental para promover um ambiente de trabalho mais justo e humano, que respeite os direitos de todos os trabalhadores, independentemente de sua raça.

Redução da jornada e qualidade de vida

O homem é um ser social e como tal relaciona-se com sua família, com seus amigos. Possui momentos de lazer em grupo ou individual, de forma que se completa com participação em vários espaços sociais.

A jornada 6xl limita essa participação (mais ainda do trabalhador ne­gro que trabalha mais horas que o trabalhador não negro) não permitindo a recuperação do esgotamento físico, desfavorecendo o equilíbrio entre a vida social e profissional do trabalhador. Esse esgotamento tem amplas con­sequências, inclusive no ambiente de trabalho, onde o trabalhador entrega resultado aquém de sua capacidade produtiva.

Essa verdade fica bem notória no texto abaixo:

A previsão de três dias consecutivos de descanso permitirá ao trabalha­dor uma recuperação emocional e mental mais duradoura e que refletirá diretamente na sua capacidade de produção. Esse intervalo favorece um desligamento saudável das pressões do dia a dia, proporcionando ao tra­balhador um tempo necessário para o fortalecimento físico e emocional e reduzindo os índices de estresse e esgotamento, problemas que têm se intensificado com a rotina moderna e a alta demanda por produtividade. A mudança proposta favorece o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional (SINAIT, 2024, p. 1). 

As declarações dos empregados da empresa ZAFFARI, trazidas pelo In­formativo do DMT – Democracia e Mundo do Trabalho em reportagem de Theo Dalla, também evidencia as consequências da jornada exaustiva.

Eu chegava com sono na escola e não conseguia prestar atenção. Eu es­tudava de manhã e trabalhava de tarde. Eu estava sempre cansada e eles brigavam comigo por estar cansada”. A situação se tornou insustentável a ponto de ter que abandonar os estudos – ela não concluiu o Ensino Mé­dio, mas permanece no trabalho. Por fim, revelou ter colegas que saíram do mercado com ansiedade e depressão. “A gente ganha pouco e ainda tem que gastar dinheiro com terapia, porque não dá pra aguentar (Dal­la/2025, p. 2.).

A implementação de uma jornada mais curta poderia não apenas me­lhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, mas também contribuir para a diminuição das desigualdades raciais no mercado de trabalho. Ao garantir que todos os trabalhadores tenham acesso a condições dignas e a uma carga horária justa, será possível começar a desmantelar as estruturas que perpe­tuam a discriminação e a exploração.

Considerações finais

O racismo estrutural, que permeia diversas esferas da sociedade, in­cluindo o mercado de trabalho, é um dos principais fatores que contribuem para a disparidade entre trabalhadores negros e não-negros. A falta de opor­tunidades de ascensão profissional, a discriminação nas contratações e a perpetuação de estereótipos negativos são apenas algumas das barreiras que os trabalhadores negros enfrentam diariamente.

Portanto, a luta por igualdade no trabalho deve ser acompanhada de uma reflexão crítica sobre as estruturas sociais que sustentam essas desigualdades.

Uma verdade não pode ser acobertada: trabalhadores negros enfrentam jornada de trabalho maior que o não negro, sem a devida remuneração com­pensatória, relembrando o tempo da escravidão, quando era considerado tão somente um objeto na produção de riquezas usufruídas pelos exploradores.

A jornada do trabalhador negro no Brasil é um reflexo de uma história marcada pela exploração e pela opressão. A interseccionalidade entre raça e trabalho revela as complexidades dessa realidade, que exige uma abordagem crítica e transformadora.

O reconhecimento das desigualdades persistentes e a busca por soluções, como a redução da jornada de trabalho e o fim da escala 6×1, são passos fun­damentais para construir um mercado de trabalho mais justo e equitativo.

A luta por dignidade e direitos no trabalho é, portanto, uma luta por justiça social, que deve ser abraçada por negros e não-negros, pois quem procura trabalho não procura escravidão, ainda que essa venha disfarçada por contrato, discurso e carteira de trabalho assinada.

Referências


BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Para uma história do ne­gro no Brasil. Catálogo de Exposição. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. 1988. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon1104317/icon1104317.pdf.

DIEESE. A inserção da população negra no mercado de trabalho. São Paulo: DIEESE, 2023. Disponível em: https://www.dieese.org.br/infografi­co/2023/populacaoNegra.pdf. Acesso em: 27 out. 2025.

DIEESE. Boletim Especial. Dia da Consciência Negra: Apesar dos avan­ços, desigualdade racial de rendimentos persiste. 2024. Disponível em https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2024/conscienciaNegra.pdf.

DALLA, T. Escala de lOx 1 é denunciada por trabalhadores da Zaffari. Rio Grande do Sul. 2025. Disponível em: https://www.dmtemdebate.com.br/escala-de-1 0xl-e-denunciada-por-tra ba lhadores-da-zaffari/.

TOKARNIA, M. População negra gasta mais tempo para chegar ao trabalho que a branca. Agência Brasil. Brasília, 2014. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-12/populacao-negra-gasta-mais-tempo-para-chegar-ao-trabalho-que-branca

SANTOS, E. F. S.; DIOGO, M. F.; SHUCMAN, L. V. Entre o não lugar e o prota­gonismo: Articulações entre trabalho, gênero e raça. Cadernos de Psicolo­gia Social do Trabalho, v. 17, n. 1, pp. 17-32, 2014.

SINAIT. Editorial – PEC que prevê redução da jornada de trabalho vai tornar o trabalho decente uma realidade mais próxima. Brasília, 2024. Disponível em: https://www.sinait.org.br/noticia/22331/editorial-pec-que%C2%AD-preve-reducao-da-jornada-de-trabalho-e-maior-numero-de-dias-de-repou%C2%ADso-vai-tornar-o-trabalho-decente-uma-realidade-mais-proxima

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