Como a América Latina trata as empresas-plataforma
Em toda a região, atuam corporações que se servem das novas tecnologias – essencialmente para lucrar muito e achatar direitos trabalhistas. No México e Chile, os Estados já estabelecem relações mais robustas. Argentina e Brasil estão entre os que caminham mais devagar
Publicado 24/03/2025 às 18:21

Título original
Regulação do trabalho mediado por plataformas na América Latina
Transformações profundas estão ocorrendo em todo o sistema de produção de bens e serviços, no campo e na cidade, na agricultura, na indústria, no comércio, no setor de serviços e no setor público. Essas mudanças atingem o mundo do trabalho, muitas vezes de forma disruptiva: o que existe desaparece e algo novo surge, exigindo respostas inovadoras e inéditas. A digitalização, a internet sem fio, o celular, a inteligência artificial, entre outros, estão revolucionando a economia e a vida em sociedade.
As novas tecnologias e a terceirização passam a abrir oportunidades para novos negócios ou para a realização de atividades de forma inovadora, como, por exemplo, o transporte de pessoas e mercadorias por meio de plataformas digitais ou aplicativos que fazem a mediação entre a demanda e a oferta de múltiplos serviços às pessoas, às famílias e às empresas.
Nesse novo contexto produtivo e trabalhista disruptivo, as legislações nacionais, os sistemas tributários, as políticas públicas, os sistemas de proteção trabalhista e previdenciária, as negociações e contratações coletivas revelam-se insuficientes, gerando desigualdades e concorrências desleais entre empresas, precarização do trabalho, perda fiscal e ausência de responsabilidades acessórias ou setoriais por parte das empresas.
Diante disso, torna-se cada vez mais urgente e necessário criar modelos e sistemas regulatórios para abranger essas empresas e atividades sob os pontos de vista econômico, setorial, tributário, trabalhista, entre outros.
Nessa dinâmica de transformações e desafios, a prestação de serviços mediados por plataformas digitais vem ganhando prioridade, especialmente a regulamentação dos trabalhos realizados através de plataformas digitais no transporte de pessoas e de mercadorias. Em artigos recentes, apresentamos a regulação feita pela União Europeia1 do trabalho mediado por plataformas. Neste artigo, trataremos de iniciativas para regular ou implementar regras em países na América Latina, destacando alguns países que estão tomando medidas para enfrentar esse desafio, como Chile, Colômbia, México, Costa Rica, Uruguai e Brasil.
Destaca-se que essa nova dinâmica produtiva encontra, no continente latino-americano, um mundo do trabalho com alta informalidade, rotatividade, precarização e vulnerabilidade, no qual milhões de trabalhadores encontram-se fora dos marcos regulatórios e protetivos, o que adiciona o desafio de inaugurar mecanismos que ampliem a inclusão econômica, regulatória e protetiva.
Chile
A regulamentação do trabalho mediado por plataformas digitais no Chile está definida na Lei Nº 21.4312, que alterou o Código do Trabalho e entrou em vigor em março de 2022. O Chile foi o primeiro país da América Latina a contar com esse tipo de legislação, que estabelece direitos e obrigações para trabalhadores de aplicativos de transporte e entrega, além de definir regras para as plataformas digitais. Destacamos a seguir os principais aspectos da Lei:
- Criação de duas categorias de trabalhadores: a de trabalhadores dependentes, que mantêm uma relação de subordinação com a plataforma digital, e a de trabalhadores independentes, que operam de forma autônoma, sem subordinação direta.
- Direitos dos trabalhadores dependentes: registro na previdência social; jornada de trabalho regulada (com direito a descanso e limites de horas); acesso a seguro de acidentes de trabalho e outros benefícios trabalhistas.
- Direitos dos trabalhadores independentes: contrato por escrito com a plataforma.
- As plataformas devem garantir seguro de vida e contra acidentes de trabalho e invalidez.
- Garantia de transparência sobre os critérios de atribuição de tarefas e avaliações, bem como sigilo individual das informações.
- Piso mínimo equivalente ao salário mínimo, acrescido de 20% por hora trabalhada.
- As plataformas devem pagar contribuições previdenciárias para os trabalhadores dependentes e oferecer mecanismos de inclusão previdenciária para os independentes.
- Obrigatoriedade de as plataformas explicarem o funcionamento dos algoritmos utilizados na atribuição de tarefas e nos sistemas de gestão e avaliação dos trabalhadores.
- Proibição de desativação de contas sem justificativa clara e sem oferecer um processo de contestação.
- Direito à organização sindical, à negociação e à contratação coletiva para trabalhadores dependentes e independentes.
Esses direitos representam um avanço considerável em relação às condições anteriores, embora ainda fiquem aquém do previsto na legislação trabalhista e protetiva chilena para os trabalhadores formais. Assim como em outros países e na União Europeia, a lei busca estabelecer diretrizes para uma relação equilibrada entre a flexibilidade do trabalho digital e as proteções básicas, a fim de evitar a precarização. Nos próximos três anos, haverá uma avaliação anual dos impactos e resultados decorrentes da implementação.
México
O México aprovou, em dezembro de 2024, uma mudança na Lei Federal do Trabalho3 para tratar do trabalho mediado por plataformas digitais. A nova lei entrará em vigor em junho de 2025.
A legislação considera como trabalhador de plataforma digital com vínculo empregatício aquele que fornece serviços pessoais, remunerados e subordinados, sob o comando e supervisão de uma pessoa física ou jurídica que oferece serviços a terceiros por meio de uma plataforma digital, e que gera renda líquida mensal equivalente a um salário mínimo ou mais, independentemente do tempo efetivamente trabalhado. Esses trabalhadores terão acesso a benefícios como assistência médica, seguro contra acidentes, participação nos lucros das empresas, licença-maternidade, férias remuneradas e bônus de Natal (equivalente ao 13º salário).
Serão considerados trabalhadores independentes aqueles que, ao final de cada mês, não atingirem a renda correspondente a um salário mínimo. Outros aspectos da lei incluem:
- A relação de trabalho terá início sempre que uma pessoa atender às condições para ser considerada trabalhadora de plataforma digital. Caso interrompa suas atividades por 30 dias consecutivos, a relação de trabalho será automaticamente encerrada, sem ônus para o empregador.
- O tempo de trabalho será definido pelo próprio trabalhador, com total liberdade para conectar-se e desconectar-se do aplicativo, sem horários fixos.
- A remuneração será estabelecida por tarefa, serviço ou conclusão de trabalho.
- Trabalhadores que excederem 288 horas anuais de trabalho real terão direito à participação nos lucros da empresa.
- Gorjetas não serão incluídas no cálculo do salário base para fins de contribuição previdenciária.
- As empresas deverão registrar seus trabalhadores no Instituto Mexicano de Seguridade Social e contribuir com o Instituto do Fundo Nacional da Habitação para os Trabalhadores, garantindo acesso a créditos habitacionais.
- As plataformas devem implementar uma “Política de Gestão Algorítmica do Trabalho”, tornando transparentes as regras de funcionamento dos algoritmos e assegurando que os trabalhadores compreendam como suas atividades e remuneração são definidas.
- As empresas de plataformas digitais deverão custear o seguro de vida.
Uruguai
A Câmara dos Deputados aprovou, em setembro de 2024, o projeto de lei encaminhado pelo governo para regulamentar o trabalho de motoristas e entregadores de plataformas digitais. A proposta segue para votação no Senado.
Costa Rica
Protestos de entregadores em julho de 2024 impulsionaram o processo legislativo para regulamentar o trabalho mediado por plataformas digitais. A proposta em discussão presume a existência de vínculo empregatício entre o entregador e a empresa proprietária da plataforma nos serviços de entrega ou distribuição de produtos.
Colômbia
A Colômbia realizou um processo de reforma da legislação trabalhista que incluía a regulamentação do trabalho mediado por plataformas digitais. No entanto, em 18 de março de 2025, o Senado rejeitou a proposta, arquivando-a. O governo estuda agora a emissão de decretos para tratar das condições de trabalho desses profissionais. Destaca-se que a empresa Rappi e o Sindicato de Trabalhadores firmaram acordos trabalhistas visando melhorar as condições dos trabalhadores de plataformas digitais, sinalizando a busca por soluções alternativas.
Argentina
Na Argentina, o trabalho mediado por plataformas digitais de entrega e transporte é enquadrado em um regime que exige que os trabalhadores contribuam individualmente para garantir direitos previdenciários e sociais mínimos. Nessa configuração, a relação é tratada como prestação de serviços independente e relação comercial entre o trabalhador autônomo e a plataforma.
Brasil
Em 2023, o governo criou um Grupo de Trabalho Tripartite (trabalhadores, empresas e governo) com a finalidade de elaborar propostas de regulamentação das atividades de prestação de serviços, transporte de bens, transporte de pessoas e outras atividades realizadas por meio de plataformas tecnológicas.
No processo de negociação, foi elaborado um acordo sobre o trabalho de transporte de pessoas mediado por plataformas digitais, que originou o Projeto de Lei Complementar nº 12/20244, encaminhado ao Congresso.
O acordo tripartite garante ao motorista autônomo uma condição jurídica híbrida: trata-se de um trabalhador formalmente autônomo, com proteção previdenciária e trabalhista, acesso a trabalho decente, direito à informação, à organização sindical, à representação e à negociação coletiva.
O trabalhador autônomo define livremente os dias, horários e períodos de conexão ao aplicativo, sem exclusividade.
O projeto assegura o direito à organização e representação sindical com atribuições negociais para firmar acordos e convenções coletivas. Garante também acesso transparente às informações atualmente sob domínio das plataformas (como oferta de viagens, pontuação, bloqueio, suspensão e exclusão), além de estabelecer mecanismos de contestação dessas medidas e diretrizes para a eliminação de todas as formas de discriminação.
A participação no sistema previdenciário garante direito à aposentadoria, a auxílios saúde e maternidade, e à proteção da família. Os trabalhadores contribuirão com 7,5% sobre sua remuneração, e as empresas com 20%.
O projeto define um piso remuneratório e de cobertura de custos no valor de R$ 32,10 por hora, para uma jornada de 8 horas diárias ou 176 horas mensais, garantindo uma remuneração base de R$ 5.650,00. Esse valor é considerado um mínimo, já que a renda mensal dependerá do preço dinâmico das corridas e da variação de tempo e distância.
Conclusão
São evidentes os desafios e os esforços em curso nos países para regular as atividades econômicas e definir os enquadramentos que responsabilizem as empresas em relação a tributos, normas setoriais e regras nas relações de trabalho, sejam elas de trabalhadores subordinados ou autônomos. Estão sendo dados os primeiros passos de uma longa caminhada de iniciativas governamentais, de debate legislativo deliberativo, de reorganização das empresas e de lutas sindicais.
Referências
1 Ver https://www.poder360.com.br/opiniao/uniao-europeia-o-trabalho-em-plataformas-digitais-exige-regulacao/
2 Texto da Lei disponível em https://www.bcn.cl/leychile/navegar?idNorma=1173544
3 Acesso a Lei Mexicana: https://www.dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=5746132&fecha=24/12/2024#gsc.tab=0
4 “Síntese Especial – o acordo tripartite para regulamentação do trabalho em plataforma de transporte remunerado de passageiros”, produzido pelo DIEESE e disponível em www.dieese.org.br.
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