Dívida, outra forma de explorar uberizados
Oprimidos por baixa remuneração, eles pagam muito pela compra, aluguel e manutenção dos veículos. Depois, corporações apresentam-se como “salvadoras”, concedendo empréstimos e cobrando juros, em nova modalidade de “escravidão por dívidas”
Publicado 23/09/2025 às 17:35

A financeirização da economia, marca do neoliberalismo no século XXI, atualizou os mecanismos de dominação colonial através das plataformas digitais. A lógica do capital financeiro, materializada na especulação, dataficação, rentismo e hiperexploração é o vetor desse processo. Isso passa a redesenhar o mapa global da exploração com o advento das plataformas digitais, dando ao capitalismo um novo fôlego até outra crise estrutural. Essas corporações transcendem fronteiras nacionais e atuam como agentes de um neocolonialismo digital, extraindo valor e mão de obra excedente de países periféricos de forma eficiente e desterritorializada.
O relatório do Fairwork Brasil 2025, evidencia a questão do endividamento dos trabalhadores de plataformas digitais no Brasil como um problema crescente e multifacetado. A pesquisa traz uma seção específica sobre o tema intitulado “Neocolonizadores digitais: plataformas pagam pouco e ainda lucram com empréstimos aos trabalhadores”, em que a lógica do endividamento é detalhada. A síntese sobre o endividamento pode ser organizada, basicamente, tendo por base dois principais pontos: o primeiro compõe as causas que levam ao endividamento e, o segundo, que coloca as plataformas como agentes financeiros.
No que diz respeito às causas do endividamento, a combinação de baixos salários com os altos custos de manutenção dos instrumentos de trabalho (veículo, combustível, pacotes de dados, etc.) cria um cenário onde os ganhos muitas vezes não cobrem as despesas. Isso força os trabalhadores a contraírem dívidas para conseguirem continuar trabalhando. Uma pesquisa citada no relatório aponta que cerca de 92% dos motoristas de plataformas digitais no Brasil estão endividados1.
A falta de cobertura em casos de acidentes ou problemas de saúde, que são comuns devido às jornadas exaustivas, contribui para o acúmulo de dívidas, pois os trabalhadores ficam impedidos de atuar e gerar renda. Ou seja, a ausência de proteção social ao trabalhador, embora seja um aspecto que passa na maior parte das vezes como despercebido, acaba sendo uma armadilha para quem trabalha nas plataformas. Isso porque elas simplesmente transferem todos os riscos da atividade para os trabalhadores.
Além disso, não só para o caso de acidentes, mas também para caso de multas ou manutenção com o veículo, são fontes de gastos que podem levar os trabalhadores a acumular dívidas. Há ainda as situações de envolvimento direto com as empresas, como os casos de cancelamento de pedidos, extravio de produtos (mesmo por motivos de roubo) ou quando não conseguem localizar o cliente. Nestas todas, os trabalhadores costumam ser responsabilizados pelos custos do material que não foi entregue. Um trabalhador da Rappi relatou: “Quando o cliente cancelar um pedido em sua mão, ele já gera uma dívida para você”. Situações como esta são recorrentes nos relatos dos trabalhadores, sobretudo dando margem aos clientes que, porventura, querem agir de má fé, alegando que o produto não foi recebido, quando na verdade foi, por exemplo.
Outro aspecto central nas muitas camadas que envolvem a temática do endividamento é o amplo comércio de aluguel de carros, motos e bicicletas que se cria em torno e na relação direta com as plataformas. Frequentemente, essas locadoras são parceiras das plataformas, que autorizam o débito direto na conta do profissional. Isso faz com que os trabalhadores comecem o dia com um saldo negativo. Um motorista descreveu a situação: “sem ter trabalhado nada, já cheguei na segunda-feira para trabalhar endividado”.
No segundo ponto desta organização, está o papel das plataformas como agentes financeiros. O relatório do Fairwork 2025 revela que as empresas de plataforma têm atuado cada vez mais como provedoras financeiras, oferecendo empréstimos pré-aprovados diretamente aos trabalhadores através dos aplicativos. Plataformas como Uber (Banco Didio), 99 (com o serviço 99 Empresta), o iFood (com o iFood Pago) e Indrive (com a inDrive.Money) adotam essa prática.
Essa estratégia cria um ciclo vicioso: a plataforma paga pouco, gerando a necessidade de crédito e depois lucra com os juros dos empréstimos que ela mesma oferece. Um motorista da Uber relatou ter aceitado um empréstimo por desespero para pagar o que gastou com remédios para tratar doenças ocupacionais. Ou seja, a empresa cria o problema ao trabalhador, transfere a responsabilidade integralmente a ele que, na condição de não ter como pagar, acaba refém de um financiamento fornecido por essa mesma empresa. Ao final, a plataforma não só explora o trabalho dos sujeitos que dependem dela, como ainda ganha com juros do que ele foi obrigado a pagar por não ser responsável pelos custos da própria atividade.
Além de gerar lucro adicional, essa prática aumenta a probabilidade de o trabalhador permanecer vinculado à empresa para quitar a dívida. Tal contexto pode alimentar intimamente um ciclo de dependência do trabalhador à plataforma. Em suma, o relatório destaca que o endividamento não é uma consequência acidental, mas sim um elemento estrutural e estratégico do modelo de negócio das plataformas digitais no Brasil. Elas impõem condições precárias que levam ao endividamento e, em seguida, se posicionam como a “solução” financeira, lucrando duas vezes sobre a vulnerabilidade dos trabalhadores e aprofundando a sua dependência e exploração.
Vários autores têm destacado que o capital tem atuado não apenas por meio da exploração, mas também da espoliação e da expropriação do trabalho (Antunes, 2018). Harvey (2024) define esse atual contexto como “novo imperialismo”, já que é marcado crescentemente pela “acumulação por espoliação”, na qual o capital busca lucros por meio de práticas predatórias e não pela reprodução ampliada. Lazzarato (2010) evidencia que a política de dívidas constitui uma das características fundamentais da financeirização. Para ele, a sujeição e a servidão trabalham em conjunto para capturar o desejo e a força produtiva do social, exigindo uma nova abordagem para a ação política que vise a dessubjetivação. Nesse contexto, a financeirização configura-se como um mecanismo central para a plataformização do trabalho, operando como um modo de acumulação de riqueza das plataformas (Grohmann; Salvagni, 2023). Para os autores, esse mecanismo atua de forma articulada com o gerenciamento algorítmico e a dataficação, incluindo suas dimensões ideológicas da racionalidade neoliberal como uma etapa crucial nesse processo.
A exploração é o caso clássico da extração de mais valor no processo de trabalho. Trata-se, portanto, de uma forma de acumulação de capital por meio de uma relação no âmbito econômico. Em teoria, os trabalhadores são “livres” para oferecer a sua força de trabalho para o capital. A expropriação e a espoliação eram conceitos até então vinculados à formas não capitalistas de produção, como o feudalismo e o escravagismo. No entanto, no século XXI, tem-se visto cada vez mais a utilização pelo capital de recursos extra-econômicos, muitos no campo político e coercitivo, para impor seus regimes de trabalho e avançar na acumulação do capital.
A retirada de direitos protetivos do trabalho e de cidadania é um exemplo disso, constituindo-se fenômenos sociais como é o caso do precariado (assalariados que recebem rendas abaixo do necessário para sua reprodução social e está destituído ou limitado de seus direitos como cidadãos). Antigamente, a dívida como recurso de espoliação e expropriação da renda de um trabalhador esteve vinculada às atividades do meio rural. O lavrador acabava assumindo uma dívida com o fazendeiro (por conta do aluguel da moradia, da dívida na mercearia da fazenda, da viagem gasta pela migração etc.) e, apesar de não ser um escravo, era impedido de fugir por meio de capatazes. O próprio isolamento das propriedades rurais, longe dos grandes centros urbanos, dificultava qualquer tentativa de se libertar desta dívida injusta. No caso da dívida moderna, como é o caso da verificada entre entregadores de aplicativos, os mecanismos de dependência e coerção são mais sofisticados. As condições de vida foram erodidas ao longo dos anos e direitos protetivos foram retirados (tais como o poder de fiscalização e o reconhecimento do vínculo de emprego), deixando-se ainda mais vulneráveis frente ao poder do capital. Dessa forma, esses trabalhadores acabam se subjugando à condição das dívidas, sobretudo porque o contexto não lhes apresenta outra alternativa.
Esse contexto demonstra que a alegada autonomia no trabalho plataformizado é ilusória. A transferência dos riscos empresariais para o trabalhador resulta em uma posição de subserviência. A opção por empréstimos não decorre de uma escolha livre, mas de uma realidade marcada pelo endividamento e pela escassez de opções. As experiências narradas evidenciam as nuances de uma significativa reestruturação do mundo do trabalho, impulsionada pela tecnologia. O trabalho nas plataformas digitais, portanto, aprofunda a exploração e pode acabar estabelecendo uma relação de dependência direta para com a empresa.
Referências
Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviços na era digital. Boitempo.
Grohmann, R., & Salvagni, J. (2023). Trabalho por plataformas digitais: do aprofundamento da precarização à busca por alternativas democráticas. Edições Sesc SP.
Harvey, D. (2004). O “novo” imperialismo: acumulação por espoliação. Socialist register, 40(1), 95-126.
Lazzarato, M. (2010). Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de subjetividade, (12), 168-179.
Sobre os autores:
Julice Salvagni – Professora da Escola de Administração e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ricardo Festi – Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e pesquisador convidado do Institut de recherches interdisciplinar en sciences sociales (Irisso) da Université Paris Dauphine.
Jonas Chagas Lucio Valente – Pesquisador no Oxford Internet Institute.
1 Zem, R. (2025) Os motoristas de aplicativos trabalham até 60 horas semanais, ganham menos de R$ 4 mil e acumulam dívidas; diz pesquisa. Em G1, 26/07/2025. Pode ser encontrado em https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/07/26/motoristas-de-app-faturamento-trabalho-horas-pesquisa.ghtml.
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