Brasil, lar dos idosos precarizados?
Em 2024, parcela da população com 60+ ocupada bate recorde. Maioria é de informais. Enfrentam, com recursos limitados, as incertezas de uma velhice com baixa proteção social. Drama atinge em especial mulheres e negros e expõe desafios urgentes às políticas públicas
Publicado 10/12/2025 às 17:29 - Atualizado 10/12/2025 às 17:30

A experiência do trabalho para além dos números: idosos, gênero e raça
Os indicadores recentes sobre o mercado de trabalho brasileiro revelam mais do que meras estatísticas: desvelam experiências vividas por milhões de trabalhadores e trabalhadoras que, cotidianamente, confrontam estruturas de dominação e precarização.
A Síntese de Indicadores Sociais 2025, divulgada pelo IBGE, aponta que 24,4% das pessoas com 60 anos ou mais estavam ocupadas em 2024, o maior nível histórico registrado. Longe de representar simplesmente uma “conquista” econômica, esse dado exige uma leitura atenta às condições materiais e simbólicas que impelem idosos e idosas a permanecerem ou retornarem ao mundo do trabalho. A baixa taxa de desemprego nessa faixa etária — apenas 2,9% — não pode ser dissociada do fato de que 55,7% dessas ocupações são informais, o que sugere menos uma escolha autônoma e mais uma imposição estrutural para a sobrevivência.
A dimensão de gênero atravessa essa realidade de maneira contundente. Conforme aponta o levantamento do G1 sobre a pesquisa do IBGE, apenas 49,1% das mulheres brasileiras encontravam-se ocupadas em 2024, contra 68,8% dos homens. Essa disparidade, que se mantém praticamente estável desde 2012, não resulta de diferenças naturais ou de uma suposta menor aptidão feminina, mas de uma divisão sexual do trabalho historicamente construída que sobrecarrega as mulheres com responsabilidades domésticas e de cuidado não remuneradas. As mulheres dedicam quase o dobro do tempo que os homens aos afazeres domésticos, o que limita objetivamente suas possibilidades de inserção e permanência no mercado formal. Essa sobrecarga, longe de ser um dado imutável da condição feminina, é produto de relações sociais que podem e devem ser transformadas.
A intersecção entre gênero e raça aprofunda ainda mais as desigualdades. As mulheres pretas e pardas apresentam as maiores taxas de subutilização e os menores rendimentos entre todos os grupos analisados.
Os dados de 2024 confirmam essa análise: enquanto homens idosos brancos recebiam R$ 33,10 por hora, idosos pretos ou pardos obtinham R$ 17,90 — uma diferença de 85,6%. Entre as mulheres, o rendimento médio foi de R$ 2.718, contra R$ 4.071 dos homens na mesma faixa etária. Essas disparidades não são anomalias do sistema, mas expressões concretas de uma estrutura social que hierarquiza corpos e experiências desde o período escravista.
A discriminação assume um perfil “elitista”, intensificando-se nos estratos mais altos da distribuição de renda, o que evidencia que mesmo a qualificação educacional não elimina as barreiras impostas pela cor da pele. Os trabalhos de Eunice Lea de Moraes (2006), publicados na revista Ciência e Cultura da SBPC, já alertavam que as desigualdades de gênero e raça no Brasil não são fenômenos relativos a minorias, mas dizem respeito às grandes maiorias da população: mulheres representam 43% e negros 46% da População Economicamente Ativa, somando aproximadamente 70% — cerca de 60 milhões de pessoas.
A compreensão dessas desigualdades exige uma perspectiva que considere os trabalhadores e trabalhadoras como sujeitos ativos de sua própria história, e não como receptáculos passivos de políticas econômicas ou vítimas inertes de estruturas opressoras. Os idosos que permanecem no mercado de trabalho informal, as mulheres que conciliam jornadas duplas e triplas, os trabalhadores negros que enfrentam barreiras invisíveis de ascensão profissional — todos esses grupos desenvolvem estratégias de resistência e adaptação que conformam experiências de classe específicas. Ignorar essa agência é reduzir a análise a um economicismo que obscurece as dimensões culturais, afetivas e morais do trabalho.
Tabela 1 – Principais desigualdades no mercado de trabalho brasileiro (2024)
| Indicador | Idosos (60+) | Mulheres | Negros |
| Taxa de ocupação | 24,4% | 49,1% | – |
| Taxa de desocupação | 2,9% | 20,4% subutiliz. | 9,5% |
| Informalidade | 55,7% | Maior precarização | 61,2% (P/P) |
| Rendimento médio | R$ 3.561 | 78,6% do masc. | 48,7% do branco |
| Rend. por hora (60+) | R$ 25,60 | R$ 21,60 | R$ 17,90 |
Nota: Os dados apresentados nesta seção baseiam-se na Síntese de Indicadores Sociais 2025 (IBGE), em reportagens do portal G1 e O Globo publicadas em 03/12/2025, e nos estudos de DRUCK, Graça (Cad. CRH, v. 24, n. 61, 2011), PAIXÃO, Marcelo; CARVANO, Luiz M. (Rev. Econ. Pol., v. 28, n. 4, 2008) e MORAES, Eunice Lea (Ciência e Cultura, v. 58, n. 4, 2006).
Precarização estrutural e as armadilhas da analise econômica convencional
O mês de outubro de 2025 registrou o pior desempenho para o período desde 2020, com a criação de apenas 85.147 vagas formais de trabalho, segundo dados do Novo CAGED divulgados pelo Ministério do Trabalho. A queda de aproximadamente 35% em relação ao mesmo mês de 2024 evidencia uma desaceleração preocupante no ritmo de formalização do emprego, mesmo em um contexto de recuperação econômica pós-pandemia.
O ministro Luiz Marinho atribuiu o resultado à política de juros elevados praticada pelo Banco Central, com a taxa Selic em 15% ao ano. No entanto, essa explicação, embora parcialmente válida, não esgota a complexidade do fenômeno. A taxa de juros é apenas uma das variáveis que compõem um cenário mais amplo de transformações estruturais no mundo do trabalho.
A análise econômica convencional tende a tratar o mercado de trabalho como um mecanismo autorregulado, no qual a oferta e a demanda de mão de obra encontrariam naturalmente um ponto de equilíbrio caso não fossem perturbadas por intervenções estatais ou “rigidez” salarial. Essa perspectiva, predominante nos diagnósticos que embasaram a Reforma Trabalhista de 2017 e a Reforma da Previdência de 2019, pressupõe que a flexibilização das relações de trabalho conduziria automaticamente à geração de empregos e à redução da informalidade.
A precarização do trabalho renova e reconfigura a precarização histórica e estrutural do trabalho no Brasil. O conteúdo dessa nova precarização está dado pela condição de instabilidade, insegurança, adaptabilidade e fragmentação dos coletivos de trabalhadores. Os setores de indústria e agropecuária, que em outubro de 2025 destruíram cerca de 20 mil empregos, exemplificam como a volatilidade econômica afeta desproporcionalmente trabalhadores em posições já fragilizadas. Enquanto isso, os setores de serviços e comércio, que lideraram a criação de vagas, são justamente aqueles marcados por maior rotatividade e menor proteção social.
A participação sem precedentes de trabalhadores informais na economia não pode ser celebrada como expressão de empreendedorismo ou autonomia. A informalidade, nesse contexto, não representa uma escolha racional por flexibilidade, mas uma imposição decorrente da ausência de alternativas dignas. O trabalhador informal brasileiro, especialmente o negro e periférico, encontra-se exposto a riscos laborais, ausência de proteção em períodos de inatividade e falta de segurança financeira — uma condição que reproduz, sob novas formas, padrões de exploração sedimentados ao longo de séculos.
A economia, quando abstraída das relações sociais concretas que a constituem, converte-se em ideologia. Os modelos econométricos que explicam diferenciais salariais por raça e gênero a partir de “defasagens de capital humano” ou “preferências individuais” obscurecem os mecanismos de discriminação e exclusão que operam no cotidiano das relações de trabalho. A pesquisa de desigualdades salariais entre raças, realizada por Campante, Crespo e Leite na Revista Brasileira de Economia, demonstrou que, mesmo controlando variáveis como escolaridade e experiência, persiste um componente de discriminação que afeta especialmente os trabalhadores negros nos estratos superiores da distribuição de renda. A meritocracia, tão celebrada pelo discurso liberal, revela-se uma ficção quando confrontada com a realidade da reprodução intergeracional das desigualdades.
Tabela 2 – Contribuições conceituais para a análise do mercado de trabalho
| Conceito | Definição operacional | Implicação analítica |
| Precarização estrutural | Institucionalização da instabilidade e insegurança como norma das relações laborais | Supera a dicotomia formal/informal; revela continuidades históricas |
| Divisão sexual do trabalho | Distribuição desigual de tarefas reprodutivas e produtivas por gênero | Explica disparidades de ocupação e rendimento entre homens e mulheres |
| Discriminação elitista | Intensificação da discriminação racial nos estratos superiores de renda | Demonstra que qualificação não elimina barreiras raciais |
| Informalidade de subsistência | Trabalho informal motivado por necessidade, não escolha | Contesta narrativa do empreendedorismo como liberdade |
| Subutilização da forca de trabalho | Trabalhadores que desejam mais horas mas não conseguem | Amplia conceito de desemprego; revela precariedade oculta |
Para além das estatísticas: a experiência vivida do trabalho
Os números apresentados nas seções anteriores adquirem significado apenas quando situados no contexto das experiências concretas de trabalhadores e trabalhadoras que, diariamente, enfrentam as contradições do mercado de trabalho brasileiro. Uma idosa de 65 anos que trabalha como autônoma vendendo produtos em sua comunidade não está simplesmente ocupando uma vaga na categoria “conta própria” das estatísticas do IBGE; ela está mobilizando saberes acumulados ao longo de décadas, construindo redes de solidariedade vicinal, e enfrentando, com recursos limitados, as incertezas de uma velhice sem proteção social adequada. Sua experiência de trabalho é, simultaneamente, expressão de vulnerabilidade e de resistência.
A informalidade, nesse sentido, não pode ser reduzida a uma categoria residual ou a um problema a ser “resolvido” pela formalização compulsória. Para milhões de brasileiros e brasileiras, o trabalho informal constitui a única via possível de inserção econômica em um contexto de desemprego estrutural e de erosão dos empregos protegidos. Isso não significa romantizar a precariedade ou negar a importância da proteção social; significa reconhecer que as pessoas desenvolvem, no interior de condições adversas, formas próprias de organização do trabalho, de divisão de tarefas familiares e de construção de identidades profissionais. Essas formas não são meros desvios de uma norma salarial idealizada, mas expressões legítimas de uma classe trabalhadora plural e heterogênea.
A questão de gênero ilustra com clareza essa complexidade. As mulheres brasileiras não apenas enfrentam barreiras objetivas de acesso ao mercado de trabalho — como a escassez de creches públicas e a expectativa social de que assumam os cuidados domésticos —, mas também desenvolvem estratégias de conciliação, negociação e, por vezes, subversão dessas expectativas. A trabalhadora que opta por um emprego de tempo parcial para cuidar dos filhos não está necessariamente “escolhendo” a precariedade; está respondendo a um constrangimento estrutural com os recursos disponíveis. Ao mesmo tempo, sua decisão pode representar uma forma de preservar laços afetivos e comunitários que o trabalho formal em tempo integral frequentemente ameaça.
O recorte racial das desigualdades revela, por sua vez, a persistência de uma estrutura de dominação que antecede o próprio capitalismo industrial brasileiro. A população negra, que passou da escravidão à “liberdade” sem qualquer medida de reparação ou integração, permanece até hoje sobrerrepresentada nos trabalhos mais precários, perigosos e mal remunerados. Os dados sobre informalidade entre idosos pretos e pardos — 61,2%, contra a média já elevada de 55,7% — não são apenas números: são a expressão estatística de uma exclusão que se reproduz de geração em geração. A luta contra o racismo no mercado de trabalho não pode, portanto, limitar-se a políticas focalizadas; exige uma transformação profunda das estruturas econômicas e sociais que sustentam a hierarquização racial.
O cenário atual, marcado pela desaceleração na criação de empregos formais e pela manutenção de elevados níveis de informalidade, impõe desafios urgentes às políticas públicas. Não se trata apenas de estimular o crescimento econômico ou de ajustar a taxa de juros — medidas necessárias, porém insuficientes. É preciso enfrentar a precariedade em suas múltiplas dimensões: garantir proteção social aos trabalhadores informais, ampliar a oferta de serviços públicos que permitam às mulheres conciliar trabalho e cuidado, combater ativamente a discriminação racial nas contratações e promoções, e valorizar as formas de trabalho que, embora não se encaixem no modelo do emprego assalariado clássico, sustentam a reprodução social de milhões de famílias.
A análise aqui apresentada buscou demonstrar que o mercado de trabalho brasileiro não pode ser compreendido apenas por meio de indicadores agregados ou modelos econométricos abstratos. Cada taxa de desemprego, cada diferencial de rendimento, cada percentual de informalidade condensa experiências vividas por sujeitos concretos que, longe de serem meros portadores de força de trabalho, são produtores de cultura, de solidariedade e de resistência. Reconhecer essa dimensão não implica abandonar a análise estrutural, mas enriquecê-la com a atenção às formas pelas quais as pessoas comuns — idosos, mulheres, negros, trabalhadores informais — fazem e refazem sua história no interior de condições que não escolheram. É nessa tensão entre estrutura e agência, entre determinação e liberdade, que se situa o desafio de pensar um mundo do trabalho mais justo e mais humano.
Referências
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